Noroeste e Norte de Minas Gerais, trijunção Minas, Bahia e Goiás – No sertão romanceado por Guimarães Rosa, uma última batalha marcou a despedida dos personagens principais. Foi travada em Paredão de Minas, distrito de Buritizeiro, no Norte do estado. Foi onde o jagunço Riobaldo deu adeus a seu grande amor, Diadorim, e onde também descobriu que a companhia de batalha era, na verdade, uma mulher. “Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos meus jagunços decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão”, escreveu João Guimarães Rosa em sua obra-prima “Grande sertão: veredas” (1956).
Assim como Riobaldo, o cerrado e as veredas do sertão percorrido de fato ou pela literatura vão se despedindo, dizimados em ritmo crescente por desmatamento, seca, fogo, irrigação, usinas fotovoltaicas, eventos climáticos extremos. O mesmo ocorre em larga escala em Buritizeiro e no Paredão de Minas romanceado por Rosa. Contudo, é também um local onde ainda brota esperança para os sertanejos, por conservar grande parte de seus recursos ambientais preservados. É o que mostra a sétima reportagem da serie “Veredas mortas” – primeiro título proposto para a obra maior do escritor, muito adequado à crítica situação atual do sertão.
"“Paredão existe lá. Senhor vá, senhor veja. É um arraial”"
por “Grande sertão: veredas”, João Guimarães Rosa
“Paredão é feito de ciclos. Nossa esperança aqui é desenvolver, mas de forma sustentável, para que o sertão continue a viver. Nós somos sertanejos e temos de acreditar nisso”, afirma a professora Jéssica Guedes Barbosa, de 35 anos, uma das guardiãs da história do distrito. Essa esperança não é vã, uma vez que Buritizeiro ainda preserva muitos recursos que podem assegurar sobrevida ao sertão.
Entre os 50 municípios mineiros percorridos por Guimarães Rosa em Minas ou descritos em sua obra, Buritizeiro é um dos grandes detentores de veredas que abastecem cursos d'água da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco e que clamam por proteção em todo o estado. De acordo com o Inventário Florestal do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG), o município do Norte mineiro tem a 13ª maior concentração de veredas do sertão, com 3.719,62 hectares distribuídos em 147 fragmentos.
A maior vereda da região, com 415,25 hectares, é a que forma o Ribeirão dos Paulistas, um dos grandes afluentes do Rio das Areias, por sua vez, contribuinte fundamental do Rio Paracatu, um dos maiores tributários do São Francisco. O próprio Rio do Sono, que banha Paredão de Minas passando com seu curso de pedras escuras entre a área urbana de um lado e um morro de rochas vermelhas do outro (o paredão que dá nome ao lugar), recebe boa parte de seu volume de córregos, ribeirões e riachos formados a partir de veredas.
A degradação que se aproxima
Apesar do cenário preservado que garante água fluindo para os leitos de córregos e rios, a pressão sobre o cerrado e as veredas é muito grande em Buritizeiro. O município é o 12º com maior perda de vegetação natural entre as 50 cidades mineiras do sertão de Guimarães Rosa. Um risco para a área onde sobrevivem veredas que abastecem a Bacia do São Francisco.
Entre 2013 e 2023, essa perda reduziu 5.099 hectares de cerrado natural no município. Já a devastação por incêndios em Buritizeiro foi a 11ª pior do sertão, com as chamas transformando em cinzas 2.310 hectares, entre 2001 e 2023. A cidade figura também entre as que têm menores concentrações de espécies de animais silvestres do sertão, com 728 registradas, segundo levantamento do IEF-MG, o que a classifica na categoria de diversidade “muito baixa” – quando há menos de 750 espécies catalogadas. No setor agrícola, figura como a 9ª maior área irrigada do sertão, com 7.031 hectares, sendo 5.824 de pivôs centrais, tudo usando água de poços, da Vereda Galhão, do Córrego do Chupé, do Ribeirão da Várzea e dos rios Formoso e São Francisco.
“Muitas veredas estão cortadas”
“As veredas estão sufocadas por areia, por eucalipto ou por causa do desmatamento. Muitas veredas do município que eram perenes, hoje estão cortadas. Têm água somente em poucos meses do ano. O Rio do Sono, faz tempo que não é mais o mesmo. Ele é alimentado por bons córregos, como Onça, Jurucutu e Gaita, mas que estão bem castigados. O Rio do Sono também está sofrendo com as costelas (pedras) do lado de fora”, afirma Rômulo de Melo Silva, de 60 anos, que é dono de uma pousada em Buritizeiro e trabalha com ecoturismo na região. “Paredão foi imortalizado por Guimarães Rosa. Por isso, muitos que leem o livro querem conhecer a localidade”, testemunha.
E vale de fato a pena conhecer a região. O vento que desce pelos vales do Rio do Sono faz bailar as delicadas pétalas que se abrem em filamentos vermelhos e longos. Por toda parte, a cor da caliandra (Calliandra dysantha Benth) traz leveza para o local do descanso final dos habitantes do Paredão de Minas.
Lá, a espécie nativa que embeleza o solo entre túmulos e cruzes dos descendentes dos sertanejos é chamada de “rosa-do-sertão”. Um nome adequado à flor que adorna o local de descanso final de Diadorim, o amor impossível do jagunço Riobaldo no romance “Grande sertão: veredas”. A morte dela e a batalha final, para muitos, foi levada àquele lugar já como um plano de Guimarães Rosa para chamar a atenção para a importância do cerrado e das veredas, vítimas da devastação que avança.
“É quando Diadorim morre. O amor. A gente pensa que ama para sempre. E quando separa, acha que nunca mais terá outro amor. Mas tem. Amor é pássaro chocando ovos de ferro. Não tem explicação. Quando Guimarães Rosa escolhe o Paredão para a luta final, escolheu um lugar onde se pensava que tudo acabou. O amor acabou. Acabou o cerrado. A água está se acabando. E ele estava querendo mostrar isso para as pessoas. Ele mostra isso pela sensibilidade da vida. ‘A vida dá sete voltas’... ‘A vida, nem é da gente’, ele dizia”, analisa o filósofo do sertão José Osvaldo dos Santos, conhecido como “Brasinha”.