Com Maria Lúcia Passos

Historicamente, as drag queens faziam seus shows em boates, madrugada afora e era praticamente impossível pensar em uma apresentação em outros espaços. Mas isso tem mudado. Cada vez mais espaços se tornam cenários para acolher esses artistas e fazer parte de uma resistência. 


“Uma coisa que aprendi com RuPaul’s Drag Race é que é essencial popularizar a drag: mostrar que é uma coisa plural e possível de se estar em todos os lugares”, conta Charlotte, drag queen criada em 2014 pelo belo-horizontino Matheus Brisola. Inspirada no reality para começar a se montar, hoje é considerada uma das maiores drags da capital mineira, produzindo eventos como o Baile da Bôta e o Wig Brunch, além de participar de bingos no Quinteiro, bar localizado no bairro Floresta, na região Centro-Sul da cidade.


“Fui fazer um intercâmbio pelo falecido Ciência Sem Fronteiras e lá fiz minha primeira montação, justamente para ir a um show das drags de RuPaul. Quando voltei para BH, já conhecia muita gente da cena noturna e as coisas foram se encaminhando. Entre 2018 e 2019, o Ed da @bsurda disse que precisava dar a Wig, uma festa drag, para uma drag, me ofereceu e eu aceitei”, explica Charlotte.


Ela afirma que ainda sentiu falta de eventos drag novos e com outros formatos, já que a maioria das festas na capital são antigas. Ao invés de esperar que as novidades chegassem até ela, a drag queen resolveu trazê-los para a cena belo-horizontina.


“Comecei a produzir outros eventos já existentes com a @bsurda, além de entrar com o Baile da Bôta, uma festa nova em parceria com os DJs Jambruna e Cordoval, e mais recentemente o Wig Brunch”, diz.


“Eu tenho trabalhado para mostrar e inserir as drags em contextos diversos e possibilitar que outros estilos de evento com drags aconteçam em Belo Horizonte, que foi o caso do Wig Brunch. Porque é isso: tem muita gente que vai amar ver um show de drag, mas não vai querer ir para boate, não vai aguentar ficar até 2:30 da manhã para esperar um show, então é muito legal essas outras possibilidades de formato, novas produções com teatro, trazendo a drag para outro lugar”, refletiu.

 

Enfrentando obstáculos

Há cerca de um mês, Charlotte conseguiu dar uma virada em sua carreira para viver apenas de drag e de produção de eventos. Apesar da incerteza, ela confia que está no caminho certo e ainda sonha, luta para que outras possam chegar onde está agora.


“Não tem como dizer se vai ou não funcionar, mas foram dez anos para conseguir isso. Viver de drag é uma coisa muito difícil, e a gente batalha muito pela valorização da arte drag, mas sabemos que ainda vai levar muito tempo para isso”, avalia Charlotte.


Apesar de ter esperança em conseguir viver da arte, Charlotte sabe que há muitos desafios pela frente. “Fazer drag é caro, tem custo de figurino, maquiagem, e isso tudo não entra na conta do contratante – fora os casos em que nem cachê a gente recebe. E isso atrasa muito o processo, porque você precisa oferecer coisa nova, mostrar versatilidade, produzir show – porque não tem como ficar fazendo o mesmo show toda hora –, e os custos disso são altos. As drags ainda não recebem o valor que merecem por parte dos produtores”, desabafou.


 

“Já passei por coisas do tipo, de produtor oferecer trabalho, eu chegar na festa, performar e ele falar que não tem dinheiro para pagar. Você não falaria isso pro segurança que está indo embora, por que vai falar para a drag?”, questionou.


Para Charlotte, uma maneira de enfrentar esses desafios será construir um espaço próprio para as drags na cidade. “Ter esse espaço em Belo Horizonte onde a gente vai poder oferecer desde o funcionamento diurno com brunch, sala de ensaio, coisas que as drags precisam e às vezes não têm como pagar ou guardar em casa, além de shows diversificados à noite, desde stand-up até cabaré e shows mais ‘tradicionais’”, deseja. 


A criação de um espaço para as drags seria fundamental para aumentar a popularização da arte. “A comunidade drag tem muito isso de criar novos espaços e possibilitar que essa arte continue existindo e crescendo, e assim elas vão se sentindo mais confortáveis para que possam experimentar novos formatos de performance e consigam ter trabalho e renda a partir da drag”, pontuou. 

 

Resistência na periferia

 

Enquanto Charlotte busca um espaço central para as drags, Kyka Loka acredita que estar à margem também é uma forma de resistir. A drag foi criada em 2009 por Menderson Rivadávia dentro do Donas Drags, grupo que atuava na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 


Morador do Aglomerado da Serra, por conta da vida e seus obstáculos, por várias vezes deixou Kyka de lado – talvez por mais tempo em que esteve ativa. Hoje, ele entende as pausas como parte de sua história, já que ela sempre o acompanhou, mesmo quando ele resolveu se desfazer de todos os seus adereços.


 

“Quando a Malonna, que liderava o Donas Drags, foi para São Paulo, eu fiquei um bom tempo parado e comecei a me envolver com outras coisas: sou designer, trabalhei com projetos sociais e culturais, e acabei deixando as coisas da Kyka guardadas por muitos anos. Ainda assim, estava sempre me montando, porque ela sempre esteve comigo, mesmo que fosse dentro de casa, só para tirar uma foto”, conta.


Entre idas e vindas, Kyka voltou em 2021, após um convite para se apresentar no bar de um amigo. Dessa vez de forma mais independente, continuou levando o que sempre carregou com a drag: subversão.


“Voltei a fazer tudo como eu sempre levava, de não entrar só como drag, mas, como artista, nessa ideia de ser mais contestador, de trabalhar com temas que questionem a sexualidade, o gênero, coisas que a Kyka, até hoje, bate na tecla”, explicou.




 

O lugar de resistência que a Kyka ocupa vem desde a sua essência. “Ela foge desse lugar da drag perfeita e do ideal de feminilidade que é muito comum. Comecei pegando peruca, salto, roupas do lixo, que eu achava aqui na Serra mesmo, e estava sempre nesse lugar do marginal, representando como é essa drag que está aqui na periferia, na favela”, contou Menderson.


Fora da UFMG, Kyka percebeu uma realidade diferente. Mas mesmo em um ambiente menos aberto para a arte drag, ela encontrou maior acolhimento. “Teve um momento que eu me montava por prazer, eu saía aqui na Serra, e a galera me incentivava. E esse é um olhar que eu tenho sobre a favela: a sexualidade é um paradoxo, porque a gente é violentado, mas também é muito acolhido, talvez muito mais do que no asfalto, na cidade. Isso foi me dando gás para fazer a Kyka e colocar ela nesse lugar de fazer esse questionamentos”, avaliou. 

 

Faquiresa e revolução

 

Kyka Loka, drag queen do Aglomerado da Serra cujas performances focam em questionamentos sobre construção social dos gêneros e o cenário drag na periferia

Gladyston Rodrigues/EM / D.A. Press

 

No entanto, essa não era a volta definitiva de Kyka. Após a morte do irmão, Menderson pausou o trabalho por conta de uma depressão. A volta definitiva aconteceu por conta do Morro Encena, um grupo de teatro organizado por mulheres negras moradoras do Aglomerado da Serra e que levam os temas da periferia para as peças. 


É nesse contexto que Kyka se tornou uma faquiresa (quem pratica atos que mostram insensibilidade à dor, como andar sobre brasas e deitar em camas de pregos).  Além disso, a drag começou a se conectar mais com os traumas e dores de Menderson. 


“Eu recito poesia em cima de caco de vidro e esse texto sempre fala muito desse lugar do estupro, de coisas que eu também passei. Eu comecei a trazer situações da minha vida para a Kyka. Situações que se encaixam naquele paradoxo  de estar nesse lugar que, ao mesmo tempo que violenta muito a gente, também acolhe. E a Kika também tem isso: ao mesmo tempo que ela vai lá e pisa no caco de vidro, pega o facão dela e traz essa tensão, ela também faz a palhaçada, está ali naquele universo clown (palhaço) da drag”, compara. 

 

‘Nunca pensei em viver de arte’

Ao contrário de Charlotte, que hoje se dedica exclusivamente à arte, Kyka não é a profissão principal de Menderson. Aliás, ele não pensava em dinheiro quando começou a se montar. “A Kyka, para mim, nunca foi um lugar do financeiro, nunca pensei na possibilidade de poder ganhar, de poder viver com a arte, com a Kyka no caso. E foi a partir dessa experiência com as meninas do Morro Encena que eu comecei a ver essa possibilidade”, apontou. 


Em algumas apresentações, o cachê de Kyka eram as doações colocadas em uma calcinha, uma versão mais ousada do chapéu para doações. Ela chegava a faturar até R$ 200 por noite. 

 

“Fazer drag, principalmente pra gente que tá nesse contexto de periferia, é muito difícil, porque é muito caro, e não tem esse lugar de valorização. Agora  que eu tô vendo que pode existir essa possibilidade também, mas é muito difícil, porque é tudo muito caro”, afirmou.


Para dar vida à Kyka, ele conta com a ajuda da família e amigos, que doam roupas e maquiagem. Com isso, não somente fica mais fácil construir sua personagem, mas também romper com o ideal da drag queen. “Como a Kyka tem esse também ideal de quebrar essa coisa de ser perfeita, eu vou reutilizando a mesma peruca há anos, porque é um lugar realmente difícil. A maioria das pessoas que eu conheço aqui de BH que faz drag não vive de drag, faz algum outra coisa, ou é realmente amor pelo que faz, e às vezes nem isso, porque eu conheço muita gente que tem uma tensão com a drag”, apresentou.


O que realmente motiva a existência da drag de Menderson são as possibilidades de se expressar. “É exatamente essa vontade de colocar para fora esse grito e essa possibilidade que a drag traz de transmutar”, acredita. 


“É lugar bem difícil, principalmente para a gente que tá nesse contexto periférico, porque tem esse lugar da drag perfeita, de ser aquela grande montagem, aquela grande coisa, e eu não tô muito nesse lugar, não consigo estar nesse lugar. Mas isso me incentivou a remodelar a Kyka para esse lugar do marginal, de dar ênfase para esse lugar”, concluiu. 


 

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