Monumento em Cordisburgo, terra de Guimarães Rosa, retrata  o escritor (ao fundo) e vaqueiros, inspirado em foto de

Monumento em Cordisburgo, terra de Guimarães Rosa, retrata o escritor (ao fundo) e vaqueiros, inspirado em foto de "O Cruzeiro"

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

 

Alexandre Guzanshe

 

A degradação progressiva do cerrado e das veredas de onde fluem águas das quais dependem afluentes da Bacia do Rio São Francisco é denunciada pela série “Veredas mortas” do Estado de Minas, que aponta os principais causadores dessa degradação. O título vem do primeiro nome que João Guimarães Rosa (1908-1967) propôs para o que se tornaria sua obra-prima “Grande sertão: veredas” (1956). E a inspiração que desaguaria no livro vem de outra fonte, que também integra a bibliografia rosiana: o diário de viagem que se tornou o livro “A boiada”.


A importância que “Grande sertão: veredas” adquiriu na literatura vem também da precisão do autor após pesquisas incansáveis, por meio da cartografia e dos registros das regiões e povos que formaram o universo do sertão de Guimarães Rosa. Resultado de um mergulho profundo do escritor, que precisou experimentar com todos os sentidos e testemunhar esse ambiente como um sertanejo, um repórter levantando aspectos da vida real ou um ator em laboratório para encarnar na ficção a alma da realidade.

 


“A boiada” é resultado das observações colhidas durante uma jornada de 10 dias a cavalo, percorrendo 40 léguas (240 quilômetros) pelo sertão mineiro, acompanhando a marcha do gado do fazendeiro Chico Moreira, primo do escritor. A comitiva começou com 18 e terminou com oito vaqueiros, liderados por Manuel Nardi, o Manuelzão (1907-1997), que posteriormente seria personagem da obra “Corpo de baile” (1956). Bois e vacas vinham da fazenda de recria, junto ao Rio São Francisco, em Três Marias, e seguiriam até a fazenda sede de invernada, em Araçaí, perto da Estrada de Ferro Central do Brasil.

 


Algumas testemunhas descreveram parte da imersão de Guimarães Rosa nesse universo. Duas delas foram o repórter Álvares da Silva e o repórter-fotográfico Eugênio H. Silva, de “O Cruzeiro”, que encontraram a tropa já no último dia da viagem. “Depois de duas horas a cavalo (um bicho astuto que sabia que não éramos cavaleiros, embora nascidos naquelas bandas), justamente no meio de uma manhã muito branda, com o Sol abrindo no mato e fazendo rebrilhar o capinzal orvalhado, divisamos a boiada”, escreveu o jornalista. “Vindo à frente, o guia nos alcançou à espera. Vaqueiro experimentado, Zito portava dois berrantes. Perguntamos-lhe pelo doutor Rosa. ‘Está lá na culatra (no fim da tropa), respondeu’.”

 

 


Ao ver o escritor, a dupla de repórteres retratou a aparência de quem não estava a passeio. “Tinha barba de três dias, vermelhão de sol e requeimado ao mais pela poeira do sertão.” Ao que Guimarães Rosa, alegre, brincou com os jornalistas diante de uma referência irônica sobre sua posição na condução do gado. “Ora, a culatra é um lugar importante. Mas minha posição predileta era de flanqueador no contra-coice do lado esquerdo.”

 


De acordo com a reportagem, a marcha diária era de sete horas, iniciada logo de manhãzinha, às 7h. “No quarto dia, o cenário mais majestoso. Andamos sempre na linha de muitos altos espigões, de morros totalmente despidos de vegetação, a não ser o capim fino dos alegres. Mas, no oitavo dia, tendo vaqueiro que a ia adiante adormecido na cela (sem sono, jogara truco até tarde daquela noite, no pouso anterior), a boiada se perdeu. Só pudemos chegar ao ponto da pousada às 6h30 da tarde, com a vaqueirada praguejando e faminta”, disse ao repórter.

 

 

Outro que contou em entrevistas sobre o processo de pesquisa de Rosa foi o vaqueiro que se tornou símbolo de preservação do Rio das Velhas, Manuelzão, que se recordava de ver “João Rosa” – como chamava o escritor – sempre anotando em caderninhos que trazia amarrados ao pescoço. Lembrava que tudo era perguntado sobre pássaros, locais, rios, veredas, histórias antigas, às vezes até com o escritor se metendo nas rodas dos vaqueiros para assuntar sobre o que falavam.


Nas anotações, a mente de Rosa

 

E foi justamente desses registros que surgiu um importante elemento representativo do processo de investigação do autor, cujos diários, em cadernetas e datilografados, deram origem ao livro “A boiada”. Na obra, observa-se um pouco da sistemática de Rosa, ao anotar de tudo como via, pulverizado, com curtas referências.

 


Foi assim que registrou impressões sobre aspectos como o gado (“bois-de-carro com capim nos chifres”); lugares do sertão (“quintal da dona Joaquina com urucum e mamão-macho”); animais (“ariranha = onça-d’água”); situações e causos (“Estouro. Dentro de Montes Claros. 1.070 reses. Ninguém sabe como aconteceu. Manuelzão ao centro”); paisagens (“Vereda do São José. Costeamos bela larga vereda – a mais bela”); locais (“Vamos pelos altos. À esquerda, o môrro da Garça. Belo”).

 


Em seguida, com lápis cinza, verde, roxo, vermelho ou azul, o repórter-escritor separava as temáticas por organizações nem sempre muito claras. Ou de vez abandonava ideias, riscando-as por completo, de suas anotações e da ficção futura, encharcada de realidade, que daria origem a “Grande sertão: veredas”.

 

O vocabulário peculiar do “Grande sertão”

 

Cerca de mil e quinhentos vocábulos, entre arcaísmos, estrangeirismos, indianismos e neologismos, estão relacionados e decifrados no livro “Universo e vocabulário do grande sertão”, de Nei Leandro de Castro. O autor iniciou a pesquisa ainda nos anos 1960 e publicou a primeira edição em 1970, com reedições em 1982 e 2023.


Vencedor do prêmio de melhor ensaio concedido pelo Instituto Nacional do Livro, o estudo contém verbetes precedidos por explicações de Castro sobre o seu trabalho, acompanhadas por uma advertência. “Não se queira conferir a Guimarães Rosa a criação de uma língua ou um dialeto. Podemos, todavia, atribuir-lhe a tradução de uma linguagem dentro da língua”, ressalta.


Leia, a seguir, alguns dos verbetes do livro, reproduzidos da edição de 2023 da editora Jovens Escribas, seguidos pela frase original de “Grande sertão”. A fonte das letras do alfabeto reproduz estilo do projeto gráfico de Danilo Medeiros.

 

A - Airar – Embevecer, pasmar: “Me airei nela, como a diguice duma música.”

Aspeito – Arcaísmo. Forma antiga de aspecto: “Medeiro Vaz estava ali, num aspeito repartido.”

Assins – Plural irregular de assim, usado para efeito sonoro. “Moitas daquele de prateados feixes, capins, assins.”


B - Bafe-bafe – Onomatopeia do barulho do vento batendo no couro estendido: “Um couro só, espetado numa estaca, por resguardar a pessoa do rumo onde vem o vento – o bafe-bafe.”

Belimbeleza – Beleza festiva. “Buriti verde que afina e esveste, belimbeleza.”

Brumalva – Aglutinação do substantivo bruma com o adjetivo alva. “Na brumalva daquele falecido amanhecer.”


C - Cererê – Segundo explicação de Rosa ao tradutor italiano, cererê seria “como uma dança, confusa, entrecruzando-se movimentos”. “A gente obra jeito de se escapar, no cererê da confusão.”

Corrute – Onomatopeia do ruído da mastigação dos animais: “Momentos calados ficamos, se ouvia o corrute dos animais, que pastavam à bruta no capim alto.”


D- Deamar – Forma enfática de amar. “Deamar, deamo... Relembro Diadorim.”

Diabo – São empregados 73 cognomes do Diabo, dentre os quais 41 – variantes e invenções – não se encontram nos dicionários.

Drongo – No Exército bizantino, um corpo de tropa ligeira de infantaria, composto de mil a 2 mil combatentes escolhidos. Usado por Guimarães Rosa como sinônimo de tropa, grupo. “Repartiu os homens em quatro pelotões – três drongos de quinze e um de vinte.”


Nonada – Termo empregado em seis períodos de “Grande sertão”, significando, em quatro vezes, a forma reforçada de negação, pelo processo de revitalização da palavra, usado comumente por Rosa, dessa feita com base na etimologia da palavra (de non, forma arcaica de não, e nada). Nesta acepção, o exemplo: “O Senhor nonada conhece de mim.”


P - Proporema – Do tupi pora-pora-eyma: sem moradores; sem habitantes; o deserto; o sertão. “Tabuleiro chapadoso, proporema.”


S- Sobrelégio – Palavra que o autor inventou para sugerir a operação de um sortilégio superior. Para M. Cavalcanti Proença, trata-se de um latinismo, lei superior. “Essa vez não podia ser. Sobrelégios?”


V - Veredal – Lugar onde há veredas. “Se estava no veredal das cabeceiras de um córrego.”

 

Z - Zebelância – O bando de Zé Bebelo. “Se a gente topar com a zebelância, você entra de bico – fala que é um deles.”