"No Rio-de-Janeiro corria muita água. Tinha muito peixe nessa região aqui. Hoje acabou muito, foi assoreando com a seca. Foi acabando com o rio. A pesca predatória também contribuiu muito para o pouco peixe", Gilmar de Fátima Ferreira, dono de ponto de pesca

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


Noroeste e Norte de Minas Gerais, trijunção Minas, Bahia e Goiás – A antiga venda e o porto do Rio-de-Janeiro, em Três Marias, onde Riobaldo e Diadorim se encontram pela primeira vez no romance "Grande sertão: veredas", de Guimarães Rosa, só existem atualmente nas páginas da obra-prima da literatura brasileira e na memória de poucos. No livro, o personagem narrador, Riobaldo, descreve o porto como uma estrutura simples. “Hoje, lá é o porto do seo Josozinho, o negociante. Porto, lá como quem diz, porque outro nome não há. Assim sendo, verdade, que se chama, no sertão: é uma beira de barranco, com uma venda, uma casa, um curral e um paiol de depósito”.

 


Muito parecido com a lembrança de um morador do outro lado do mesmo trecho do rio, mas em Lassance. "Onde tinha esse porto, antigamente, chegou a ter um ponto de ônibus. Manuelzão e Guimarães Rosa chegaram a visitar. Lá tinha uma venda de Joãozinho Gustavo. Antigamente, pai, Raimundão da Barra, que era conhecido por contar causos, ia muito lá. Gostava de comprar umas pingas e levar uns peixes. Comprava doce pra gente, balas. E ali era também o transporte do pessoal que não tinha carro. Iam em ônibus coletivo, em Kombi. Era muito bom esse tempo”, relembra o aposentado Gilmar de Fátima Ferreira, de 57 anos.

 


Gilmar tem um rancho na barra do Rio-de-Janeiro com o Rio São Francisco, onde pesca e recebe pescadores de outros municípios e estados interessados em pescarias e pouso. Da sua barranca ficam postadas várias varas de pesca no aguardo de fisgadas de curimbas, piaus e mandis, entre outros. Os barcos a motor e a remo também ficam na beirada do Velho Chico. Aqueles que são a motor para o Rio São Francisco. No de-Janeiro, onde Riobaldo e Diadorim navegaram, só com remos, porque a água é tão pouca que as hélices não passam pelas faixas de pedras quase aparentes sem se danificar. “No Rio-de-Janeiro corria muita água. Tinha muito peixe nessa região aqui. Hoje acabou muito, foi assoreando com a seca. Foi acabando com o rio. A pesca predatória também contribuiu muito para o pouco peixe”, conta.

 


Os regimes do São Francisco sempre interferiram no Rio-de-Janeiro, como observou Guimarães Rosa em seu romance. O mesmo ocorre atualmente, mas de uma outra forma. “A descida do barranco é indo por a-pique, melhoramento não se pode pôr, porque a cheia vem e tudo escavaca. O São Francisco represa o de-Janeiro, alto em grosso, às vezes já em suas primeiras águas de novembro”, publicou Rosa, em 1954. “Hoje o rio é controlado pela Represa de Três Marias. Se fecham as comportas, reduz demais a vazão de água aqui e quando abrem, aumenta (porque o São Francisco represa o de-Janeiro)”, afirma Gilmar.

 


Navegação tolhida

 

Ele diz sentir falta dos tempos de abundância de águas, mesmo sem a regulação da vazão do Rio São Francisco. “Esses rios (afluentes do Rio São Francisco) eram todos navegáveis. Hoje, essas firmas de reflorestamento de eucalipto, a criação de gado e a destruição das veredas foram diminuindo as nascentes, as veredas e reduzindo o nível dos rios. Antigamente, dava para navegar no Rio-de-Janeiro até a Barra das Pedras, uns quatro quilômetros antes do encontro com o São Francisco. Hoje, mal dá para sair da barra porque o barco pega o motor (a hélice colide nas pedras do leito). Só no remo mesmo”, disse.

 


Canoísta com participação em competições nacionais e internacionais, Lauro Pereira, de 58 anos, acompanha a agonia do de-Janeiro. “Eu me sinto impotente e muito triste por perceber que, a cada ano, o Rio-de-Janeiro vem sofrendo com a diminuição de suas águas, o que afeta e transforma sua fauna e flora”, lamenta o canoísta, que pratica a modalidade esportiva no rio.

 

 

Ele é também dono de uma pousada, distante apenas 600 metros do local onde o Rio-de-Janeiro deságua no São Francisco, ponto do primeiro encontro de Riobaldo e Diadorim. O local, no limite dos municípios de Três Marias e Lassance, fica distante 52 quilômetros do reservatório da Barragem de Três Marias, que libera água para regularizar o nível do Velho Chico durante a estiagem.

 

 
“Também observo a diminuição de cardumes e alevinos durante a piracema”, afirma Lauro Pereira. Ele chama atenção para as belezas do de-Janeiro. “É um rio muito lindo, ora calmo, ora com rochas e corredeiras de pequeno grau”, assinala. “(Temos) água muito limpa na maior parte do ano, mas o baixo nível anual tem dificultado os acessos fluviais”, completa.

 

 


Para o canoísta e dono de pousada na área ribeirinha, a redução do volume do Rio-de-Janeiro está vinculada diretamente às perdas de nascentes, das veredas. Como medida para conter o processo de degradação e fazer o rio voltar a correr como há 70 anos, ele sugere: “É preciso maior fiscalização (dos órgãos ambientais) e criação de novos reservatórios naturais. Temos que cuidar das nascentes e veredas que dão vida ao Rio-de Janeiro'", afirma.

 


Lauro Pereira pratica canoagem há 36 anos. Ele já conquistou 16 títulos nacionais e seis estaduais, disputando também competições internacionais. O morador das margens do Rio-de-Janeiro e do Velho Chico se prepara para a disputa do Campeonato Mundial de Canoagem Master (acima de 55 anos), que será realizado de 12 a 18 de agosto deste ano.

 

 

 

O Estado de Minas publica desde o último domingo a série “Veredas mortas”, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: veredas”. A íntegra das reportagens, galerias de fotos e vídeos pode ser consultada na internet, pelo em.com.br.

 

 

Peixes são oferecidos em ponto de pesca às margens do de-janeiro

Peixes são oferecidos em ponto de pesca às margens do de-janeiro

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press