Noroeste e Norte de Minas Gerais, trijunção Minas, Bahia e Goiás – Sem um mapeamento confiável que identifique as áreas de veredas e outras consideradas de proteção permanente em Minas, resta aos órgãos de fiscalização e ao Ministério Público de Minas Gerais trabalhar com denúncias recebidas. Ou com a observação dos fiscais, que muitas vezes identificam formações de veredas quando avaliam outros quadros ambientais – como a recomposição de terrenos de reserva legal, para os quais os proprietários de terra devem destinar 20% da propriedade.


Essa fragilidade do sistema de proteção era com o que contava um fazendeiro com propriedades entre os municípios de João Pinheiro, no Noroeste de Minas, e São Gonçalo do Abaeté, no Norte mineiro – agora enfrentando uma ação civil pública para restituir o que degradou e cumprir reflorestamentos prometidos.


Primeiramente, o ruralista declarou que sua propriedade eram três, o que reduziria a área de reserva legal. Depois, apresentou um Projeto Técnico de Reconstituição da Flora (PTRF) segundo o qual plantaria mudas de espécies arbóreas nativas na reserva, fazendo a manutenção pós-plantio, com controle de formigas cortadeiras. “No ano de 2020, o proprietário apresentou laudo técnico de cumprimento do PTRF, no qual afirmou que ‘foi executado de forma melhor do que o proposto’ e que ‘toda a área encontra-se em regeneração’”, indicou a ação.

 




Quilômetros de veredas degradadas

 

Contudo, fiscalização por imagens de satélites e no local do empreendimento evidenciou que as APPs do imóvel não foram nem estavam sendo restauradas. “Pelo contrário, partes vêm sendo utilizadas para fins agropecuários e partes estão servindo para deposição de árvores nativas de grande porte, que estavam isoladas e foram cortadas de pastagens que estão sendo convertidas em plantios. Mais de dois quilômetros de APPs de veredas foram alteradas ou degradadas. Não foram alvo de nenhuma ação de restauração ecológica”, indica o laudo, que ainda não foi apreciado pela Justiça.


As invasões das APPs durante tanto tempo encorajaram o desmatador a avançar mesmo sobre áreas de veredas não declaradas. “As imagens de satélite mostram que partes das APPs de veredas alteradas ou degradadas foram utilizadas inclusive para formar pivôs de irrigação. É simplesmente impossível considerar que APPs utilizadas para plantios agrícolas em pivôs de irrigação estejam em processo satisfatório de restauração ecológica. Também há faixas de APPs de veredas completamente cobertas por gramíneas exóticas invasoras”, destacou a fiscalização.

 

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A propriedade alvo de ação do MP tampouco cumpria com a área de reserva legal necessária pelo tamanho do terreno, e que deveria ter, em um dos pontos, 94,1 hectares, mas que não continha vegetação nativa. Nesse local, a área de vereda simplesmente não consta no inventário Florestal do IEF-MG, com a água nascente e os buritis sendo classificados como um pequeno fragmento de cerrado (14,4 hectares), em meio a áreas de plantação. Isso, apesar de a água que nasce na propriedade fluir para o do Rio Santo Antônio, que é um importante tributário do Rio do Sono, por sua vez afluente do Rio Paracatu.

 

Secamento de nascentes ou barramentos nas cabeceiras matam de sede veredas, como vem ocorrendo com formações em Três Marias. Fogo e pressão do eucalipto agravam o processo

Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

 

Água sugada de rios e nascentes

 

A água das veredas também é um alvo frequente de grandes empreendimentos que, mesmo não sendo licenciados, captam diretamente desses ecossistemas que deveriam manter os rios do cerrado. Isso quando não os exaurem indiretamente, ao consumir grandes volumes por meio de poços que sugam os aquíferos responsáveis por nutrir as formações protegidas por lei.


Um caso que ilustra essa situação foi detectado pelo Ministério Público de Minas Gerais em Lagoa Grande, no Noroeste do estado, município conhecido por suas veredas fornecerem muita água para o Rio Paracatu, manancial que alterna ano a ano com o Rio das Velhas o título de maior contribuinte do Rio São Francisco. As captações irregulares na fazenda sugam a água da vereda e do Rio da Prata – ambos afluentes do Paracatu – para seis pivôs centrais em uma área que totaliza 641 hectares (ha) – onde caberiam 2,6 parques das Mangabeiras (240 ha), de Belo Horizonte, ou quatro parques do Ibirapuera, de São Paulo.

 

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Licenciamento fraudulento

 

Ao detectar as irregularidades, o MPMG ajuizou uma ação civil pública para impedir mais danos e reconstituir o meio ambiente. “No ano de 2019, o empreendedor obteve licenciamento ambiental para suas atividades, por meio da prestação de informações falsas, enganosas e/ou incompletas ao órgão licenciador. Com isso, a licença ambiental foi emitida considerando um porte e potencial poluidor diferentes da realidade (e mais de um terço menores)”, indica resultado da fiscalização que consta no processo.


A emissão da licença também dependeria da prévia regularização das intervenções ambientais e hídricas existentes no empreendimento, o que tampouco foi realizado e dificilmente seria na extensão da vereda, por ser considerada uma Área de Preservação Permanente (APP). “Estão instalados seis pivôs de irrigação, com cerca de 641 hectares de área total. O empreendedor realizou duas captações de águas públicas, sendo uma no curso d’água do Rio da Prata e uma na vereda”, indica a ação.


A área fica próxima da chamada Vereda dos Cágados, um afluente direto do Rio da Prata que consiste em quatro fragmentos da vegetação protegida, somando 122,11 hectares. A captação do Rio da Prata também ocorre em volume acima do outorgado pelo Igam, que seria para 200 hectares.


“A captação instalada em vereda não possui outorga válida, uma vez que ela é realizada mediante a instalação de estruturas (canais de irrigação e casas de bombas) em veredas e em suas áreas de preservação permanente (APPs), o que não é permitido. Em todas as vistorias realizadas ao empreendimento, a Polícia Militar de Meio Ambiente suspendeu as captações realizadas de maneira irregular, mas o empreendedor em nenhuma ocasião respeitou as medidas suspensivas (continuando a captar nos recursos hídricos após a saída das autoridades)”, afirma a fiscalização que baseou a ação do MP.

 

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Não bastasse, conforme reportado no auto de fiscalização, as embalagens vazias de agrotóxicos geradas no empreendimento, bem como aquelas de resíduos oleosos, estavam sendo dispostas no solo sem nenhum tipo de impermeabilização, violando normas técnicas e legais. “O que pode causar a contaminação do meio ambiente local, pelo contato direto do solo com os efluentes oriundos destas embalagens”.


Punições e compensações

 

A ação civil pública requer a suspensão imediata das atividades efetivas ou potencialmente poluidoras e a interrupção imediata das captações hídricas irregulares. Caso a Justiça dê ganho de causa ao MP, o empreendedor também deverá demolir todas as estruturas construídas irregularmente em ambientes de veredas e em suas APPs, em até 60 dias. Mesmo prazo que terá para apresentar Projeto Técnico de Reconstituição da Flora (PTRF), “subscrito por profissional competente, com anotação de responsabilidade técnica e cronograma mínimo de execução de três anos”.


Será exigida ainda a construção de locais adequados para armazenamento das embalagens vazias de agrotóxicos e daquelas com resíduos oleosos. A título de compensação ambiental, o MP pede, no mínimo, a quantia de R$ 832.463,52, devendo o valor ser destinado ao Fundo Especial do Ministério Público (Funemp).

 

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625 infrações em 1.296 ações fiscais

 

A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) informa que, de 2022 a 2024, foram realizadas 1.296 fiscalizações nos municípios sob jurisdição dos regionais Noroeste e Norte, por onde se estendem os 50 municípios mineiros citados por Guimarães Rosa ou por ele percorridos para sua obra maior. Foram identificadas 625 infrações, sendo que as mais recorrentes estavam relacionadas a irregularidades na captação de água.

 

 

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