Labirintos de trilhas para chegar a áreas degradadas desafiaram equipes -  (crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Labirintos de trilhas para chegar a áreas degradadas desafiaram equipes

crédito: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


Noroeste e Norte de Minas Gerais, Trijunção Minas, Bahia e Goiás – O desafio de produzir “Veredas mortas”, série de reportagens publicada pelo Estado de Minas desde 14 de julho de 2024, e que se encerra hoje, ousou combinar a urgente denúncia da devastação das veredas e do cerrado em contraponto com as descrições do sertão imortalizadas na obra de João Guimarães Rosa, traçando, para isso, um paralelo com as paisagens retratadas pelo autor mineiro no início dos anos 1950.


Percorrer os caminhos trilhados pelo escritor em 1952, romanceados com maestria incomparável publicada quatro anos depois, no lançamento de “Grande sertão: veredas”, somente ampliou a responsabilidade de não perder a inspiração literária nem o vigor das denúncias de destruição promovida por desmatamento, plantio sem critério de eucalipto, produção de carvão e agricultura predatória, além do alerta sobre o risco da expansão de megausinas fotovoltaicas sobre áreas de cerrado.


A proposta nasceu da investigação literária do diretor de Redação do Estado de Minas, Carlos Marcelo, ao identificar a primeira menção na imprensa sobre o que se tornaria a obra máxima de Rosa: há 70 anos, coluna na revista “O Cruzeiro”, assinada por Geraldo de Freitas, mencionava o romance, ainda sob o título “Veredas mortas”. Surgia dali a percepção de que a expressão resumia a ameaça que avança sobre essa parte importantíssima do Brasil, onde nascem mananciais da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, que corre para irrigar seis estados.

 


12 dias pelo sertão


A fase de campo das apurações, com equipes de reportagem rodando pelo sertão mencionado na obra de Rosa ou percorrido pelo autor para produzi-la, consumiu 12 dias e quase 5 mil quilômetros, boa parte por trilhas e estradas de terra não mapeadas. Especialistas e ambientalistas ajudaram a mostrar a abrangência dos impactos da degradação ambiental sobre o cerrado, bem como o potencial de agravamento dos destrutivos eventos climáticos extremos.


“Para guiar o trabalho, mapeamos o sertão de Guimarães Rosa entre Minas Gerais, Bahia e Goiás, chegando a 55 municípios. Traçamos quais seriam os destinos climáticos de parte dessas cidades com o aquecimento do planeta, as secas prolongadas existentes e previstas, as tempestades concentradas, os desmatamentos, os incêndios, as erosões, a pressão sobre fauna, flora, tradição e fé”, afirma o repórter Mateus Parreiras, que participou da cobertura.

 

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Foram demarcamos locais-chave da obra de Rosa para revelar os impactos reais que consomem cenários de vida e morte dos protagonistas Riobaldo e Diadorim na ficção. “Essas buscas revelaram ainda o drama dos sertanejos que perdem seu modo de vida, sua identidade, mas resistem. Bravos que são”, testemunha Parreiras.

 

Um dos "guias" da expedição: Alberto Peterson de Almeida, Chefe do Parque Nacional Grande Sertão: Veredas

Um dos "guias" da expedição: Alberto Peterson de Almeida, Chefe do Parque Nacional Grande Sertão: Veredas

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

 


O esgotamento das nascentes

 

“Como um morador do sertão, há muito vivo incomodado ao ver as águas minguarem a cada ano, sem a percepção de grande parte das pessoas de que todo rio, seja ele um simples riacho ou 'rio grande', como o São Francisco, só existe por causa das nascentes e das veredas”, afirma o repórter Luiz Ribeiro. Com a orientação de João Roberto Barbosa de Oliveira, responsável pelo Parque Estadual Veredas do Peruaçu há 30 anos, e a companhia do repórter-fotográfico Solon Queiroz, ele rodou mais de 350 quilômetros mato adentro em um só dia, percorrendo labirintos de trilhas que seriam intransitáveis sem a ajuda do experiente guia.


A exemplo da jornada pelo Parque do Peruaçu, chegar aos locais mais impactados ou que simbolizam aspectos importantes do sertão de Rosa exigiu dias na estrada, sobretudo em precárias vias de terra, testemunha a equipe que participou da cobertura. Em muitos locais, para mostrar que rios estavam secos desde as nascentes, só abrindo picadas à força do fio do facão, mata adentro, explica o repórter Mateus Parreiras.

 

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“Áreas apontadas como de desmatamentos ou de barramentos que secam veredas estavam escondidas em fazendas. Em uma delas, em Lagoa Grande, um produtor que desmatou parte da vereda do Tamanduá-tão nos escoltou para fora de sua propriedade, deixando bem claro ser aquela sua última atitude amistosa”, lembra Parreiras.


“Para chegar até as veredas, só por trilhas no meio do mato, em unidades de conservação, caminhos cheios de bancos de areia. Tivemos a felicidade de contar com os guias, que foram os grandes parceiros. Valeu a pena, por saber que estávamos com cientistas que buscam salvar as veredas”, considera Luiz Ribeiro, em referência à ajuda de profissionais como Peterson Almeida, chefe do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, e outros que orientaram as equipes pelos caminhos.


Uma jornada que incluiu navegação por trajetos curiosos, como a estrada que passa pelo quintal da casa do casal João Barbosa de Sena e Maria Margarida Lopes de Sena, junto à Vereda da Almescla. “Lá, tive que descer do carro e orientar o motorista na travessia de uma ponte feita com tocos de madeiras soltos, cuja largura era a conta da passagem dos pneus de um carro”, relata Ribeiro.


As buscas pelas nascentes de veredas e rios onde os personagens Riobaldo e Diadorim fortaleceram sua união cobraram seu preço também na pele. “Na primeira das incursões mato adentro, em Lassance, a mistura de área de proteção permanente com pasto impregnou a vereda onde nascia o Rio-de-Janeiro de ervas cobertas com espinhos, que escondiam infestações de carrapatos. Os rasgos na pele se seguiram de picadas e calombos de ataques de marimbondos. Roupas usadas logo nesse primeiro dia precisaram ser isoladas em camadas de sacolas de plástico para controlar a praga minúscula que sugava sangue”, conta o repórter Mateus Parreiras.


Imagens do sertão em fotos e artes


“Adentrar ao sertão rosiano – no texto, na literatura ou mesmo no real, no físico – é sempre uma odisseia. Esta reportagem foi a minha quarta travessia, fora outras que fiz que resultaram no meu primeiro livro de fotografia (“Ser Tão gerais”). E, neste momento, vejo que a situação do cerrado brasileiro corre sério risco. Mas, ao mesmo tempo, vejo esperança no rosto do povo do sertão, povo lindo e acolhedor”, diz o repórter-fotográfico Alexandre Guzanshe, também participante da cobertura. “Espero que essa reportagem-denúncia sirva de alerta e que 'Grande sertão: veredas' seja inspiração para mais e mais travessias”, completa.

 

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Para a artista gráfica Soraia Piva, responsável pela arte e infografias da série “Veredas mortas”, foi desafiador sintetizar em traços a beleza da obra de Guimarães Rosa e a triste realidade de um ecossistema que agoniza por causa do homem. “É um privilégio trabalhar intensamente em uma série de reportagens tão importante, que detalha como o cenário percorrido por Rosa – e magistralmente descrito em 'Grande sertão: veredas' – vem sendo devastado desde que a obra foi publicada, em 1956”, afirma.