Bonito de Minas – O buritizal é a formação nativa mais importante da vereda. Além de caracterizá-la, serve de refúgio e alimentação para araras, papagaios e periquitos, os psitacídeos, ajudando a gerar emprego e renda para os chamados veredeiros, comunidades que aproveitam o fruto para a produção de doce, óleo e outros derivados.
“O Guimarães Rosa botou poesia em tudo onde podia. Todo o romance, o encantamento, a musicalidade para fazer a relação da vereda com o buriti, que ele chama de a ‘palmeira de Deus’. Ele fala, ‘ô bonitinha, a palmeira de Deus’, que as folhas se dedeiam como uma mão aberta”, destaca o filósofo do sertão José Osvaldo dos Santos, conhecido como “Brasinha”.
Segundo ele, o autor de “Grande sertão” já chamava a atenção para a importante relação entre a palmeira e a formação natural. “Imagine se tudo isso se acabar, secar de vez e transformar a magia em eucalipto ou carvão?”, indaga um dos mais respeitados estudiosos de Guimarães Rosa, amigo do personagem Manuelzão – retratado pelo escritor –, que se chamava Manuel Nardi.
As veredas contam com outras espécies de plantas características do solo úmido, como a buritirana, parente do buriti, de menor porte e de caule espinhoso. Com o secamento desse ambientes, a vegetação característica do ecossistema morre, dando lugar às espécies invasoras, com grande prejuízo para a biodiversidade, alertam especialistas.
Espécies vegetais mais ameaçadas
O Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG) e o Centro de Referência em Informação Ambiental mantêm bancos de dados com informações sobre a biodiversidade.
Ali se produziram 73 trabalhos com 90 espécies vegetais nos 50 municípios do sertão de Guimarães Rosa. Três se encontram em perigo.
Duas estão em risco de extinção. Uma delas é a Byrsonima cipoensis, relativa aos muricis do cerrado, identificada pela primeira vez na Serra do Cipó, em 1980. Foi descrita também em outras áreas, como na Região Central e em Formoso, no Parque Nacional Grande Sertão Veredas – a primeira vez em 1997, na estrada entre Chapada Gaúcha e a unidade de conservação.
A outra planta ameaçada é a Ditassa cordeiroana, arbusto de cerca de um metro de altura e pequenas flores amarelas, encontrado sobretudo nos campos rupestres. Tem distribuição restrita, entre altitudes de 650 a 1.250 metros. Está em risco nos municípios de Cristália, Itacambira, Grão Mogol, Botumirim e Rio Pardo de Minas. As principais ameaças são a perda da qualidade do hábitat, em decorrência do histórico de garimpo, e modos de uso do solo sem controle, como a criação de gado e a especulação imobiliária, apontam estudos.
Os trabalhos também visam conhecer e proteger a Paliavana werdermannii, que está na lista de “espécies vulneráveis” e se restringe ao norte da cadeia do Espinhaço, nos estados de Minas Gerais e Bahia, sendo encontrada também nos campos rupestres.
É um arbusto de até 3 metros de altura, polinizado por morcegos, com floração de fevereiro a agosto. A frutificação ocorre em abril, julho, agosto e novembro. Atividades de turismo ecológico e constantes incêndios comprometem a área e a qualidade dos hábitats de ocorrência da espécie.
Verde encolhe até em áreas mais preservadas
A degradação, que é ameaça em vários municípios, ceifa veredas mesmo em locais que ainda estão entre os maiores detentores desse ecossistema, como Bonito de Minas, o quarto com mais ocorrências da formação no sertão de Guimarães Rosa, com 79 fragmentos totalizando 14.952,49 hectares (ha), seguido por Januária, em quinto lugar, com 144 remanescentes em 14.546,87 ha.
O quadro de destruição é encontrado na antiga Vereda da Capivara, que já ocupou 6,5 quilômetros de extensão, com centenas de buritizeiros, na Área de Preservação Ambiental (APA) do Rio Pandeiros. Mas, desde 2016, a formação despareceu por completo. Hoje, não existe vestígio de buritis na paisagem, dominada por espécies invasoras, com solo arenoso e completamente seco.
A devastação se repete em outro ponto da mesma APA do Rio Pandeiros, na antiga Vereda da Tábua, que se estendia por 2,92 quilômetros e secou completamente em 2015, segundo o Instituto Estadual de Florestas (IEF). Ali não existem mais buritis e outras plantas características de terrenos úmidos.
“Veredas dependem do cerrado em pé”
“As veredas possuem flora sensível e adaptada ao solo úmido. Com o secamento, o solo turfoso, parecido com uma esponja, se desidratada e com isso a vegetação morre lentamente. Assim, essas áreas são invadidas por outras espécies, que chamamos de oportunistas. São as chamadas ‘espécies pioneiras’ do cerrado, que começam a se estabelecer nesses locais”, afirma a bióloga Débora Guimarães Takaki. “O secamento de uma vereda é um prejuízo incalculável para a sociobiodiversidade”, alerta.
A especialista explica que as plantas invasoras modificam a paisagem e a dinâmica do ecossistema, alterando também a “função original” da vereda na manutenção da biodiversidade.
Gestor do Parque Estadual Veredas do Peruaçu, o analista ambiental João Roberto de Oliveira Barbosa é testemunha do desaparecimento de centenas de buritis e de outras espécies nas veredas e lagoas que secaram naquela unidade de conservação.
Barbosa chama a atenção para a importância da manutenção das nascentes na manutenção da flora e da fauna. “A importância das veredas para a flora é infinita. Elas mantêm vivas espécies como o buriti, a embaúba, o landim, o cedro, o pindaíba, a buritirana ou xiriri e várias outras existentes, além de garantir a alimentação dos animais silvestres”, observa.
"As veredas possuem uma flora sensível e adaptada ao solo úmido. Com o secamento das veredas, o solo turfoso, parecido com "esponja" se desidratada e com isso a vegetação morre lentamente"
Débora Guimarães Takaki, bióloga
Testemunha real da importância das veredas para a flora e do impacto delas para a biodiversidade é o pequeno agricultor Santino Lopes de Araújo, que vive em um terreno na Vereda Água Doce, que ele preserva na região do Rio Pandeiros, no município de Bonito de Minas.
Ele salienta que o ecossistema garante não somente a preservação, mas a multiplicação das espécies vegetais, por meio da dispersão de sementes feita por pássaros e outros animais. “Toda vereda possui centenas de árvores, com milhões de sementes”, afirma o veredeiro. Ele salienta que, além de araras, papagaios e periquitos, que fazem seus ninhais nos buritizais, as veredas servem de moradia para macacos, pacas e cotias, que também dispersam as sementes das árvores e garantem o equilíbrio da natureza, fazendo a chamada “recomposição florestal”.
Santino Araújo lembra que além da palmeira de buriti, gramíneas e arbustos menores, as áreas de veredas contam com árvores de grande crescimento, entre quais o cedro e a gameleira.
“A água da vereda mantém o equilíbrio de todo o ecossistema, garantindo a vida das plantas, dos animais, dos pássaros e das pessoas”, afirma o veredeiro. Ele chama atenção ainda para a necessidade de preservar o bioma para conservar as veredas. “As veredas dependem do cerrado em pé”, ensina Santino.
Extinção em cascata
O secamento das veredas tem grande impacto para a biodiversidade, pois da mesma forma que garantem água para manter os rios e alimentar a fauna, elas têm grande relevância para espécies da flora características de áreas úmidas, como buriti, xiriri, ingá, embaúba, quaresmeira e espécies de gramíneas. Quando a vereda seca, essas plantas morrem, pois não resistem ao solo seco, e prosperam outras, mais resistentes, como a aroeira e o angico.
Acompanhe a série
Esta reportagem integra a série “Veredas mortas”, do Estado de Minas, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: Veredas”. As reportagens começaram a ser publicadas no domingo (14) e a íntegra dos textos, galerias de fotos e vídeos estão disponíveis em nosso site.