Dona Delícia sofre efeitos da devastação:

Dona Delícia sofre efeitos da devastação: "Minha família perdeu a fonte de renda"

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


Noroeste e Norte de Minas Gerais, Trijunção Minas, Bahia e Goiás – O pequeno agricultor Santino Lopes de Araújo, mora quase dentro da Vereda da Água Doce, que fica na sua pequena propriedade, no município de Bonito de Minas. O ecossistema é mantido integralmente conservado por obra de Santino, um autêntico veredeiro preservacionista. Ele não desmata perto da vereda e adota a prática agroecológica, com as árvores maiores de pé. Também produz mudas de buritis e de outras espécies do bioma do Cerrado, como o pequi. Um sopro de esperança no grande sertão, palco da obra-prima de Guimarães Rosa, hoje cada vez mais devastado.

 


O morador disse que a agressão à natureza parte de pessoas que não têm vínculo com as veredas. Segundo ele, os pequenos agricultores cuidam dessas áreas, pois sabem que dependem da água delas. “Os veredeiros plantam um ano em uma área. No ano seguinte, cultivam em outro terreno, fazendo um rodízio para manter a vereda preservada”, descreve.

 

 


Santino destaca a importância da conservação das veredas e de toda a vegetação do bioma. “Ao manter uma árvore de pé, a gente está cuidando não somente do homem que produz, mas também dos animais, dos pássaros e todos os seres vivos que dependem da natureza”, salienta. ”Derrubar uma árvore do Cerrado para fazer carvão é a mesma coisa que matar a galinha dos ovos de ouro de quem vive na região”, compara Santino.

 


Maria Aparecida de Almeida, de 24 anos, mãe de dois filhos, vive em uma casa de chão batido perto da Vereda Riacho Claro, na comunidade de mesmo nome, no município de Bonito de Minas e também se declara preservacionista. “A gente sempre preserva a vereda e nunca corta as árvores.” Ainda assim, ela diz ter percebido nos últimos anos a diminuição da água do ecossistema, que faz parte da Bacia do Rio Pandeiros. Maria Aparecida Lopes de Sena, de 33, do mesmo lugar, destaca a importância da nascente. “Se não existir a vereda, não tem como a gente viver aqui”.


Ainda no município de Bonito de Minas, o veredeiro João Barbosa de Sena, de 53, que mora próximo à Vereda da Almescla, lembra que sua família depende da renda retirada do aproveitamento do coco de buriti e dos seus derivados e que, por isso, cuida da preservação da natureza.

 

Maria Margarida Lopes de Sena, mulher de João Barbosa, entretanto, reclama do isolamento do lugar, e diz ter dificuldades para se deslocar até a cidade para comprar mantimentos ou mesmo conseguir atendimento médico. “Certa vez, minha filha precisou ir ao médico e a gente teve que andar 28 quilômetros a pé até a cidade (Bonito de Minas)”, relatou. Ela também disse que a família está à procura de ajuda para a compra de telhas para a sua moradia, que tem uma parte coberta com palhas de coco e lona.

 

FOGO FATAL

 


Como se não bastassem as dificuldades do dia a dia nessas áreas isoladas, o secamento das veredas no sertão mineiro atinge em cheio veredeiros que sobrevivem da pequena produção e do extrativismo. Exemplo dessa consequência nefasta está na comunidade de Buritizinho, na Área de Preservação Ambiental (APA) do Peruaçu, no município de Januária. Ali, em 2017, a vereda do Peruaçu foi queimada ao longo de uma extensão de 10 a 15 quilômetros em ação que deixou um rastro de devastação. Além da destruição de centenas de pés de buriti, do secamento do rio que passava no local, mortes dos peixes e da destruição da biodiversidade, o incêndio provocou perdas irreversíveis para moradores que tinham a vereda como fonte de água e de sustento.


Os danos sofridos são relatados pela pequena agricultora Delícia Fernandes da Mota, de 65 anos, que mora a 500 metros da vereda devastada pelo grande incêndio em Buritizinho. Ela conta que colhia os frutos dos buritizeiros da vereda para a produção artesanal de doces e outros produtos que fazia para vender. “A gente 'tirava' farinha de buriti. Fazia doce, geleia e também o óleo de buriti. Com as mortes dos pés de buriti devido ao incêndio, minha família perdeu a fonte de renda”, lamenta dona Delícia. Ela faz parte da Cooperativa dos Agricultores Familiares e Extrativistas do Vale do Peruaçu (Cooperuaçu), apoiada pelo Sebrae Minas e pelo WWF-Brasil por atuar com a produção sustentável, aproveitando os produtos do extrativismo do Cerrado como o coco de buriti, o pequi e araticum.


A agricultora extrativista relata que após a grande queimada na vereda, sete anos atrás, o Rio Peruaçu secou e os peixes morreram. O sinistro também provocou a morte de pássaros e de outros animais que viviam no ecossistema. “O meu sentimento de tristeza é muito grande. O fogo acabou com a vereda, secou o rio, matou os buritis e acabou com tudo”, desabafa Delícia Fernandes.

 


Também morador de Buritizinho, o pequeno produtor José Alves Faria conta que antes do incêndio, a vereda do Peruaçu vivia em equilíbrio, com um enorme buritizal, um brejo com muita água e cardumes. “Era muita fartura. Tinha muita traíra, piau, bagre e outros peixes”, recorda. Ele conta que na área próxima da vereda, além de centenas de buritizeiros, havia frondosas árvores do bioma do Cerrado, como sucupira e pequizeiro, que tombaram com o fogo.


José Alves relata que, após a destruição causada pelas chamas na vereda, além do fim dos buritis e da biodiversidade, a fonte de água no local secou, impedindo os agricultores da região de fazer plantios o ano inteiro. “Agora só junta água no antigo brejo quando chove”, disse.


O agricultor José Correia da Mota, de 72 anos, disse que fez um plantio de feijão perto do Rio Peruaçu, que era irrigado com a água do manancial. Tinha a esperança de colher 30 sacas do cereal. Com o incêndio na vereda perdeu tudo.

 

SAÚDE EM RISCO


A devastação ambiental provoca também danos à saúde da população. “Desmatamento produz a queda da umidade do ar afetando a função respiratória e promovendo as doenças pulmonares, da garganta e da pele assim como a desidratação”, ressalta o médico e ambientalista Apolo Heringer Lisboa, fundador do Projeto Manuelzão.


Em alguns pontos é a falta de saneamento básico que prejudica a saúde. Na região das veredas do Peruaçu, há uma endemia de xistose, doença transmitida pelo Schistosoma mansoni. O vetor é um caramujo, presente no Rio Peruaçu. A pequena agricultora Fernandes da Mota, da comunidade de Buritizinho, disse que dois filhos delas foram contaminados pela enfermidade e precisaram de tratamento.


A endemia da doença é confirmada pela agente de saúde Ruth Vicente Lopes, moradora da comunidade de Areiao, da região do Peruaçu, que é ligada à Secretaria Municipal de Saúde de Januária. Ruth disse que atende seis comunidades rurais, com permanente trabalho de controle da xistose, que inclui testes da população, registrando muitos casos da enfermidade. Ela informou que nos últimos quatro anos foram registrados pelo menos dois óbitos causados pela xistose na sua área de atuação. O médico e ambientalista Apolo Heringer Lisboa explica que a doença está diretamente relacionada às más condições de saneamento básico.


Ciclo da xistose


A doença é resultante de um ciclo da parasitário complexo, envolvendo seres humanos em regiões sem banheiros apropriados, cujas fezes caem nas águas de lagoas e riachos ou em áreas úmidas de plantações. Ovos do parasita Schistosoma mansoni presentes nas fezes de pessoas acometidas pela xistose eclodem na água, larvas microscópicas entram em um tipo de caramujo que vive agarrado em ervas e barrancos nas margens dos cursos d’água, crescem e se transformam em cercárias. Essas terminam contaminando pessoas que nadam ou trabalham com pés e pernas na água sem proteção, explica o médico e ambientalista Apolo Heringer. A pessoa infectada adoece. E as cercárias se tornam Schistosoma mansoni adultos e se acasalam.

 

O Estado de Minas publica desde o último domingo a série “Veredas mortas”, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: veredas”. A íntegra das reportagens, galerias de fotos e vídeos pode ser consultada na internet, pelo em.com.br.