Noroeste e Norte de Minas Gerais, trijunção Minas, Bahia e Goiás – Nas barrancas altas do curso lento do Rio-de-Janeiro nasceu um dos romances mais célebres da literatura brasileira. Em todo o cerrado e a caatinga, o afluente do médio Rio São Francisco foi o ponto escolhido pelo escritor Guimarães Rosa para o primeiro encontro de Riobaldo, o personagem narrador de “Grande sertão: veredas”, com Diadorim. Ali nasceu o amor do ainda adolescente Riobaldo, uma força não consumada, mas que segue firme, inesquecível e imortal. Em direção oposta, falta vigor para que o Rio-de-Janeiro (aqui na grafia usada por Rosa) siga seu destino para o Velho Chico como quando inspirou o escritor a fazer dele o ponto de partida de sua saga sertaneja. Desde a nascente, o manancial morre de sede e tem suas protetoras matas ciliares queimadas, derrubadas e tomadas por eucaliptos, pastos e plantações.
É o que mostra a sexta reportagem da série “Veredas mortas”, do Estado de Minas, nome que toma como uma premonição o primeiro título dado por Rosa ao romance (1956), há 70 anos. A reportagem do EM percorreu quase 5 mil quilômetros dos sertões mineiro, baiano e goiano para denunciar a devastação ambiental, que provoca secas prolongadas, ondas de calor, tempestades destrutivas e outros eventos climáticos extremos.
O rio do Norte de Minas, que nasce em Lassance e segue desenhando o limite entre o município e Três Marias, tem curso de 81 quilômetros. Suas margens, segundo a plataforma internacional de monitoramento florestal Global Forest Watch (GFW), perderam 15 dos 75 hectares (ha) de matas com árvores naturais da região entre 2001 e 2023, o que representa 20% do total, ou ainda um hectare a cada 5,4 quilômetros. Atualmente, a maior parte do percurso do rio segue por campos de pastagens e intermináveis mastros retilíneos de florestas de eucalipto. Quando não, em solo infértil de areia e pedras, escavado em rastros de erosões pelas chuvas.
Tudo hoje é muito diferente da margem de refrescantes árvores sombreando os dois jagunços do romance quando jovens. “Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro”, escreve Rosa, antes de levar a dupla inseparável a embarcar em sua primeira aventura em uma canoa de peroba até a travessia do Rio São Francisco, nascedouro de seu amor e confiança. “O menino tinha me dado a mão para descer o barranco. Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado. O vacilo da canoa me dava um aumentante receio. Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um efeito de calma, que até me repassasse”.
Uma triste e diferente sina vive o Rio-de-Janeiro desde o seu nascedouro. Como Diadorim, que morava com o tio na localidade descrita por Rosa como “os Porcos”, o manancial também vem de um ponto quase desconhecido de Lassance. Uma nascente que deveria brotar do solo de turfa e correr pelos buritizais para abastecer um primeiro trecho de 6,5 hectares de vereda imersa entre mata de cerrado, campo cerrado e dois fragmentos de 9 hectares de mata seca em meio a uma “floresta” de eucaliptos de 17.730ha. Mas não é o que acontece.
A reportagem do EM foi até a nascente original do Rio-de-Janeiro para mostrar a primeira água que surge do solo desse icônico rio. Mas nada encontrou. Para chegar à nascente, é preciso navegar pelas estradas entre o labirinto indistinguível de eucaliptos e suas passagens em pistas de terra. Vários acessos pelas matas mais próximas da estrada foram tentados, até o mais promissor, iniciado atrás do fio do facão. Da floresta ciliar cerrada, fechada em arbustos, espinhos e cipós, o terreno vai se afofando e enterra as solas, depois até as alturas dos calcanhares e tornozelos das botas.
No alto, contrastando com o céu azul, as folhas em leques como dedos dos buritis dão sinal de que a beirada da vereda chegou, uma vez que tal ecossistema necessariamente precisa da presença dessa palmeira. A outra condição são os solos encharcados (hidromórficos). Mas água por ali não se viu. Nem uma só gota, além do suor. Pelo contrário, o solo que deveria ser o leito inicial do Rio-de-Janeiro estava preto, como se tivesse pegado fogo e nada mais nele nascido. E é bem isso que bombeiros, brigadistas e ambientalistas dizem ser o maior matador de veredas: o fogo queima o solo de matéria orgânica da formação vegetal e faz a água não mais brotar.
Adiante, no que deveria ser um dos oásis de onde partira o rio do primeiro encontro de "Grande sertão: veredas", a situação era ainda mais característica de uma vereda morta. Moribundas, as palmeiras de buritis, que são elemento necessário para a caracterização da vereda, a condenam a se tornar um cerrado substituível. Com as raízes expostas e as partes inferiores queimadas, pesados troncos das palmeiras se sobrepõem uns aos outros como se tivessem sido empilhados. Parte dos condenados ainda jazem de pé, sem galhos nem folhagens em forma de leques. Só os troncos ressequidos, que ainda servem de buracos para a moradia de pica-paus, e os topos que ainda são usados de poleiros ou ninhos de araras-canindés. Água mesmo, só cinco quilômetros abaixo, em local que demandou a abertura de outra trilha.
Água vital
Veredas são encontradas em solos hidromórficos, saturados durante a maior parte do ano. Geralmente ocupam os vales ou áreas planas acompanhando linhas de drenagem mal definidas. Também são comuns numa posição intermediária do terreno, próximo das nascentes, ou na borda de matas de galeria. Sua ocorrência é condicionada ao afloramento do lençol freático.
Um rio afastado de sua origem
O secamento da nascente originária do Rio-de-Janeiro, que foi cenário do primeiro encontro de Riobaldo e Diadorim, os protagonistas do romance "Grande sertão: veredas", de Guimarães Rosa, obrigou a equipe de reportagem do Estado de Minas a procurar outras saídas. Nesses casos, há duas possibilidades, segundo biólogos e ambientalistas consultados. Ou a seca e o rebaixamento do lençol d' água subterrâneo fazem com que o afloramento da água do manancial se dê no seu leito mais abaixo do normal ou simplesmente outro córrego contribuinte se tornou a nascente primária – em caráter provisório ou definitivo. E a segunda opção é o que a reportagem constata no caso do Rio-de-Janeiro. Descendo pela mata de cerrado e vereda por mais 700 metros, se encontra um antigo barramento que retinha a água que brotava no solo para dar início à jornada do rio, mas que atualmente só segura as enxurradas para que o gado mate a sede antes da temporada da estiagem.
Cerca de 300 metros adiante se dá o encontro dos dois primeiros filetes de água que abastecem o Rio-de-Janeiro, em uma grande vereda comprida, com área de 18 hectares (ha). Um desses cursos, a norte da nascente, também vem de uma grande vereda, com 14ha, mas mal se vê a umidade no terreno. O primeiro ponto onde a equipe de reportagem conseguiu ver água correndo no leito do Rio-de-Janeiro está 5,12 quilômetros abaixo da nascente, depois de o manancial ter recebido contribuições de outros seis afluentes notáveis.
Contando as áreas de preservação permanente (APP) que, pelo Código Florestal, devem circundar um raio de 50 metros da nascente e às margens das veredas e da mata ciliar (também uma APP), entre 2001 e 2023, esse trecho perdeu o equivalente a três hectares, sendo um terço disso entre 2018 e 2019. Cerca de 300 metros abaixo, penetrando em mata fechada, mais uma vez no trilho do facão, as águas mansas do de-Janeiro voltam a correr cristalinas sobre um leito de areia ora amarelado ora cor de barro, ainda que poucas, fiéis à descrição de Guimarães Rosa: “Saiba o senhor, o de-janeiro é de águas claras. E é rio cheio de bichos cágados. Se olhava a lado, se via um vivente desses – em cima de pedra, quentando sol, ou nadando descoberto, exato”.
Apenas 200 metros à frente, seguindo a mata e o curso d’água, aparece a primeira ponte, para a região de São Maria. São mais sete quilômetros até a divisa com Três Marias, na foz do Córrego Mocambinho. Nesse percurso, as matas ciliares de proteção permanente chegaram a perder mais dois hectares, entre 2001 e 2023, tendo o eucalipto cercado o manancial, como se o assediasse. O córrego é um respiro do rio fora dos eucaliptos e recebe o reforço de outros 12 cursos d'água relevantes, revigorando-se quando flui água pelos tributários na estação chuvosa.
De-Janeiro desenha o limite entre os municípios de Três Marias, na margem esquerda, e de Lassance, na barranca direita. O Córrego Mocambinho também vem de duas veredas, que são como ilhas dentro de extensas matas de eucalipto de Lassance, com 17.730 hectares ocupados pela monocultura. São 21 quilômetros entre corredores de eucaliptos.
Nesse ponto, o eucalipto se afasta um pouco e o curso d'água segue abraçado por larga e baixa vegetação de campos, ainda observada de longe pelas longas árvores de eucaliptos dominando os altos. Cerrado, o Rio-de-Janeiro só vê de novo quando nele chegam as águas do Ribeirão Guará, 21 quilômetros depois de passar pelos campos. Nesse trecho, a perda foi menos significativa, uma vez que há poucas árvores no campo e pastagens até o cerrado, ainda assim uma redução de um hectare entre 2001 e 2023.
Cerca de 18 quilômetros adiante, aparece a última ponte do rio, que permite a travessia do manancial por terra para passar entre Lassance e Três Marias. Surgem também as primeiras grandes plantações em pivôs centrais de milho, sorgo e feijão, abastecidas pela água do manancial, em Lassance. Esse segmento perdeu a cobertura de três hectares no mesmo período pesquisado. A cinco quilômetros, está a Barra de Pedras. Início do trecho navegável do Rio-de-Janeiro nas épocas de cheias. Ali, as APPs perderam 1ha. Escoando abaixo, mais cerca de 3,5km, finalmente se chega ao ponto do encontro entre os personagens de "Grande sertão: veredas", o Porto do Rio-de-Janeiro. Hoje, uma barranca tímida, estrutura de madeira onde estava uma antiga venda. Dali até a foz do Rio-de-Janeiro no Rio São Francisco, Riobaldo e Diadorim viveram a sua primeira aventura, remando menos de 1km abaixo, até o Velho Chico.