Músicos participam de tradições como a folia de reis em Serra das Araras: mistura cultural e reencontro de comunidade -  (crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Músicos participam de tradições como a folia de reis em Serra das Araras: mistura cultural e reencontro de comunidade

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

O sertão mineiro preserva um rosário de manifestações que marcam a devoção religiosa e os costumes de comunidades tradicionais localizadas na Bacia do Rio São Francisco. O antropólogo e pesquisador João Batista de Almeida Costa, professor aposentado da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), salienta que as festas são uma expressão preservada por fazerem parte da identidade cultural das comunidades.

 


Marcam também um momento de reencontro e congraçamento das populações, com a participação de pessoas que migraram para outras cidades em busca de emprego e renda e retornam aos lugares de origem nas ocasiões festivas.


“As comunidades do sertão preservam seus costumes e tradições com as festas. As manifestações são atualizadas por serem eventos que celebram a própria comunidade por meio de seus santos. Há danças tradicionais, a comensalidade – quando o festeiro alimenta todos os presentes –, sendo, também, um momento em que os membros da comunidade que migraram retornam para reencontrar sua gente e fortalecer o sentimento de pertencimento”, explica Almeida Costa.

 


O antropólogo afirma que as festas de comunidades formadas ao longo de cursos d'água têm o seu lado de sincretismo religioso. “As manifestações religiosas dos ribeirinhos se interpenetraram em manifestações religiosas católicas, dando fundamento ao que os estudiosos denominam ‘catolicismo popular’, que tem no culto ao santo seu eixo de organização”, descreve, afirmando que são também celebrações das próprias comunidades em sua solidariedade e fraternidade coletiva.

 

Caboclo d'água, o “compadre”

 

O estudioso lembra que as populações sertanejas também têm suas crenças relacionadas com as águas e o seu lado folclórico. “Os ribeirinhos possuem em sua cosmovisão o entrelaçamento do espaço humano com entidades do rio, como o caboclo d'água, e da mata, como o curupira, e com eles mantêm algum tipo de relação”, disse.


“Tanto as entidades do rio quanto as da mata são abertas ao estabelecimento de relações de compadrio e, por isso, chamadas de compadres. Enquanto o caboclo do rio toma conta dos membros das famílias de seus compadres, os da mata, além de protegerem os animais, desorientando caçadores, protegem seus compadres quando percorrem o interior da vegetação”, descreve o pesquisador.

 

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João Batista de Almeida Costa lembra que a região do Rio São Francisco no Norte de Minas, a mesma que João Guimarães Rosa descreveu como o ambiente das veredas percorridas por Riobaldo, Diadorim e outros personagens de “Grande sertão”, teve ocupações indígenas e de quilombolas, que também influenciaram em crenças e costumes.


Nos anos 1640, explica, grupos indígenas confederados e aliados a quilombolas começaram a incendiar canaviais no Recôncavo Baiano, numa tentativa de deter a penetração de colonizadores. Os indígenas eram sabedores das consequências do contato com os europeus, que disseminaram doenças dizimando aldeias inteiras. E os quilombolas também eram submetidos a forte opressão, acrescenta.


“Os viajantes europeus que percorreram a região Norte mineira, notadamente o francês Saint-Hilaire e os ingleses Richard Burton e James Wells, narram em seus relatos de viagem a presença, quase total, de negros ocupando as margens do Rio São Francisco e também o seu interior. Mas dos indígenas encontraram poucos remanescentes, como os Gamelas, hoje Xakriabás, e os Anaiós”, explica o especialista. 

 

 

“Só era uma procissão sensata enchendo estrada, às poeiras, com o plequeio das alpercatas, as velhas tiravam ladainha, gente cantável”

“Grande sertão: Veredas”, João Guimarães Rosa

 

 

A cavalhada: 170 anos de tradição

 

Em Brejo do Amparo, distrito do município de Januária, a caminho sa área de veredas do Rio Pandeiros – em Bonito de Minas – é preservada uma manifestação que vem dos tempos do Brasil Colônia. Trata-se da Festa da Cavalhada de Brejo do Amparo, que ocorre há 171 anos, nesse caso, por influência da colonização portuguesa.


“A tradição foi trazida ainda na época dos colonizadores portugueses que, com os padres jesuítas, tinham a missão de catequizar os povos indígenas”, relata a advogada Mayara Moreira Magalhães, que coordena os festejos no distrito. A festividade acontece de dois em dois anos – em 2024, o está marcada entre 20 e 22 de setembro.

 

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Conforme explica a coordenadora, durante a manifestação ao ar livre, no espaço em frente à igreja do distrito, cavaleiros usam roupas coloridas e seus cavalos também são ornamentados. Representantes cristãos se apresentam com vestimentas azuis, enquanto os mouros usam vermelho, totalizando dezesseis participantes, oito em cada grupo. Os principais personagens são o Rei Ferrabrás, a Princesa Florípedes, o Príncipe Carlos Magno e o Embaixador Oliveiros.


A cavalhada tem início com o cortejo acompanhado pelo Mordomo do Mastro e os Festeiros do Divino, seguidos de uma banda de música. Rojões e fogos de artifícios anunciam o desfecho das festividades.

 

“Tenho fé, mas se os homens não fizerem sua parte, não adianta vir aqui e rezar para Santo Antônio, porque não vão ser merecedores de um milagre dele”

Antônio Lopes Marques, da comunidade quilombola de Buraquinhos e participante da festa de Santo Antônio em Serra das Araras


De acordo com Mayara Magalhães, a cavalhada de Brejo do Amparo é reconhecida como o maior espetáculo a céu aberto do interior mineiro, recebendo cerca de 10 mil pessoas durante os três dias. Recentemente, a Câmara de Januária aprovou projeto de lei declarando o festejo organizado pela associação comunitária local como patrimônio cultural, histórico e artístico imaterial do município.

 

Acompanhe a série

Esta reportagem integra a série “Veredas mortas”, do Estado de Minas, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: Veredas”. As reportagens começaram a ser publicadas no domingo (14) e a íntegra das reportagens, galerias de fotos e vídeos estão disponíveis em nosso site.