João e salvador no caminho de casa, no entorno de vereda e em harmonia com o ecossistema -  (crédito:  Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

João e salvador no caminho de casa, no entorno de vereda e em harmonia com o ecossistema

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


Noroeste e Norte de Minas Gerais, Trijunção Minas, Bahia e Goiás – No vaivém para sobreviver no sertão mineiro, jogados de um lado para o outro, os veredeiros João Teixeira Lisboa, de 75 anos, o cunhado dele, Salvador Xavier da Silva, de 79, e as mulheres de ambos, hoje estabelecidos em um terreno em Arinos, colecionaram histórias. A última mudança de casa foi precedida de muita dúvida. Mas, para eles, o importante era seguir juntos. “Ele (João) me perguntou: ‘Salvador, você vai lá mais eu? Se você não for, eu não vou morar lá não.’ Aí, nós ‘peguemos’, ‘joguemos’ as ferramentas nas costas. Viemos para a beira da vargem onde tem um barracão ali (hoje). Começamos a fazer aqui (a casa). 'Botemos' só a loninha por riba. Fizemos a caminha aqui. Ele fazendo a janta e eu fazendo a cama de vara, para dormir de noite. E a onça passava bem aqui, ó. A gente via bem o rastro dela. Passou aqui e nem mexeu com 'nóis'”, contou.

 


“Agora com os cachorros aqui, ela (a onça) não vem mais não. Mas comeram dois cachorros já. Daí eu fui na beira de pé e capinei a beira do rio e limpei assim ao redor para elas (as onças) ficarem mais velhacas. Aí elas sumiram. Nosso medo é de pegar as mulheres lavando vasilha na beira do rio”, diz Salvador, indicando os pontos de possíveis espreita dos felinos predadores. “Já vi sucuri lá (na região do Parque Grande Sertão Veredas) de 25 palmos. Afastar dela lá tinha de ser andando de costas, se virar ela te boqueia. Você via um bicho passando na água por riba assim. Eu via aquilo e ia afastando de ré. E depois arrancava embora dali para fora. Aí ela afundava, a cabeça ia para o fundo do rio. Tem história de que come gente, que pegou você na boca, já era”, conta.

 

 


Perguntados sobre os jagunços, que eram os braços armados dos proprietários do sertão, os dois contam que já em sua época eram bem poucos, mas que os antigos viviam aflitos com essas tropas e guerras, como as narradas por Guimarães Rosa. “Jagunço é matar o povo. Tinha, moço. Nem podia falar nada que o jagunço estava lá, né (simula um revólver com a mão e os dedos). Se alguém falava que jagunço estava falando alguma coisa de você, ó (gesticula com a palma da mão para indicar a fuga). Saía feito um doido aí. Aqui tinha sim uns bandidos assim, que eram bem ruins. Teve uns que quando chegou a polícia, ó (repete o gesto de fuga), até hoje (não foi pego). Passavam nas terras pedindo as coisas, eles e os ciganos de multidão. Mas os ciganos não mexiam com nada nosso não, só faziam dormir”, recorda João.


“Meu avô contava que os jagunços na época dele eram piores. Que matavam gente, matavam gado. Ninguém falava nada. Antigamente, teve uma época da revolta desse povo. Um chegou com meu avô no meio, querendo saber dele e ele disse que não sabia de nada não. ‘O que estiver aqui vocês podem matar, podem comer. Vou confrontar com vocês não’. Aí eles pegavam e iam embora. Naquela época da revolta, eles chegavam matando gado, batendo em mulher. Mas não era do nosso tempo não, meu avô é que contava”, se recorda Salvador.

 


A reportagem chegou a adentrar ainda mais pelas estradas de fina areia branca nos sertões e fazendas de Arinos atrás do filho de um dos jagunços de Antônio Dó (?-1929), um dos mais conhecidos cangaceiros que já pisaram em Minas Gerais. O bandoleiro do São Francisco, nascido em Pilão Arcado (BA), ficou conhecido por se revoltar no Nordeste contra a Justiça e as forças legalistas. Causou terror no Noroeste e Norte de Minas. Fez nome, fama e dinheiro. Rosa o citou no hall do cangaço entre os líderes e com destaque pelo perigo. “Joca Ramiro – grande homem príncipe! – era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. Só Candelário se endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos era o pelo preço de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antônio Dó – severo bandido”.


O jagunço a serviço de Dó era chamado de Miguel Fogoso e teve muitos filhos. Um deles, Maturino, foi procurado pela reportagem. Vive em fazenda afastada, atrás de montes de cerrado e pontes sobre córregos secos. Uma senhora, muito simpática, toma conta dele, que, idoso, vaga pelo terreno limpando folhas caídas. Quando perguntado sobre seu pai, ele deixa um ancinho de lado, na cerca, se retrai e se afasta.

 

RECURSOS NATURAIS

 


Se já não há jagunços, nem por isso a vida é fácil ou segura no sertão. Hoje, a devastação do ecossistema é ameaça contínua. E preservá-lo é o grande desafio. Que o digam veredeiros dispostos a fazer esse esforço. Mas quem não desiste encontra nas veredas caminhos sustentáveis. Veredas são fonte de recursos florestais não madeireiros – fruta, sementes, fibras, folhas e flores, mel –, podem ser ponto de turismo ecológico e até de manejo florestal sustentado. Tem de tudo. O que tem faltado é respeito. E as consequências recaem, principalmente, sobre os povos tradicionais, lembra a bióloga Debora Guimarães Takaki. “A redução do volume hídrico vem alterando as relações entre populações e natureza, limitando seus modos de vida e impactando diretamente a biodiversidade local”, afirma a especialista.