Quando foi à primeira edição da Parada do Orgulho LGBTQIA+ de Belo Horizonte, ainda em 1998, Amanda Rodrigo, na época com seus 15 anos, não se impressionou. Na verdade, saiu da manifestação decepcionada e só foi dar uma segunda chance mais de 20 anos depois. “Na época, eu via a Parada de uma forma completamente diferente do que vejo hoje. Como eu era jovem e não tinha acesso a certas informações, achava que a Parada era tipo uma Banda Mole, porque falavam que era uma p…, que as pessoas iam para transar. Eu não tinha essa visão de que é um movimento político”, conta ela ao Estado de Minas.


Hoje com 41 anos, monitora da Casa de Acolhimento LGBT de Belo Horizonte e mobilizadora social do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais (Cellos-MG), Amanda, uma mulher transgênero, conta que a internet foi uma das maiores responsáveis pela sua virada de chave em relação ao movimento. “Mais informações começaram a chegar para a gente, e comecei a mudar a visão que tinha sobre a Parada. Hoje, a vejo como uma revolução. Somos politicamente ativas para falar sobre os nossos desejos, demandas e reivindicações. E muita coisa mudou de lá para cá – tanto em relação à manifestação quanto sobre nossos direitos”, explica.

 




Da retirada da homossexualidade da lista de transtornos mentais do Conselho Federal de Psicologia (CFP) à conquista do reconhecimento de união estável para casais homoafetivos, o Brasil percorreu um extenso caminho na equidade de direitos para pessoas LGBTI+, mas ainda é preciso dar muitos passos. Apesar de a internet ter levado as mais diversas informações a Amanda, a Parada foi um dos pontapés para que temáticas referentes à população LGBTI+ pudessem entrar em pauta na sociedade. É o que explica Soraya Menezes, de 54, militante lésbica e feminista e uma das idealizadoras da primeira Parada do Orgulho de Belo Horizonte. Hoje, o evento terá sua 25a edição em BH, com expectativa de reunir 300 mil pessoas. “A primeira Parada foi organizada no desejo de dar visibilidade às questões LGBTI+ e à ausência de políticas públicas. Era necessário dizer: ‘nós estamos aqui, nós existimos’; e isso com certeza abriu um debate, que naquela época era inexistente”, explica ela à reportagem.


Belo Horizonte recebeu a sua primeira Parada do Orgulho um ano depois de São Paulo – que contou com cerca de 2 mil pessoas. Soraya conta que, na capital mineira, a realização da primeira edição da manifestação teve pouco incentivo e adesão pequena, mas isso não impediu que as pessoas fossem para as ruas.


“Naquela época, muitos saíram fantasiados de personagens do Walt Disney por conta do medo de perder o emprego, ou de enfrentar preconceito e invisibilidade na família, mas saíram”, relata ela. “Mobilizar a comunidade, convencê-la de que uma manifestação na rua com a nossa identidade, a nossa cultura e o nosso jeito poderia acontecer, ainda era muito difícil. A gente tinha que panfletar em porta de boate, convencer as pessoas, ligar para elas. A parada começou com umas 50 pessoas, e hoje se tornou a maior manifestação de afirmação de direito de Minas Gerais”, acrescenta Carlos Magno, de 52, um dos fundadores do Cellos-MG. “Ocupar o espaço público ainda era muito difícil, e muitas pessoas acabavam ficando receosas com essas manifestações. A gente frequentava boates e bares fechados, mas não era de andar pela rua como, hoje, vemos casais homoafetivos fazendo. Nossa geração não tinha esse empoderamento social e político no início”, completa. 

 

NOVAS LUTAS

 

 

Amanda Rodrigo conta como a percepção sobre os corpos da população LGBTI+ mudou ao longo dos anos. “Na época, nós, travestis, éramos vistas como marginais, homens vestidos de mulher, homens de peito. Não tinha essa discussão sobre gênero, e isso incomodava, mas eu não tinha as mesmas informações que tenho hoje, e não sabia exatamente o que fazer. Agora, luto para que isso mude e para que outras como eu também possam ter essa noção”, diz.


Para ela, Soraya Menezes, Carlos Magno e toda a comunidade mais velha da população LGBTI+, sua geração ficou conhecida pelas conquistas. Agora, é papel dos mais jovens aproveitar os avanços para conquistar novos direitos e, principalmente, não deixar os que já estão garantidos recuarem.


“O orgulho precisa ser todo dia. A visibilidade das Paradas foi muito importante, qualquer conquista tem que ser comemorada, e a geração de hoje tem um compromisso de não deixar retroceder e de avançar ainda mais, porque se não estamos na luta todos os dias, o perigo do retrocesso aumenta”, defende Soraya.

 


As conquistas refletem positivamente na vida dos mais jovens. A jornalista e ativista Maria Paula Monteiro, de 25 anos, conta como é mais tranquilo para ela e para a namorada circularem pela cidade hoje em dia. “Acho que muitas mulheres lésbicas ou bissexuais se sentem mais seguras para expressar afeto e amor em espaços públicos. É claro que ainda não é como um casal heterossexual, mas estamos muito melhor do que estivemos há 30, 40 anos”, avalia.


“Antes, era mais um movimento de resistência, e hoje temos um espaço a mais para celebrar. Entendo que a Parada ainda é um movimento de luta e o porquê de as pessoas estarem ali, mas lá elas também podem se divertir”, complementa o publicitário Gabriel Soares de Souza, também de 25.


“Por eu ter vindo do interior, sinto que existem mudanças muito drásticas, principalmente em relação a perceber a nossa existência dentro da sociedade. No interior, as pessoas falam menos sobre direitos LGBTI+ e o preconceito é maior, então eu sentia que precisava me esconder o tempo todo. Quando venho para BH, percebo que as evoluções estão mais presentes e não sinto tanta preocupação ao andar na rua”, acrescenta ele.


Continuar o legado é importante, e a nova geração promete cumprir seu papel de não deixar que haja retrocessos e de continuar lutando por mais direitos: “Nós, enquanto pessoas LGBTI+, precisamos ter consciência e nos colocar no mundo em alerta. Claro que temos nossos momentos de celebrar o que já conquistamos e o lugar em que estamos hoje, mas temos que reconhecer que ainda somos vistos, em muitos espaços, com preconceito e com violência – principalmente identidades não-binárias, trans, pessoas LGBTI+ negras – e precisamos construir um futuro melhor”, declara Maria Paula.


AS LETRINHAS DA SIGLA

 

 

A Parada não é a única movimentação na cidade pela reivindicação de direitos. A sigla é cheia de letrinhas e, com elas, estão muitas especificações e interseccionalidades. Há quem prefira outras manifestações à Parada do Orgulho LGBTQIA+, que é muito cheia e pode perder um pouco do propósito, como acreditam Maria Paula e a artista visual, atriz e palhaça Sol Markes, de 25.


“Meu primeiro contato com a Parada foi de encher o coração, fiquei deslumbrada, até porque sou do interior, onde não tem tanta representatividade. Mas depois que me mudei para BH, passei a frequentar menos por me identificar mais com outros movimentos sociais, como a Caminhada da Visibilidade Trans, que acontece em janeiro e tem um perfil muito político também”, aponta Sol. “Não é que a Parada não seja política, ela é, mas pelo tamanho perde um pouco o foco. São muitas letras na sigla. Acho que ainda tem muita gente que não enxerga o movimento como político e vira apenas um carnaval onde estamos um pouco mais seguros”, acrescenta.


“Em todas as Paradas a que já fui, senti a falta de um protagonismo de mulheres. Ainda não nos sentimos tão bem contempladas pelas representações do movimento LGBTI+ nos poucos espaços de destaque que temos. Ainda acho muito legal podermos contemplar e vivenciar manifestações culturais como as drags, mas sinto falta de uma pegada mais ‘sapatão’, porque o foco ainda é muito em gays cisgênero – isso não é algo exclusivo de BH, mas do movimento LGBTI+ como um todo –, e sinto falta de um movimento de liberdade que traga um protagonismo não excludente com outras identidades”, complementa Maria Paula.


AS CONQUISTAS

Ao longo dos anos, a população LGBTI+ foi conquistando direitos, ainda insuficientes: somente em Minas Gerais, o número de registros de violações de direitos dessa população aumentou 40% neste ano, em comparação com 2023. De acordo com o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH), ao fim do mês do Orgulho (junho), o estado já tinha registrado 3.897 violações (qualquer fato que atente ou viole os direitos humanos de uma vítima); 304 denúncias (quantidade de relatos envolvendo uma vítima e um suspeito, podendo conter uma ou mais violações) e 211 protocolos de denúncias ( número de vezes em que os usuários buscaram a Ouvidoria para registrar uma denúncia, podendo conter uma ou mais denúncias) partindo de pessoas da população LGBTI+. Ainda que a passos lentos, uma série de conquistas vem ocorrendo, especialmente a partir de 2010 (Confira a cronologia nesta página). 

 

CRONOLOGIA DAS CONQUISTAS


1830: Descriminalização da homossexualidade no Brasil com o Código Penal de 1830.

1985: O Conselho Federal de Medicina (CFM) substitui o termo “homossexualismo” por “homossexualidade”

1997: O CFM autoriza hospitais universitários a realizarem cirurgias de transgenitalização
em caráter experimental.

1999: O Conselho Federal de Psicologia (CFP) retira a homossexualidade da lista de transtornos mentais e proíbe terapias de conversão.

2002 (Minas Gerais): Lei 14.170 impõe sanções a pessoas jurídicas por discriminação em razão da orientação sexual.

2007 (Minas Gerais): Lei 16.636 institui 17 de maio como Dia Estadual contra a Homofobia.

2009: Portaria do SUS inclui o uso do nome social para pessoas trans.

2011: Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a união estável homoafetiva como núcleo familiar.

2011: Portaria nº 2.836 do Ministério da Saúde estabelece a Política Nacional de Saúde Integral LGBT.

2013: Cartórios passam a realizar casamento civil para casais homoafetivos por decisão do STF.

2015: STF permite que casais homoafetivos entrem com processos de adoção.

2017 (Minas Gerais): Instituição da carteira de nome social para pessoas trans e travestis.

2018: STF permite a mudança de registro civil de nome e gênero por via administrativa (ADI nº 4275).

2018 (Minas Gerais): Diretrizes para o tratamento de pessoas LGBTI+ no sistema socioeducativo.

2019: STF equipara a LGBTfobia ao crime de racismo até que haja legislação específica.

2020: STF autoriza a doação de sangue por pessoas LGBTI+.

2023 (Minas Gerais): Lei 24.632 garante gratuidade nos custos de cartório para retificação de nome e gênero para pessoas trans em situação de vulnerabilidade econômica.

 

Mais uma edição

A 25ª Parada do Orgulho LGBTI+ de Belo Horizonte acontece hoje (21/7) e promete reunir 300 mil pessoas na Avenida Afonso Pena – palco de sua primeira edição. Com concentração das 12h às 17h, são esperadas 45 atrações e mais de 150 artistas num palco 360° que ficará no entroncamento entre as avenidas Brasil e Afonso Pena. O cortejo seguirá até a Praça Sete, onde será feita a dispersão.

 

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