Noroeste e Norte de Minas Gerais, trijunção Minas, Bahia e Goiás – A caça de animais silvestres no Brasil é crime, segundo a Lei Federal 9.605/1998. Mas, quando ainda não era, a multiplicidade de espécies animais nos relatos de caçadores dava ideia de um ecossistema riquíssimo, apesar da predação. “No Buriti-Mirim, Angical, Extrema-de-Santa-Maria... Senhor caça? Tem lá mais perdiz do que no Chapadão das Vertentes... Caçar anta no Cabeça-de-Negro ou no Buriti-Comprido – aquelas que comem um capim diferente e roem cascas de muitas outras árvores: a carne, de gostosa, diverseia.” Na descrição do personagem Riobaldo, da icônica obra literária “Grande sertão: veredas” (1956), o escritor João Guimarães Rosa traz um pouco da diversidade animal na paisagem e em áreas de abundância de água cercadas de buritis.
Estudos científicos mostram que a presença da fauna é um indicador bastante preciso da biodiversidade em uma área de mata. Indicam, também, que dos 50 municípios de Minas Gerais que Guimarães Rosa descreveu em seu romance ou percorreu para escrevê-lo, 64% (32) têm concentração “muito baixa” de espécies e 30% (15) têm classificação “baixa”; nenhum chega a ter indicação de integridade “muito alta”.
Informações preocupantes para um termômetro tão importante sobre a integridade do cerrado e das veredas de Guimarães Rosa, segundo informações extraídas do indicador de número de espécies catalogadas por municípios do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG) e do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), reforçados por pesquisa do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e da plataforma Global Forest Watch.
É o que mostra a quinta reportagem da série “Veredas mortas”, que toma emprestado o primeiro título pensado por Guimarães Rosa para a obra-prima depois imortalizada na literatura como “Grande sertão: veredas”, na qual a equipe do Estado de Minas vem mapeando os principais aspectos da destruição do cerrado e os impactos que devastam o bioma e todo planeta na forma de eventos climáticos extremos já frequentes.
Um sertão de menos vida que as cidades
O indicador de fauna é mais um a denunciar que as terras da porção Noroeste e Norte de Minas Gerais têm a integridade ambiental cada vez mais comprometida. Para se ter uma ideia, a equipe de reportagem do EM comparou a concentração de espécies nos 50 municípios da área retratada por Guimarães Rosa em seu principal romance com o território extremamente afetado pelo homem nas 34 cidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte, com seus 5,1 milhões de habitantes. Nos dois casos, o volume de espécies catalogadas fica na faixa considerada “baixa”, de 750 a 3 mil animais. Contudo, a média da fauna da Grande BH é de 2.168 espécies, enquanto vagam pelas veredas e cerrado de Guimarães Rosa a média de 980 espécies, um quantitativo 54,8% menor.
Por outro lado, ainda há municípios sertanejos onde o cerrado provê abrigo, alimentação e água pura para matar a sede e a fome dos animais silvestres. O município do sertão onde foram catalogados mais exemplares da fauna silvestre mineira é Gameleiras, no Norte de Minas, com 8.782 espécies identificadas, o que o destaca dentro do conceito de concentração “alta” (7,5 mil a 15 mil espécies). Em seguida, na faixa de conceito “média” (3 mil a 7,5 mil) vêm outros municípios do Norte de Minas: Januária, (5.301) e Lassance (4.260).
A pressão sobre as áreas preservadas
- Reportagem-denúncia: a agonia da paisagem da obra "Grande sertão: veredas"
As áreas de alta integridade da biodiversidade animal dos 55 municípios mineiros, baianos e goianos do sertão de Guimarães Rosa estão concentradas em fragmentos no interior de 23 municípios (42%), todos mineiros e em remanescentes de mata atlântica ou em unidades de conservação, segundo o mapeamento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - Centro de Monitoramento da Conservação Mundial (Pnuma-CWMC) e a plataforma de vigilância florestal Global Forest Watch (GFW).
Contudo, essas concentrações de alta integridade de espécies que são indicativos de preservação ambiental, de recursos hídricos e controle de temperaturas estão também todas em áreas cercadas por grandes níveis de desmatamento de florestas, queimadas e pressão de atividades como a irrigação de lavouras e plantações de eucaliptos, segundo cruzamento com dados da própria GFW.
Gameleiras, no Norte de Minas, vive o paradoxo de ter a maior concentração de espécies do sertão, com 8.782 catalogadas pelo Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG) e pelo Centro de Referência em Informação Ambiental (CRIA), mas também a maior área de perda de cobertura vegetal justamente nas áreas de mais integridade de biodiversidade, segundo estudo do Pnuma-CMWC e GFW.
Lá, a devastação nas matas somou 8.440 hectares (ha), entre 2019 e 2023. É como se houvesse uma perda de mais de três vezes a área da ilha-santuário de Fernando de Noronha (2.600 ha). Essa devastação ocorreu sobretudo no distrito de Jacu das Piranhas, entre o Rio Pacuí e um de seus principais afluentes, o Ribeirão do Jacu. A vegetação perdida é caracterizada como floresta seca, uma vegetação que perde parte das folhas durante a estação de estiagem, e que inclui ipês, aroeiras e angicos. Fica situada entre 500 e mil metros de altitude, abrigando espécies animais como tamanduás-bandeira, lobos-guará, onças-pardas, veados-catingueiros, vários tipos de tatus, araras-canindé, tucanos-toco e iguanas.
É crime
Lei federal de Crimes Ambientais (nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998): é proibido, segundo o artigo 29, “matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida. Pena: detenção de seis meses a um ano, e multa.”