Uma vitória preciosa para o patrimônio cultural mineiro dentro de uma história que se arrasta há mais de duas décadas. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) determinou a devolução de uma imagem de Santana Mestra, do século 18, à Paróquia Santa Luzia, em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), em resposta a ação do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). A peça em madeira policromada, com 90 centímetros de altura, teria sido vendida, na década de 1950, a um colecionador, e, em 2003, adquirida em um leilão, no Rio de Janeiro (RJ), por um empresário.

 

De acordo com o TJMG, ainda cabe recurso ao processo que teve como relator o desembargador Renan Chaves Carreira Machado. Pelo acórdão, publicado na quinta-feira (4), reconheceu que a peça é de culto coletivo, o que implica a devolução ao local de origem. Eis um trecho da sentença: “Demolido um templo, a paróquia vivenciará sua fé em novo templo erguido no mesmo lugar ou em outro(s), em locais diversos. Seria uma inversão de valores reconhecer apenas a ligação da imagem com o ‘edifício’ e não à comunidade paroquiana que dá sentido e significado a ele”. Com isso, encerra-se a espera de 20 anos pela devolução da imagem.

 



 

Mesmo que haja recurso, com mudanças, a decisão enche de alegria e esperança a comunidade da tricentenária cidade. “Vamos fazer uma grande festa para receber a Santana Mestra, que foi nossa primeira padroeira”, destaca o pároco e reitor do Santuário Arquidiocesano Santa Luzia, padre Felipe Lemos de Queirós. Na tarde de ontem, padre Felipe explicou que a imagem poderá ficar no altar-mor do templo do século 18, juntamente com a padroeira, e que o ideal seria o retorno no próximo dia 26, quando se comemora o dia da mãe da Virgem Maria e avó de Jesus. “Podemos fazer uma campanha para ser reconstruída a capela original, na Rua Floriano Peixoto, no Centro Histórico, na qual ficava a imagem”, disse o reitor sobre a edificação já demolida. 

 

‘Imagem singular’

A ação do MPMG foi ajuizada em 2003, pelo então titular da Coordenadoria das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC/MPMG), Marcos Paulo de Souza Miranda, e, no ano passado, foi feita a apelação ao TJMG pelo atual coordenador da CPPC, Marcelo Maffra, que trabalha no caso desde 2020. “Após mais de duas décadas de espera, a imagem de Santana Mestra poderá voltar à fruição coletiva, permitindo o resgate de memória e o retorno das celebrações associadas ao bem cultural. A escultura do século 18, em madeira policromada, possui atributos históricos, artísticos e religiosos que a tornam singular e, portanto, integrante do patrimônio cultural de Minas Gerais”, disse Maffra.

 

 

“A decisão não transitou em julgado, ainda cabe recurso”, reiterou o coordenador da CPPC, certo de que a solução do caso favorece as ações de restituição de peças sacras de Minas Gerais. “A decisão do Poder Judiciário fortalece ainda mais o trabalho do MPMG no resgate dos bens culturais desaparecidos e a devolução para os locais de onde nunca deveriam ter saído.”

 

Atualmente sob guarda do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (Cecor/UFMG), a peça sacra se compõe da Santana Mestra (62cm de altura), encostada no espaldar de uma cadeira (90cm), e da Virgem Maria (53cm), de pé. Na década de 1980, um documentário produzido pela Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia forneceu material valioso ao processo. Na gravação, a moradora do Centro Histórico, dona Augusta Dolabella (já falecida), falava sobre a venda da imagem de Santana Mestra, que pertencia ao acervo do santuário.

 

Foi também fundamental à investigação a participação das moradores de Santa Luzia, Dalma Martins e Maria Francisca Augusta, a dona Mariínha (ambas então com 83 anos), com depoimentos prestados, em 2007, ao promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda e a diretores do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG). As duas se lembravam, com detalhes, da imagem desaparecida e mantinham a esperança de que retornasse à cidade. Dona Mariínha, que várias vezes disse que não gostaria de morrer sem ter a imagem de volta, declarou ao Estado de Minas, que acompanha a história desde o início: “Nosso desejo é que ela volte o mais rápido possível. Vamos fazer muita festa para recebê-la”.

 

 

Dalma Martins também não teve dúvidas ao ver a foto da imagem no catálogo de divulgação do leilão, publicado por uma galeria do Rio de Janeiro. “Não tem outra, é ela...com a menina (Virgem Maria). Vejo principalmente pelo jeito da menina”, disse a luziense.

 

Também satisfeito e esperançoso com o retorno da imagem, o presidente da Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia, Adalberto Andrade Mateus, observa que o retorno da imagem de Santana Mestra representa um grande momento para a história local. “Santana é a primeira devoção em terras luzienses, ainda nos tempos do primitivo arraial de José Corrêa, às margens do Rio das Velhas. Desde 2003, aguardamos com ansiedade essa decisão. Em 2008, restauramos o altar original da capela com a esperança de que a nossa primeira padroeira um dia retornasse. Parece que esse momento chegou. Em Santa Luzia, os anjos abriram caminho para a chegada da avó de Jesus!”

 

Adalberto lembrou que em 2003, no mesmo leilão em que foi comercializada a Santana Mestra, estavam três peças do santuário, que ganharam repercussão nacional. Conhecidos como “anjos de Santa Luzia”, eles foram retirados do pregão a partir de ação movida pela Associação Cultural Comunitária local, tendo à frente a vice-presidente da entidade, Beatriz de Almeida Teixeira, e o advogado Mário de Lacerda Werneck Neto. Os objetos de fé retornaram ao templo barroco em 2004 e podem ser admirados pelos visitantes.


Investigação

Em 2006, o MPMG ajuizou ação contra o colecionador (já falecido) e o comprador da Santana Mestra, “após constatação de que foram levadas a leilão várias peças sacras oriundas de templos religiosos de Minas Gerais, sem comprovação de autoria ou indicação de sua procedência lícita”. Antes do ajuizamento da ação principal, o MPMG havia pleiteado medida liminar para busca e apreensão de vários bens, entre eles a imagem esculpida em cedro policromado e dourado, com resplendor e coroa de prata. Durante o processo, foram ouvidas duas moradoras, que se lembravam da imagem na capela na Rua Floriano Peixoto.

 

Cumprindo decisão judicial, a imagem foi entregue ao comprador, em 2005, pelo Iepha-MG, até que, em 2013, em nova decisão judicial, a Santana Mestra foi entregue, para fins de complementação da perícia, ao Cecor/UFMG. Enquanto isso, a Mitra Arquidiocesana de BH requeria a restituição da peça ao acervo da Paróquia de Santa Luzia.

 

 

“O MP reforçou ao Juízo a necessidade de restituição da Santana Mestra à Paróquia de Santa Luzia, porque, além dos robustos elementos sobre a origem da peça, a Mitra manifestou interesse que ela fosse reintegrada ao acervo do santuário da cidade”, disse Marcelo Maffra.

 

O Santuário Arquidiocesano Santa Luzia é tombado pelo Iepha, assim como o Centro Histórico da cidade. Na investigação sobre a imagem, foi importante a atuação do corpo técnico da instituição estadual, tendo à frente a então diretora de Proteção e Memória, arquiteta Selma Melo Miranda.

 

Entenda o caso


A imagem de Santana Mestra, do século 18, pertencia a uma capela (foto) de Santa Luzia (RMBH). Do antigo templo, já demolido, restou apenas o altar, que foi remontado, em 1954, na capela do Hospital São João de Deus, também no Centro Histórico da cidade.

 

Na década de 1950, a peça teria sido comprada por um colecionador e levada para a capital fluminense. Em 16 de agosto de 2003, foi a leilão, no Rio de Janeiro (RJ), sendo adquirida por um empresário (na época, pelo valor de R$ 350 mil), e, mais tarde, entregue às autoridades mineiras, ficando sob custódia do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha).

 

Em 2005, cumprindo decisão judicial, a imagem retornou às mãos do empresário, sendo devolvida pela direção do Iepha.

 

Em 2006, o MPMG ajuizou ação contra o colecionador (já falecido) e o comprador da Santana Mestra, após constatação de que foram levadas a leilão várias peças sacras de templos religiosos de Minas, sem comprovação de autoria ou indicação de sua procedência lícita.

 

Antes do ajuizamento da ação principal, o MPMG havia pleiteado medida liminar para busca e apreensão de vários bens, entre eles a imagem esculpida em cedro policromado e dourado, com resplendor e coroa de prata. Durante o processo, foram ouvidas duas moradoras (já falecidas) de Santa Luzia, que se lembravam da imagem no altar da capela na Rua Floriano Peixoto.

 

Em 2013, em nova decisão judicial, a Santana Mestra foi entregue, para fins de complementação da perícia, ao Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (Cecor/UFMG). Enquanto isso, a Mitra Arquidiocesana de BH requeria a restituição da peça ao acervo da Paróquia de Santa Luzia.

 

Em 2 de julho de 2024, após duas décadas de tramitação do processo, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais determinou a devolução da imagem de Santana Mestra à Paróquia Santa Luzia, em Santa Luzia. O acórdão foi publicado na quinta-feira (4).

 

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