Pelos sertões mineiros de Guimarães Rosa, rivalizando com o Rio Paracatu pelo título de maior afluente do São Francisco, o Rio das Velhas é o mais castigado pela poluição na bacia. Por isso, também o que mais traz danos ao Velho Chico. No período de dados coletados pelo Intituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) e usados pela reportagem (2019-2024), 4.112 amostras colhidas no Velhas totalizaram 2.091 violações (50,8%).

 


Um dos maiores perigos é a grande concentração de amostras contendo arsênio: 42 ao todo. Esse elemento químico, um semimetal presente naturalmente no solo e nas rochas, também pode contaminar a água de mananciais por meio de atividades humanas como mineração, agricultura e uso inadequado de agrotóxicos. Os impactos para a saúde podem ser o desenvolvimento de câncer de pulmão, pele, bexiga e fígado, além de doenças cardíacas. Pode afetar também o sistema nervoso, causando problemas de aprendizagem, memória, atenção e coordenação motora, assim como distúrbios dermatológicos, reprodutivos e de desenvolvimento infantil.

 



 


Mesmo o Rio São Francisco em seu opulento curso principal pelo sertão mineiro apresentou em 551 amostras violações que chegaram a 210 testes (38,1%). Fósforo, com 43 violações, e manganês, com 40, são as amostragens mais volumosas acima dos limites. O primeiro tem origem em agrotóxicos, esgoto, ração animal e fertilizantes. Promove proliferação de algas que podem ser tóxicas ou levar à falta de oxigênio na água. Já o manganês vem da mineração, siderurgia, indústria têxtil, pilhas e baterias, agrotóxicos e esgoto doméstico. A exposição prolongada ao elemento pode ocasionar doenças neurológicas, como distúrbios do movimento, tremores, fraqueza muscular e dificuldade de fala.

 


Os cursos principais dos dois rios também sofrem com desmatamentos, apontados por especialistas e ambientalistas como fatores que levam ao assoreamento, uma vez que a barreira vegetal, quando preservada, impede que a chuva carreie sedimentos para dentro do curso d’água.


O Rio das Velhas, já no sertão, por exemplo, apresentou perda de cobertura de matas de 121 hectares, de Curvelo até Várzea da Palma, no encontro com o Rio São Francisco, em Barra de Guaicuí. Os dados são da plataforma de vigilância florestal Global Forest Watch (GFW), coletados entre 2001 e 2023. Já o Rio São Francisco sofreu ainda mais com o desmatamento no mesmo período pesquisado: foram perdidos 1.969 hectares dentro do sertão de Guimarães Rosa, entre Três Marias, no Norte de Minas Gerais, e Carinhanha, na Bahia.


A voçoroca que vai sugando o Urucuia

 

 

“Ah, o meu Urucuia, as águas dele são claras certas.” “O Urucuia é um rio, o rio das montanhas. Rebebe o encharcar dos brejos, verde a verde, veredas, marimbus, a sombra separada dos buritizais, ele.” Ao longo de toda a narrativa do jagunço Riobaldo no romance “Grande sertão: veredas”, o Rio Urucuia é alvo de admiração, como nas frases anteriores. Um lugar preferido pela descrição de Guimarães Rosa. “Viemos pelo Urucuia. Meu rio de amor é o Urucuia”, escreveu. Pois também o rio da paixão do jagunço pena com a degradação desde sua nascente, em Formosa, em Goiás. No local, uma grande voçoroca se abriu no terreno entre plantações, bem no alto onde fica a área de recarga da sua nascente. Um rombo no cerrado verde, que cresce aos poucos e já tem 150 metros de comprimento, 35 metros de largura e uma profundidade aproximada de 15 metros.


“Aqui, quando chove, a gente até escuta as águas descendo fortes das nascentes, mas sem chuva estão secando. A nascente principal já secou no lugar de sempre; estava surgindo mais para baixo. Na seca ela não vem mais do mesmo lugar”, conta o agricultor Rodrigo Rigotti, de 36 anos que mora na propriedade ao lado desde a infância.


Secou a fonte do amor de Rosa

 

A equipe de reportagem do Estado de Minas desceu os barrancos do cerrado e entrou pela floresta de galeria densa para encontrar a nascente principal do rio que encantou Guimarães Rosa e seus personagens. Encontrou a região recortada por erosões, com valas que impedem avanços diretos, exigindo contornos e estudos de travessia, como que em um labirinto intrincado de desfiladeiros. Seguindo as coordenadas de GPS, atravessando por entre árvores fechadas em cipós, espinhos e arbustos, na beira de mais um desfiladeiro, o local onde deveria brotar a água da nascente estava seco, um leito de pedras estéril, sem nem um filete correndo.

 


Mais abaixo a sorte não foi melhor e por um quilômetro foi preciso descer, experimentando acessos pelo matagal, avanços por vezes só possíveis com picadas abertas pelo facão. Até que só no fundo, atrás de um velho curral, a trilha chega ao córrego que recebe as primeiras águas do Rio Urucuia.


De Goiás até a sua foz, no Rio São Francisco, o Rio Urucuia também sofre com desmatamento, que rouba sua profundidade e o deixa com menos água devido ao sedimento que não encontra matas de galeria que o impeçam de ingressar no leito do manancial. “Na época da seca, tem lugar que o rio não passa de cinco metros de largura. Cada tempo que passa, a seca aumenta. Vai chegar um dia que nem a balsa vai conseguir passar de um lado para o outro”, afirma o balseiro Luiz do Rosário, de 35 anos. A travessia de balsa em Urucuia, cidade com o mesmo nome do manancial, permite a estudantes chegar a suas escolas, agricultores e moradores da área rural serem atendidos em consultas médicas ou no comércio.


De acordo com dados da plataforma de vigilância florestal Global Forest Watch (GFW), coletados entre 2001 e 2023, o Rio Urucuia, da nascente até a foz, já perdeu 602 hectares de matas de galeria. A poluição também aflige o preferido de Guimarães Rosa. De acordo com dados do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), entre 2019 e 2024 em 357 amostragens para medir parâmetros ambientais ou limites de poluentes considerados pela legislação federal, 136 (38%) ultrapassaram os limites de tolerância. As concentrações de fósforo e da bactéria Escherichia coli foram as mais frequentes, com 25 e 20 violações respectivamente, demonstrando grade poluição agropecuária por adubos, defensivos, agrotóxicos e também esgoto doméstico.


Uma situação que tem sido vista com preocupação pelo Ministério Público de Minas Gerais. “Recebemos e estamos apurando muitas denúncias de agrotóxicos usados na agricultura atingindo áreas protegidas e sendo carreados para o rio. As comunidades estão receosas, pois todos veem a aplicação dos agrotóxicos. Mesmo quando se faz uma coleta para saber se a amostra está dentro de um parâmetro seguro para a saúde humana e o meio ambiente, não é uma garantia. Pode ser um momento em que a amostra foi favorável, ou está até dentro (do limite seguro), mas e quanto aos efeitos de uma exposição prolongada a essas substâncias químicas?”, questiona a promotora de Justiça Carolina Frare Lameirinha, coordenadora regional das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente das Bacias dos Rios Paracatu, Urucuia e Abaeté. “Há, inclusive, entendimento de que os limites são ainda muito permissivos”, completa.

 

O balseiro Luiz do Rosário testemunha a redução das águas do urucuia: "Cada tempo que passa, a seca aumenta"

Alexandre Guzanshe/EM/D.A. Press

 


A morte de um rio em uma noite

 

 

A pesquisadora Flávia Galizoni, do câmpus de Montes Claros da Universidade Federal de Minas Gerais, cita como exemplo do impacto dos danos às veredas o caso do Rio dos Cochos, que nasce no município de Cônego Marinho e percorre Januária até chegar ao Rio São Francisco, no Norte de Minas. “O Rio dos Cochos teve as duas veredas, que eram suas nascentes principais, soterradas por terras movimentadas para plantio de eucalipto. O rio foi morto numa noite, porque uma chuva levou a terra gradeada do desmatamento para seu leito, matando o curso d'água e afetando diretamente o abastecimento humano e produtivo de seis comunidades rurais”, testemunha Flávia Galizoni.

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