Noroeste e Norte de Minas Gerais, Trijunção Minas, Bahia e Goiás – Histórias dos territórios percorridos e descritos por Guimarães Rosa em sua obra-prima “Grande sertão: veredas” se perpetuam, ainda que a duras penas, fora das páginas do romance, na memória e nos modos de vida de comunidades locais. Nos rincões do mesmo sertão, ainda há quem tenha assistido ao fim da jagunçagem e sobreviva das veredas, apesar do sofrimento com secas, calor, tempestades e eventos extremos climáticos relacionados à devastação ambiental. No Noroeste de Minas, em Arinos, no Vale do Ribeirão Pacari, um afluente do Rio Claro que é contribuinte do Rio Urucuia, a reportagem do Estado de Minas encontrou veredeiros que ainda cultivam hábitos ancestrais de vida na natureza e guardam as histórias de valentia desse povo determinado. É o que mostra a oitava reportagem da série “Veredas mortas”, que retrata a devastação do sertão de Guimarães Rosa em Minas, Bahia e Goiás, sob o título inspirado no nome que o escritor primeiro deu a seu romance mais importante.
Como as veredas se escasseiam em um cenário que se distancia cada vez mais do descrito por Guimarães Rosa na obra lançada em 1954, há de se supor que o modo de vida tradicional entre as palmeiras de buritis, que só crescem nesses alagadiços, também caminha para a extinção. Não sem resistência, mostra a comunidade dos Lengos, que a reportagem do EM encontrou em um ermo, depois das plantações de Chapada Gaúcha, sertão de Arinos, cerrado adentro. Ali, dois casais de idosos ainda vivem de forma similar à que Rosa descreveu em “Grande sertão: veredas”. São seis quilômetros atravessando por terras e fazendas onde é preciso negociar a passagem, e a presença de Jurandir Ribeiro Gomes, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), foi fundamental para estabelecer esse contato “diplomático”.
No caminho, revoadas de araras-canindé azuis e amarelas em gritaria e buritizais com raros buritis jovens. “Aqui não tem queimadas. Com isso, os buritis brotam e crescem. A coisa mais difícil do sertão tem sido ver buritis jovens nas veredas”, conta Jurandir, que é da comunidade tradicional de Chapada Gaúcha e conhece muita gente da região, que faz parte de sua vida quase como uma grande família.
É quando o Ribeirão Pacari contorna um pé de morro com árvores fechadas que se abre a vereda onde moram os Lengos. Vereda que nem cadastrada é no Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG), constatou a reportagem. A casa comprida tem duas construções distintas. Uma de tijolos de barro cru cinzento como o chão e outra de pau a pique armado entre varas. Tudo material local, vindo da vereda e dos barrancos. O telhado é de palha de folhagem de buriti seco, tombado, que os moradores juntaram, encaixaram e apararam, igualando as franjas no caimento para formar uma calha. Uma casa rústica e típica dos veredeiros do sertão de Guimarães Rosa, sem energia elétrica de rede – há apenas um painel solar para emergências –, assoalho de terra batida e móveis construídos com a madeira da vereda e da mata. Não há geladeira nem fogão a gás. Fogo, só na lenha. Para cozinhar precisa-se de óleo esmagado dos cocos de buritis e de outras espécies do cerrado.
Desconfiados, os dois veredeiros se adiantam para conversar no terreiro, entre a folia de cães e a carreira de galinhas criadas soltas. Deixaram as mulheres no interior da casa, só espiando das frestas aquela gente de fora que não conheciam. O senhor João Teixeira Lisboa, de 75 anos, com dificuldades auditivas, mas disposição para contar de tudo, e o cunhado dele, Salvador Xavier da Silva, de 79, alegre e hospitaleiro, foram se soltando e logo todos já estavam à vontade para relembrar suas andanças pelo sertão e servir um café caboclo quentinho.
João conta que eles moravam em área desapropriada para o Parque Grande Sertão Veredas na década de 1980 e sua história mostra a saga dos veredeiros e sertanejos: sempre à procura de melhores condições, lutando contra a seca e a cobiça. “Morava e folgava lá no parque. Tinha nosso gado. Mas não foi podendo fazer mais queima. A gente teve de sair. Compramos aqui (terra em Arinos). Mas era muito gado e a terra pequena. Demos a (terra) daqui para comprar a outra. Mas a chuva minguou. Chuva pouca. Tinha uma veredinha com água correndo. Pensamos: água aqui não seca. A água acabou. Acabaram os buritis. Tudo. Na cabeceira lá morreu tudo. Tivemos de conversar com o dono daqui e voltamos. A vereda daqui é boa de água, viu?”, conta João.
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Mas o cunhado, Salvador, lembra de muita violência nas disputas por terras fora do parque. “Chegou grileiro lá, tirou as nossas terras, jogou nós pra fora. Pagou mixaria. Naquela época eu era menino. Não podia resolver nada. Tomaram muita terra do povo meu de graça. Hoje lá tem muito é sem-terra. Eles entenderam que o povo não é de lá, que só tinha a posse e foram tomando tudo. Acabou que nem eles ficaram com essa terra lá, ficou tudo no assentamento”, afirma.
Salvador conta que o grupo sofreu muita dificuldade e que as veredas e o cerrado eram seu sustento. “Antigamente era tudo muito sofrido, quando era menino. A gente plantava arroz e tinha de tirar no pé e socar no pilão. E era assim, criando galinha e plantando o arroz. Tinha bode também. Era uma vida que só Deus que sabe. Comia mandioca sem sal. Só ferventada crua. ‘Quentava’ o arroz sem sal e depois punha o sal por riba e comia. O dia que estava sem nada, ia no rio e pegava aqueles mandizinhos. Comia com arroz e era só”, recorda-se. E continua: “O pessoal fazia roça e apanhava eu de menino para vigiar. Ia cedinho, no escuro, para os bichos não comerem o arroz. Menino hoje já nasce é calçadinho e vestidinho. Eu fui calçar foi a sandália de couro. Só para não sujar os pés quando lavava. Depois era pé no chão”, conta.