Um prédio em Poços de Caldas, no Sul de Minas, avaliado em R$ 25 milhões, poderá beneficiar milhares de estudantes em vulnerabilidade social da Universidade de São Paulo (USP). Isso porque o antropólogo e professor, nascido na cidade, Stelio Marras, de 54 anos, deixou em vida o imóvel como herança ao Fundo Patrimonial da universidade paulista, onde estudou e é, atualmente, professor e pesquisador em antropologia do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da instituição.


Essa é a maior contribuição já feita desde a criação do fundo, em 2021, e será usada integralmente para a concessão de bolsas de permanência para alunos de baixa renda. O imóvel abriga um cinema no térreo e um conjunto de apartamentos residenciais. A doação de bens em testamento para instituições sem fins lucrativos, como fez o professor, é chamado “Legado Solidário”.

 



 

Para Marras, a sensação é de dever cumprido. “Se eu morrer amanhã, o prédio vai ser imediatamente transferido para esse fundo da USP,  que vai bancar com os dividendos dessa doação as bolsas de permanência estudantil para cotistas sociais e raciais. Já posso morrer, mas quem sabe Nossa Senhora Aparecida, de quem sou devoto, me dê mais uns 20 ‘aninhos’ para eu continuar tentando mais colaborações para a sociedade e para o ambiente”, conta em entrevista ao Estado de Minas. 

 

 

O prédio está na família do sociólogo há muitas gerações e foi herdado por ele. “Fui um milionário sem realmente ser. Gastei muito para regularizar a documentação do prédio, impostos, custos advocatícios. Para doar, eu precisava que o imóvel estivesse registrado em meu nome”, explica. 

 

Marras não tem filhos, mas revela que, se tivesse, não deixaria tudo para eles. “Na sociedade em que vivemos, a melhor herança que eu poderia deixar é um gesto de solidariedade social”, esclarece. Em cerimônia com patronos na USP em que foi homenageado por sua doação, o professor deixou um recado às elites brasileiras. “Tornar pública a finalidade dessa minha herança é uma aposta que faço em parte das elites brasileiras, que pode então passar a conhecer e, quem sabe, agir por orientação dessas iniciativas.”


“País enfermo de desigualdade” 


“Já vivi o bastante para saber, com uma clareza solar, que quem quer tanto dinheiro já foi tido pelo dinheiro. Essa feitiçaria ruim de viver numa ilha milionária cercada por miséria. Isso seria brega, uma verdadeira aberração estética, se não fosse ainda muito pior quando se vê gente esnobando riqueza em um país enfermo de desigualdade. Viver como um milionário é viver contra a sociedade e contra o ambiente, não caberia na minha cabeça, na minha alma fazer algo diferente do que eu fiz”, declara Marras. 

 

 

O docente também ressaltou a importância da criação de fundos patrimoniais como fonte de fomento complementar às universidades. “Esse fundo patrimonial é recente, então, tenho a impressão de que outras universidades podem, ou talvez até estejam fazendo a mesma coisa”, acredita o professor. 


O que diz a lei 


Os fundos patrimoniais filantrópicos foram regulamentados pela Lei 13.800, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo então presidente jair Bolsonaro (PL), em 2019, após pressão de um movimento da sociedade civil diante do incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em setembro do ano anterior.  Os fundos patrimoniais seriam vistos como uma resposta à falta de recursos para a manutenção de equipamentos culturais tão importantes para a preservação e divulgação da nossa história e cultura.

 

A lei regula a criação desses fundos com o objetivo de arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público. O fundo pode ser criado em cada instituição para administrar recursos de doações ou outras fontes, e esse dinheiro seria utilizado no financiamento de pesquisa e de extensão universitária. Programas e projetos de pesquisa poderão ser financiados exclusivamente com o rendimento das aplicações financeiras. 

 

O texto afirma que, “em nenhuma hipótese será permitida a retirada de montante superior a 10% dos recursos que integram os bens do fundo”. Em caso de dissolução, os recursos do fundo serão revertidos para a instituição a que pertence. A lei determina ainda que a gestão do fundo patrimonial seja semelhante à dos demais fundos de investimentos. As aplicações financeiras serão geridas por um comitê de investimentos indicado pelo conselho de administração, “com notórios conhecimentos e experiência no mercado”.


Universidades mineiras

A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) informou que não tem um fundo patrimonial. Porém, a manutenção da permanência dos alunos em situação de vulnerabilidade é feita por meio de recursos administrados pela Fundação Mendes Pimentel (Fump). A Resolução 08/2019 da instituição prevê que cabe ao Conselho Curador da Fump, ouvido o Ministério Público, a aceitação de doações com encargos. O texto explica que parte da renda da Fundação pode ser oriunda de doações e “quaisquer outras formas de benefícios que lhe forem destinados”. 

 

 

Procuradas pela reportagem, as Universidades Federal de Uberlândia (UFU); Estadual de Minas Gerais (Uemg) e a Federal de Lavras (Ufla) informaram que não têm  fundos patrimoniais. Já na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), embora ainda não exista um fundo patrimonial, “há previsão estatutária para isso”, segundo a reitoria. A Universidade Federal de Viçosa (UFV) informou que instituiu um grupo de trabalho no mês passado para estudar a criação de um fundo. 

compartilhe