Noroeste e Norte de Minas Gerais, trijunção Minas, Bahia e Goiás – Pela primeira vez a caminho de seu teste de fé para vencer o mais inóspito dos terrenos, o árido Liso do Suçuarão (na grafia original), o personagem narrador de “Grande sertão: veredas” (1956), Riobaldo, cita locais perigosos no percurso: “Estávamos entortando era para a Serra das Araras – revinhar aquelas corujeiras nos bravios de ali além, aonde tudo quanto era bandido em folga se escondia”, escreveu Guimarães Rosa na sua obra-prima. Mas essa mesma Serra das Araras do romance é, na vida real, um destino para os sertanejos devotos que se encontram todo dia 13 de junho para a celebração da festa do padroeiro, Santo Antônio, desde que a imagem dele foi encontrada em uma gruta, há 250 anos.
Como outros fiéis em outras cidades, eles vêm de todas as partes do sertão, trazendo, além de sua devoção e pedidos de graças, relatos de devastação ambiental e das agruras que têm sofrido com lavouras e criações, diante das secas prolongadas, das tempestades devastadoras e das ondas de calor implacáveis em meio a eventos climáticos extremos.
Dos 55 municípios e alguns distritos levantados pela equipe de reportagem do Estado de Minas entre os citados no livro “Grande sertão: veredas” ou percorridos por Guimarães Rosa para escrevê-lo, Santo Antônio de Pádua é padroeiro de nove. Em seguida, com maior número de cidades que lhe rendem devoção, aparece Nossa Senhora da Conceição, padroeira de outras oito.
No total, os católicos do sertão de Guimarães Rosa direcionam sua fé a 23 padroeiros. Uma devoção que os ajuda a enfrentar as agruras e a degradação de suas terras e das tradições de suas comunidades, como mostra a 11ª reportagem da série “Veredas mortas” – referência ao primeiro título proposto pelo escritor para sua obra maior, há 70 anos, e que na atualidade evoca um perigo real e cada vez maior por aquelas bandas.
O primeiro destino da equipe de reportagem em busca da fé que fortalece o sertanejo em sua batalha contra as ameaças e as durezas da terra foi a festa de Santo Antônio na Serra das Araras, com ponto alto no dia dedicado ao padroeiro: 13 de junho.
Mas chegar ao distrito no município de Chapada Gaúcha, só acessível por estrada de terra em péssimas condições, já representa uma “via crucis”: são 38 quilômetros, que podem consumir mais de hora e meia. Nada disso desanima os fiéis, em multidão que chega a 60 mil pessoas nos três dias principais da festa, quando tomam a pracinha da Igreja Santo Antônio, as barraquinhas e ruas dos arredores do povoado às margens do Rio Acari.
“A gente vem para a festa para mostrar a nossa fé em Santo Antônio. Ver se tem uma salvação para esse mundo. É violência e poluição na cidade. E aqui a gente vê o povo indo embora. As coisas se acabando...”, diz a lavradora Maria do Carmo Oliveira dos Santos, de 60 anos, moradora de Januária, no Norte de Minas.
Nos 127 quilômetros que separam a sua casa da Serra das Araras (distante três horas de viagem), as paisagens já não são as mesmas da infância. “Estão acabando com tudo. Só eucalipto e plantação tomando conta de tudo, até onde dá para ver. No meu tempo de criança, tinha água nascendo em todos os lugares: nas veredas e no cerrado. Tinha peixe demais. Tomava banho nas veredas. Eram como as veias do corpo, a vida do cerrado. A nossa água. Hoje, isso não existe”, lamenta a lavradora.
“Rezavam, indo da miséria para a riqueza”
“Grande sertão: Veredas”, João Guimarães Rosa
A água evaporou para a lembrança
O impacto da intervenção humana sobre as veredas é o que mais impressiona a produtora rural Selma Tomás Soares de Aguiar, de 42 anos, de Riachinho. Ela e o filho Álisson Rios Estácio Aguiar, de 13 anos, saíram da cidade onde vivem, no Noroeste de Minas, para a festa de Santo Antônio em uma viagem de duas horas e 40 minutos por 128 quilômetros. “As veredas estão secando. Os buritizais estão morrendo. Faziam parte da minha história. Na época dos meus avós – eu era menina de uns 11 anos – meu pai plantava arroz nos brejos alagados com água de vereda e eu vigiava os passarinhos para não comerem a semente”, relembra.
A fartura de água e a passarada que ela atraía, no entanto, ficaram na memória. “A gente não pode plantar arroz ou feijão mais sem irrigar com água de poço. A vereda secou e os rios não aguentam todo mundo tirando água”, afirma a produtora rural. “Tenho saudades daquela época. Meus filhos não vão ver mais os buritizais que a gente viu. Quantas paisagens bonitas acabaram...”, suspira Selma.
Um dos piores impactos das mudanças climáticas para o lavrador Antônio Lopes Marques, de 49 anos, da comunidade quilombola de Buraquinhos, é não poder mais confiar que chuva e seca vão ocorrer na época certa. Ele planta mandioca, feijão e arroz para alimentar a família e vende o excedente na sede do município de Chapada Gaúcha. “Para quem vive da terra, o clima piorou demais. A gente perde semente, muda, safra... A chuva que era para vir, vem pouca ou fora do tempo. Acho que a culpa disso é dos desmatamentos, da falta de água. Culpa do ser humano”, testemunha ele.
Identidade em agonia
“As veredas e seus buritis estão morrendo. Isso pode ser a morte do sertão.” O alerta é do reitor do Santuário Diocesano Santo Antônio de Serra das Araras, padre Rodrigo Pacheco – ele próprio um sertanejo que veio de Januária e que define a formação originalmente rica em água como uma identidade para o povo local, intimamente ligada à fé.
“Muitas vezes, é o desmatar de forma ilegal ou a falta de um manejo sustentável que acabam com tudo. Trabalham a terra de qualquer forma, não se preocupam de fazer aceiros (corredores para impedir que o fogo passe de uma área para outra)”, afirma o padre. Uma degradação progressiva e que se reflete em toda a região, observa Rodrigo Pacheco.
“O fogo, a seca e os desmates estão enfraquecendo o sertão. As árvores vão se perdendo e a gente vai vendo a morte do sertão e de tantas veredas, deixando os buritis como cemitérios. Quando eu cheguei aqui, era muita água. Ia muito na vereda da cachoeira da Arara Vermelha, que deságua no Rio Catarina. Dói o coração ver a quantidade de água só diminuir depois do grande incêndio que queimou a vereda”, testemunha o religioso.
A fibra e a fé do sertanejo, por outro lado, são motivo de esperança, segundo o sacerdote. “O que traz esperança é saber que a fé do sertanejo pode resistir a tudo isso e mudar. Veja a fé desses homens e mulheres vindos de tão longe. Trazidos pela sua fé”, diz, enquanto indica os devotos. “É o que precisa ser usado para defender o meio ambiente. Deus tudo pode e o sertanejo, com a sua simplicidade, suas manifestações culturais, tem esperança de que tudo vai mudar. Também acredito. Existe uma harmonia. Um sertão em todo mundo que precisa ser salvo”, afirma Rodrigo Pacheco.
A fonte da fé
Conta a tradição que, há 250 anos, jesuítas foram perseguidos na região de Serra das Araras pelo marquês de Pombal. Na fuga, deixaram uma imagem de Santo Antônio escondida em uma gruta. “Vaqueiros a encontraram e trouxeram para a igreja que existia aqui e era construída em palha de buriti, anterior à igreja de hoje”, conta o padre Rodrigo Pacheco, reitor do Santuário Diocesano Santo Antônio de Serra das Araras, sobre a origem da devoção ao padroeiro.
Acompanhe a série
Esta reportagem integra a série “Veredas mortas”, do Estado de Minas, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: Veredas”. As reportagens começaram a ser publicadas no domingo (14) e a íntegra das reportagens, galerias de fotos e vídeos estão disponíveis em nosso site.