“O primeiro grande romance metafísico da literatura brasileira.” Assim o crítico literário Antonio Candido definiu “Grande sertão: veredas” na apresentação de “O homem dos avessos”, um dos mais célebres estudos do único romance de João Guimarães Rosa. No ensaio, publicado na revista “Diálogo”, em 1957, com o título “O sertão e o mundo” e incluído posteriormente no livro “Tese e antítese”, Candido forneceu a senha para as múltiplas reações, análises e interpretações que o romance tem recebido ao longo das décadas: “Na extraordinária obra-prima ‘Grande sertão: veredas’ há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-lo a seu gosto, conforme o seu ofício.”

 




A crítica de Candido foi uma das primeiras reações superlativas ao livro lançado em julho de 1956. Com 594 páginas e capa e sobrecapa ilustradas pelo artista gráfico Poty, “Grande sertão: veredas” chegou às livrarias com o subtítulo “O diabo na rua, no meio do redemoinho...” e acompanhado de uma nota do autor com solicitação relativa à identidade de Diadorim: “Aos leitores, e aos que escreverem sobre este livro, pede-se não revelar a sequência de seu enredo, a fim de não privarem os demais do prazer da descoberta”.

 


O lançamento ocorreu dois anos depois do primeiro registro do romance na imprensa. Foi na coluna “No mundo dos livros”, da revista “O Cruzeiro”, dos Diários Associados, em abril de 1954. A nota de abertura informava que Guimarães Rosa, “em grande atividade”, havia finalizado duas obras: as novelas reunidas em “Corpo de baile” e o primeiro romance, ainda intitulado “Veredas mortas”. “É uma densa, poderosa história em que a arte de narrar é atingida pelo autor na sua mais perfeita forma”, antecipa o colunista Geraldo de Freitas. “Tanto um livro quanto o outro abrem perspectivas inteiramente novas na vida literária do novelista de ‘Sagarana’, assinalando dois momentos definitivos na prosa de ficção brasileira”, garante o colunista. “É a primeira notícia da existência real e concreta de ‘Grande sertão: veredas’”, aponta o pesquisador Érico Melo, responsável pelo estabelecimento de texto e cronologia da mais recente edição do livro, publicada pela Companhia das Letras em 2019 e que chegou à 11ª reimpressão em junho último. “Veredas mortas” é também o título da série de reportagens que o Estado de Minas publica desde o último dia 14 e que mostra a degradação ambiental na região descrita pelo autor.

 

 

“Sou tomado pelos
caboclos de Minas”

 

Nascido em Cordisburgo em 27 de junho de 1908, João Guimarães Rosa cresceu escutando as histórias do sertão contadas pelos boiadeiros, mascates e outros frequentadores do comércio do pai, Florduardo Pinto Rosa, o “Seu Fulô”. Absorvia os causos populares com a mesma intensidade do mergulho nas leituras e no estudo de idiomas como francês, holandês e alemão. Por isso, mesmo já com a carreira consolidada no corpo diplomático do Itamaraty, fazia questão de se afirmar, essencialmente, como “um homem do sertão”. “Quando escrevo, como que sou tomado pelos caboclos de Minas”, afirmou em entrevista à Tribuna da Imprensa, publicada em 1956.

 


Guimarães Rosa representa uma síntese feliz entre duas vertentes da ficção brasileira na primeira metade do século 20: o regionalismo e o romance espiritualista ou psicológico, aponta uma das maiores especialistas na obra do autor, Walnice Nogueira Galvão. No livro “Mínima mímica – ensaios sobre Guimarães Rosa”, a ensaísta destaca que o mineiro superou ambas as vertentes e se distanciou “no apuro formal, no caráter experimentalista da linguagem, na erudição poliglótica, no trato com a literatura universal de seu tempo e no fato de escrever prosa como quem escreve poesia, ou seja, palavra por palavra ou até fonema por fonema.”

 


No capítulo “Um vivente, seus avatares”, Walnice defende a ideia de que o protagonista e narrador de “Grande sertão: veredas” é um vivente de avatares, que revela faces diferentes de acordo com as etapas de sua vida. “Quando a narração se inicia, Riobaldo está ostentando sua derradeira face, mas o leitor fica sabendo de seu passado de jagunço e chefe de bando, cuja reputação, vinda de longa data, ficava pairando sobre boa parte do sertão de Minas Gerais”. A professora emérita de Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo faz um alerta: “Riobaldo não é um narrador direto ou fluente; demora muito a entabular sua história, é manhoso e tergiversador, tenta enganar o interlocutor e boa parte do livro decorre antes que se resolva a abrir o jogo.”

 


Walnice Nogueira Galvão lembra que Guimarães Rosa buscou no sertão a linguagem que atribuiu ao seu narrador. Isso porque o idioma ficava mais preservado longe dos centros urbanos, sem as inovações trazidas pela mídia ou pelas ondas migratórias. “Os dois traços básicos da linguagem empregada por Riobaldo são, por isso, os regionalismos e os arcaísmos”, afirma a ensaísta, antes de fazer importante ressalva.

 


“Mas isso seria demasiado simples para um escritor tão requintado. Nem tudo o que seu protagonista profere é preexistente na língua portuguesa do Brasil: boa parte do vocabulário é constituído por neologismos. Saídos da oficina verbal do autor, dão brilho e graça à fala de Riobaldo”, destaca a autora de ensaios que se tornaram referências sobe a obra do mineiro, como “As formas do falso (Um estudo sobre a ambigüidade no ‘Grande sertão: veredas’” e “A donzela guerreira”, este dedicado à análise da personagem mais misteriosa – e fascinante – do livro: Diadorim.

 


Diante da profusão de interpretações para a sua obra, Guimarães Rosa às vezes tinha reações desconcertantes. Em longo diálogo com o jornalista Gunter W. Lorenz durante congresso de escritores na Itália, quando o alemão enumerava fatos marcantes na vida do escritor e que poderiam ter influenciado as suas criações (a trajetória como diplomata, o domínio de diversos idiomas), Rosa o interrompeu para lembrar: “Tudo isso é certo, mas não se esqueça dos meus cavalos e das minhas vacas. Quem lida com vacas e cavalos aprende muito para sua vida e a vida dos outros”, afirmou em 1965, dois anos antes de sua morte, em 19 de novembro de 1967. Na mesma conversa com Lorenz, Rosa deixou uma definição sobre a obra que deixou: “Meus livros são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço do infinito.” 

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