Em Bonito de Minas, área que já foi alagada na região do Rio Pandeiros hoje exibe solo arenoso e ressecado -  (crédito: Solon Queiroz/Esp EM)

Em Bonito de Minas, área que já foi alagada na região do Rio Pandeiros hoje exibe solo arenoso e ressecado

crédito: Solon Queiroz/Esp EM

Bonito de Minas – O buritizal é a formação nativa mais importante da vereda. Além de caracterizá-la, serve de refúgio e alimentação para araras, papagaios e periquitos, os psitacídeos, ajudando a gerar emprego e renda para os chamados veredeiros, comunidades que aproveitam o fruto para a produção de doce, óleo e outros derivados.

 

“O Guimarães Rosa botou poesia em tudo onde podia. Todo o romance, o encantamento, a musicalidade para fazer a relação da vereda com o buriti, que ele chama de a ‘palmeira de Deus’. Ele fala, ‘ô bonitinha, a palmeira de Deus’, que as folhas se dedeiam como uma mão aberta”, destaca o filósofo do sertão José Osvaldo dos Santos, conhecido como “Brasinha”.

 

 

Segundo ele, o autor de “Grande sertão” já chamava a atenção para a importante relação entre a palmeira e a formação natural. “Imagine se tudo isso se acabar, secar de vez e transformar a magia em eucalipto ou carvão?”, indaga um dos mais respeitados estudiosos de Guimarães Rosa, amigo do personagem Manuelzão – retratado pelo escritor –, que se chamava Manuel Nardi.

 

As veredas contam com outras espécies de plantas características do solo úmido, como a buritirana, parente do buriti, de menor porte e de caule espinhoso. Com o secamento desse ambientes, a vegetação característica do ecossistema morre, dando lugar às espécies invasoras, com grande prejuízo para a biodiversidade, alertam especialistas.

 

Espécies vegetais mais ameaçadas

O Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG) e o Centro de Referência em Informação Ambiental mantêm bancos de dados com informações sobre a biodiversidade.

 

Ali se produziram 73 trabalhos com 90 espécies vegetais nos 50 municípios do sertão de Guimarães Rosa. Três se encontram em perigo.

Flor do cerrado mineiro: formação vegetal que encantou Guimarães Rosa é protegida pela Lei Estadual 20.922/2013

Flor do cerrado mineiro: formação vegetal que encantou Guimarães Rosa é protegida pela Lei Estadual 20.922/2013

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

Duas estão em risco de extinção. Uma delas é a Byrsonima cipoensis, relativa aos muricis do cerrado, identificada pela primeira vez na Serra do Cipó, em 1980. Foi descrita também em outras áreas, como na Região Central e em Formoso, no Parque Nacional Grande Sertão Veredas – a primeira vez em 1997, na estrada entre Chapada Gaúcha e a unidade de conservação.

 

A outra planta ameaçada é a Ditassa cordeiroana, arbusto de cerca de um metro de altura e pequenas flores amarelas, encontrado sobretudo nos campos rupestres. Tem distribuição restrita, entre altitudes de 650 a 1.250 metros. Está em risco nos municípios de Cristália, Itacambira, Grão Mogol, Botumirim e Rio Pardo de Minas. As principais ameaças são a perda da qualidade do hábitat, em decorrência do histórico de garimpo, e modos de uso do solo sem controle, como a criação de gado e a especulação imobiliária, apontam estudos.

 

Os trabalhos também visam conhecer e proteger a Paliavana werdermannii, que está na lista de “espécies vulneráveis” e se restringe ao norte da cadeia do Espinhaço, nos estados de Minas Gerais e Bahia, sendo encontrada também nos campos rupestres.

 

 

É um arbusto de até 3 metros de altura, polinizado por morcegos, com floração de fevereiro a agosto. A frutificação ocorre em abril, julho, agosto e novembro. Atividades de turismo ecológico e constantes incêndios comprometem a área e a qualidade dos hábitats de ocorrência da espécie.


Verde encolhe até em áreas mais preservadas

A degradação, que é ameaça em vários municípios, ceifa veredas mesmo em locais que ainda estão entre os maiores detentores desse ecossistema, como Bonito de Minas, o quarto com mais ocorrências da formação no sertão de Guimarães Rosa, com 79 fragmentos totalizando 14.952,49 hectares (ha), seguido por Januária, em quinto lugar, com 144 remanescentes em 14.546,87 ha.

 

 

O quadro de destruição é encontrado na antiga Vereda da Capivara, que já ocupou 6,5 quilômetros de extensão, com centenas de buritizeiros, na Área de Preservação Ambiental (APA) do Rio Pandeiros. Mas, desde 2016, a formação despareceu por completo. Hoje, não existe vestígio de buritis na paisagem, dominada por espécies invasoras, com solo arenoso e completamente seco.

 

A devastação se repete em outro ponto da mesma APA do Rio Pandeiros, na antiga Vereda da Tábua, que se estendia por 2,92 quilômetros e secou completamente em 2015, segundo o Instituto Estadual de Florestas (IEF). Ali não existem mais buritis e outras plantas características de terrenos úmidos.


“Veredas dependem do cerrado em pé”

“As veredas possuem flora sensível e adaptada ao solo úmido. Com o secamento, o solo turfoso, parecido com uma esponja, se desidratada e com isso a vegetação morre lentamente. Assim, essas áreas são invadidas por outras espécies, que chamamos de oportunistas. São as chamadas ‘espécies pioneiras’ do cerrado, que começam a se estabelecer nesses locais”, afirma a bióloga Débora Guimarães Takaki. “O secamento de uma vereda é um prejuízo incalculável para a sociobiodiversidade”, alerta.

 

Débora Guimarães Takaki, bióloga

Débora Guimarães Takaki, bióloga

Solon Queiroz/Esp EM
 

A especialista explica que as plantas invasoras modificam a paisagem e a dinâmica do ecossistema, alterando também a “função original” da vereda na manutenção da biodiversidade.

 

Gestor do Parque Estadual Veredas do Peruaçu, o analista ambiental João Roberto de Oliveira Barbosa é testemunha do desaparecimento de centenas de buritis e de outras espécies nas veredas e lagoas que secaram naquela unidade de conservação.

 

 

Barbosa chama a atenção para a importância da manutenção das nascentes na manutenção da flora e da fauna. “A importância das veredas para a flora é infinita. Elas mantêm vivas espécies como o buriti, a embaúba, o landim, o cedro, o pindaíba, a buritirana ou xiriri e várias outras existentes, além de garantir a alimentação dos animais silvestres”, observa.

 

"As veredas possuem uma flora sensível e adaptada ao solo úmido. Com o secamento das veredas, o solo turfoso, parecido com "esponja" se desidratada e com isso a vegetação morre lentamente"

Débora Guimarães Takaki, bióloga


Testemunha real da importância das veredas para a flora e do impacto delas para a biodiversidade é o pequeno agricultor Santino Lopes de Araújo, que vive em um terreno na Vereda Água Doce, que ele preserva na região do Rio Pandeiros, no município de Bonito de Minas.

 

O pequeno produtor e veredeiro Santino Lopes, de Bonito de Minas, acompanhou o processo de desmatamento pelas reflorestadoras na região

O pequeno produtor e veredeiro Santino Lopes, de Bonito de Minas, acompanhou o processo de desmatamento pelas reflorestadoras na região

Solon Queiroz/Esp EM


Ele salienta que o ecossistema garante não somente a preservação, mas a multiplicação das espécies vegetais, por meio da dispersão de sementes feita por pássaros e outros animais. “Toda vereda possui centenas de árvores, com milhões de sementes”, afirma o veredeiro. Ele salienta que, além de araras, papagaios e periquitos, que fazem seus ninhais nos buritizais, as veredas servem de moradia para macacos, pacas e cotias, que também dispersam as sementes das árvores e garantem o equilíbrio da natureza, fazendo a chamada “recomposição florestal”.

 

Santino Araújo lembra que além da palmeira de buriti, gramíneas e arbustos menores, as áreas de veredas contam com árvores de grande crescimento, entre quais o cedro e a gameleira.

 

“A água da vereda mantém o equilíbrio de todo o ecossistema, garantindo a vida das plantas, dos animais, dos pássaros e das pessoas”, afirma o veredeiro. Ele chama atenção ainda para a necessidade de preservar o bioma para conservar as veredas. “As veredas dependem do cerrado em pé”, ensina Santino.

 

Extinção em cascata

O secamento das veredas tem grande impacto para a biodiversidade, pois da mesma forma que garantem água para manter os rios e alimentar a fauna, elas têm grande relevância para espécies da flora características de áreas úmidas, como buriti, xiriri, ingá, embaúba, quaresmeira e espécies de gramíneas. Quando a vereda seca, essas plantas morrem, pois não resistem ao solo seco, e prosperam outras, mais resistentes, como a aroeira e o angico.

 

Acompanhe a série

Esta reportagem integra a série “Veredas mortas”, do Estado de Minas, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: Veredas”. As reportagens começaram a ser publicadas no domingo (14) e a íntegra dos textos, galerias de fotos e vídeos estão disponíveis em nosso site.