O Parque do Sumidouro, em Lagoa Santa, guarda o Museu Peter Lund, FOCADO EM PALEONTOLOGIA, cujo investimento para A construção foi de R$ 5,3 milhões -  (crédito: Carlos Alberto/Imprensa MG)

O Parque do Sumidouro, em Lagoa Santa, guarda o Museu Peter Lund, FOCADO EM PALEONTOLOGIA, cujo investimento para A construção foi de R$ 5,3 milhões

crédito: Carlos Alberto/Imprensa MG

 

A recente devolução ao Brasil de um manto indígena tupinambá, pela Dinamarca, reacende uma polêmica envolvendo os dois países, mais especificamente o estado de Minas Gerais. O caso envolve 80 fósseis guardados no Museu Peter Lund, em Lagoa Santa, na Grande BH, equipamento cultural inaugurado em 2012, na presença do rei dinamarquês Frederik X, então príncipe herdeiro. O empréstimo do material paleontológico, em regime de comodato, era de apenas três anos, prazo esgotado há quase uma década.


Há exatos seis meses, conforme destacou o Estado de Minas, o Museu de História Natural da Dinamarca mostrou seu propósito na repatriação do material levado para o país escandinavo pelo paleontólogo dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801–1880), habitante da região de Lagoa Santa por mais de quatro décadas. Desde então, não houve qualquer entendimento para solucionar a questão.


Na época (20 de janeiro de 2024), a arqueóloga Rosângela Albano, coordenadora do Centro de Arqueologia Annette Laming-Emperaire (Caale), vinculado à Prefeitura de Lagoa Santa, falou sobre o impasse: “A Dinamarca já mostrou que quer os fósseis de volta. No início, a prefeitura ficou como guardiã do material, e depois passou a responsabilidade ao Instituto Estadual de Florestas (IEF).”


Rosângela Albano explicou ainda que, em 2023, esteve em Lagoa Santa o diretor do Museu de História Natural da Dinamarca, Peter Kjaesgaard, que falou sobre a repatriação dos fósseis. “Ele disse que são para pesquisa, e não para exposição”, conta a arqueóloga. Também em janeiro, o prefeito de Lagoa Santa, Rogério Avelar, aguardava uma reunião, que não foi realizada, com todos os setores envolvidos na guarda dos fósseis a fim de decidir qual seria a solução.

 

Caso sem definição

 

Passados mais de nove anos, o cenário se mostra indefinido. Ontem, a Prefeitura de Lagoa Santa informou, por e-mail, o seguinte: “Os fósseis estão sob a guarda do IEF, e as tratativas sobre a cessão dos mesmos são de responsabilidade da Casa Civil do Governo do Estado de Minas Gerais em suas relações internacionais. Esse assunto não é da jurisdição do Município de Lagoa Santa.”


Já a direção do IEF, instituto vinculado à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), mantém o mesmo posicionamento: “O acordo é entre o Museu da Dinamarca e Prefeitura de Lagoa Santa, sendo o IEF beneficiário extra”. Pelo visto, tudo na estaca zero, com possibilidade de os fósseis se transformarem em “ossos da discórdia”.

 

Fósseis cedidos pelo governo da Dinamarca ao Museu Peter Lund, em Lagoa Santa, se tornaram objetos de disputa polêmica

Fósseis cedidos pelo governo da Dinamarca ao Museu Peter Lund, em Lagoa Santa, se tornaram objetos de disputa polêmica

Carlos Alberto/Imprensa MG


Material surpreende

 

Para quem conhece o acervo do Museu Lund, em Lagoa Santa, e do Museu de História Natural da Dinamarca, em Copenhague, a história dos fósseis se mostra mais surpreendente do que se imagina. “O material paleontológico que está aqui é apenas a ponta de um ‘iceberg’. No museu da Dinamarca, de onde veio o manto tupinambá, é que estão as peças mais importantes levadas por Dr. Lund”, diz o professor Luiz Souza, vice-presidente do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia e Pesquisa em História Natural, Patrimônio Cultural, Artes, Sustentabilidade e Território, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


Quando visitou o equipamento cultural e científico de Copenhague, Luiz Souza ficou impressionado com o que viu: “Dr. Lund levou caixas e mais caixas de fósseis, material de grande importância, que em nada se compara ao que foi emprestado pela Dinamarca a Minas Gerais. Para se ter uma ideia, ainda há peças enroladas em folhas de jornal do século 19, certamente do jeito que seguiram no navio”, avalia.


Destacando a relevância dos fósseis para a cultura, as pesquisas e a ciência no Brasil, e comparando o material paleontológico dos dois equipamentos culturais, o professor observa que os expostos em Lagoa Santa são chamados pelos estudantes, de forma pejorativa, de “ossos de galinha”. Infelizmente, acrescenta, “é desse jeito que os jovens enxergam o que veem exposto.”


Estudo aprofundado

 

O museu se inspirou na trajetória de Dr. Lund, que entrou para a história como o “pai da paleontologia brasileira”. Em 21 de setembro de 2012, quando era governador o professor Antonio Anastasia, Minas abria as portas da sua pré-história e convidava o mundo para visitá-la na viagem pelo tempo e espaço a bordo de um equipamento cultural concebido para valorizar um passado superior a 11 mil anos. No prédio aberto ao público, administrado pela iniciativa privada, se encontram em exposição os 80 fósseis cedidos em regime de comodato, por três anos, ao governo de Minas pelo Museu de História Natural da Dinamarca.


A empreitada do governo de Minas consumiu, na época, cerca de R$ 5,3 milhões, e o museu se integrou à Rota Lund, idealizada para promover o desenvolvimento regional por meio de um roteiro turístico. O museu de território compreende todo o Parque do Sumidouro, administrado pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF), onde foi construída a sede de 1.850 metros quadrados.


O acervo cedido pela Dinamarca é composto por fósseis encontrados por Lund durante suas pesquisas na região, cujas características geológicas favorecem o aparecimento de grutas e cavernas. O museu dispõe de salas exclusivas para que o visitante tenha conhecimento dos planos de manejo do parque espeleológico, sala multiuso para projeção de filmes, palestras e oficinas, salas de exposição, uma delas destinada ao acervo do Museu de História Natural da Dinamarca e espaço para reserva técnica, conservação e restauro de obras.


Em maio de 2009, numa missão enviada pelo governo de Minas à Dinamarca, da qual fez parte o pesquisador e professor da PUC Minas, Cástor Cartelle, foi selado o acordo inicial com as autoridades em Copenhague para trazer os fósseis para Minas. No tempo em que viveu na região de Lagoa Santa, Lund enviou ao seu país uma coleção de 12.622 peças, a maioria encontrada nas grutas da região cárstica.


O trabalho realizado por Peter Lund contribuiu para que a região cárstica de Minas, que compreende Lagoa Santa, ficasse mundialmente conhecida como importante campo de estudos para a paleontologia, arqueologia e espeleologia, em função do grande número de grutas e fósseis. Destaca-se o sítio arqueológico da Lapa Vermelha 4, em Pedro Leopoldo, onde em 1975, uma missão franco-brasileira, chefiada pela arqueóloga e professora francesa Annete Laming Emperaire (1917-1977), encontrou o crânio humano com idade aproximada de 11.500 anos. O crânio foi “batizado” de Luzia.


Manto Tupinambá no Museu Nacional



Feito com penas vermelhas de ave guará e confeccionado entre os séculos 16 e 17, o manto indígena tupinambá retornou ao Brasil em 11 de julho, após de mais de três séculos guardados na Dinamarca. A diretoria do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) bicentenário equipamento cultural e científico alvo de um incêndio em 2 de setembro de 2018, e agora em reconstituição, celebrou o fato.


Eis a nota: “É com enorme alegria que o Museu Nacional/UFRJ confirma a chegada do manto tupinambá ao Brasil. Nas próximas semanas, em data ainda a ser confirmada, após a adoção de todos os procedimentos necessários para a perfeita conservação dessa peça tão importante, e sagrada para nossos povos originários, apresentaremos o manto à sociedade.”


“Nesse momento, pedimos a compreensão de todos, pois queremos organizar a apresentação do manto com todo cuidado e respeito aos saberes dos povos indígenas, com quem estamos trabalhando em harmonia e contato direto, através do Ministério dos Povos Indígenas. Nosso intuito é conseguir transmitir nossa alegria e otimismo com a confiança depositada pela Dinamarca na reconstrução do Museu Nacional/UFRJ, iniciativa que esperamos, sinceramente, seja seguida por outros países.”

 

'Ossos da História'

 

SÉCULO 19

 

1801 – Nasce na Dinamarca Peter W. Lund, que viveu 46 anos na região de Lagoa Santa e é considerado o pai da paleontologia, arqueologia e espeleologia brasileiras. Está sepultado em Lagoa Santa;

1832 – Lund (1801-1880) faz as primeiras descobertas de fósseis em cavernas e abrigos de Lagoa Santa;

1845 – Ele envia ao rei da Dinamarca a coleção de fósseis encontrados na região de Lagoa Santa. A coleção totaliza 12.622 peças, a maioria encontrada nas grutas da região cárstica.

 

SÉCULO 20

 

Década de 1950 – Pesquisadores da Academia Mineira de Ciências e do Museu Nacional do Rio de Janeiro retomam as escavações na região;

1974 –Missão franco-brasileira, chefiada por Annette Laming Emperaire (1917-1977), faz escavações, até 1976, em Lagoa Santa;

1975 – Annette Laming encontra na Lapa Vermelha IV o crânio de Luzia, o fóssil humano mais antigo com datação do Brasil;

1998 – Antropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo, estuda e data (11,4 mil anos) o crânio de Luzia.

 

SÉCULO 21



2010 – Em maio, governos de Minas e da Dinamarca fecham acordo para cessão, em comodato, por três anos, de 80 fósseis para exposição em Lagoa Santa. As peças ficam sob guarda da Prefeitura de Lagoa Santa, e depois do Instituto Estadual de Florestas (IEF), vinculado à Semad;

2012 – Inaugurado o Museu Peter Lund, museu de território inspirado na trajetória do naturalista dinamarquês pela região de Lagoa Santa;

2023 – Com o prazo de comodato expirado, o diretor do Museu de História Natural da Dinamarca, Peter Kjaesgaard, vai a Lagoa Santa e comunica que seu país vai pedir a repatriação do acervo exposto no Museu Peter Lund.