Januária, Cônego Marinho e Bonito de Minas – Uma das espécies mais ariscas da fauna brasileira, a onça tem a pitoresca fama de se hidratar à noite, quando pode unir o útil ao agradável e encontrar presas fáceis enquanto mata a sede. É a esse hábito que se atribui a expressão “a hora da onça beber água”, que resume situações tensas ou de risco. Mas até mesmo o ditado popular está ameaçado com o quadro de agonia das veredas no sertão mineiro – seja por escassez de onças, seja por falta de água.


A degradação das áreas de buritizais e nascentes do cerrado coloca em risco a sobrevivência da onça e de outros mamíferos, pássaros e insetos, que encontram nesses locais a água para matar a sede e também o refúgio para a alimentação e a reprodução. “Com o fim das veredas, com certeza, espécies da fauna correm o risco de desaparecer ou a tendência da migração para outras regiões”, afirma o analista ambiental João Roberto Barbosa de Oliveira, do Instituto Estadual de Florestas (IEF). Como gestor do Parque Estadual Veredas do Peruaçu, que abrange 31 mil hectares entre os municípios de Januária, Cônego Marinho e Bonito de Minas, ele acompanha de perto a importância essencial das veredas para espécies de animais e insetos.


João Roberto salienta que em toda a extensão da área preservada pode se notar a presença de diferentes espécies da fauna, incluindo, além da onça, jaguatirica, anta, porco queixada, caititu ou cateto, lobo-guará, raposa, veado (catingueiro e campeiro), tamanduás-bandeira e mirim, gambá, cotia, jacaré e sucuri. Ao percorrer a área, a equipe do Estado de Minas pôde testemunhar animais como uma raposa atravessando a estrada. Como essa, todas as demais espécies do cerrado recorrem às veredas e às lagoas e rios formados por elas para matar a sede. E a fome.

 




Mas, ao longo dos anos, conforme testemunha o analista ambiental, veredas e lagoas do Parque Veredas do Peruaçu secaram, dificultando a sobrevivência dos animais, que precisam caminhar mais ou migrar em busca de água e alimento. O gerente da unidade de conservação salienta que o desaparecimento das fontes de água também limita a circulação dos bichos, que precisam ficar perto dos locais onde possam matar a sede. “Hoje todos os animais e aves utilizam água das lagoas mais próximas da sede do parque. E, por esse motivo, a área de circulação deles ficou mais restrita”, avalia.

 

O risco para os ninhais

 

 

A destruição das veredas também é uma grave ameaça para as araras, papagaios e periquitos, que têm áreas de reprodução (ninhais) nas palmeiras de buriti, as quais também são a maior fonte de alimentação das espécies. O analista ambiental João Roberto Barbosa de Oliveira alerta que o desaparecimento dos ambientes úmidos compromete toda a biodiversidade do cerrado, com o sério risco de provocar a desertificação.


A importância das nascentes das áreas de cerrado para o equilíbrio ecológico é enaltecida pela bióloga Débora Guimarães Takaki. “As veredas são importantes áreas de refúgio para a fauna silvestre. Servem para abrigo, alimentação e reprodução de muitos animais. Alguns registros de antas indicam a inter-relação da espécie com esses locais.”


Segundo ela, além dos grandes mamíferos, outras espécies são bioindicadores de preservação. “Há alguns anfíbios que só sobrevivem em áreas com poucas perturbações e equilibradas ecologicamente”, exemplifica afirma Débora Takaki, que é mestre em ciências biológicas pela Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e integra o Mosaico Sertão Veredas/Peruaçu, voltado para a manutenção de áreas ambientais protegidas.


A caça: uma pressão a mais

 

 

Embora considerada crime ambiental, a caça clandestina continua sendo um fator de pressão sobre a fauna do sertão romanceado por Guimarães Rosa, atesta a bióloga Débora Takaki. Ela lembra que a prática ilegal segue exercendo forte pressão extra sobre a fauna, já castigada pela destruição de hábitats, afugentando e reduzindo as populações de espécies, podendo levar até à extinção de algumas delas. “Triste saber que onde viviam veados, pacas, jacarés, onças, araras e outros bichos do sertão, hoje só tem solo rachado, muita areia e praticamente nenhuma vida. Isso é o que acontece em algumas veredas, a exemplo a Vereda dos Porcos, região da Bacia do Rio Pandeiros, onde já estive”, testemunha a especialista.


A bióloga lembra que na região das veredas do Peruaçu foi reencontrado o cachorro-vinagre, que já foi considerado extinto, o que dá a dimensão da importância dessas formações imortalizadas na literatura de Guimarães Rosa para a fauna. “Como prestam um importante serviço ambiental, as veredas permeiam o equilíbrio do ecossistema por meio da presença de rica biodiversidade”, afirma a pesquisadora, que atua no município de Januária.


Ela destaca ainda que o processo de degradação das veredas compromete toda a biodiversidade, atingindo dramaticamente a fauna. “Com o desmatamento, queimadas, pastagens e monoculturas, entre outros impactos que modificam essas sensíveis áreas de veredas, é possível verificar a redução e até secamento das águas, o que acarreta a diminuição das populações da fauna silvestre e consequente perda da biodiversidade”, relata.


Ruim para plantas, bichos e pessoas

 

 

A pesquisadora Maria das Dores Magalhães Veloso, pró-reitora de Pesquisa da Unimontes e professora do Departamento de Biologia Geral, salienta que, do ponto de vista da ciência, uma das maiores preocupações com a perda das veredas refere-se ao prejuízo para a biodiversidade, o que compreende a flora, os animais e insetos do ecossistema e também a vida das comunidades humanas ao redor.


A pesquisadora lembra que o Departamento de Biologia da universidade realiza estudos sobre as veredas do Norte de Minas desde 2008. “Temos dados que mostram que os impactos (das mudanças climáticas) têm sido cada vez mais agressivos com a natureza”, afirma.


Ela lembra que a instituição implementou um amplo estudo sobre as veredas, o Programa Pesquisa Ecológica de Longa Duração (Peld), que envolve 16 subprojetos. Entre outros aspectos, informa, são pesquisados a biomassa, a vegetação e a fauna desse ecossistema, registrando impactos ambientais sofridos pelas áreas úmidas e estudando como recuperá-las. Mas as perspectivas não são boas.


A representante da Unimontes afirma que, por enquanto, do ponto de vista científico, pesquisas ainda não apontam quais intervenções seriam eficazes para a recuperação de veredas mortas. “As veredas são ambientes com pouco conhecimento científico. São ambientes extremamente importantes dentro do cerrado, mas sobre os quais precisamos, primeiro, ter conhecimento da fauna, do solo, de todo o ecossistema, para depois descobrir como agir”, pontua.

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