“A precisa potência de ser muito mais”

 

“Grande sertão: veredas” é um livro essencial em minha vida. Eu, quando li e sempre que leio, reconheço ali uma sonoridade que me arrebata afetivamente, como se fosse um pouco meu. Como disse Milton Nascimento: “Certas canções que ouço, cabem tão dentro de mim, que perguntar carece: como não fui eu que fiz”. Tantas coisas ditas além do que está escrito, tanta coisa escrita na precisa potência de ser muito mais. Minas no universal da existência. Amo.

 

Carla Madeira
escritora, autora de romances como “Tudo é rio” e “A natureza da mordida”

 

 

Carla Madeira

Carla Madeira

Fotos: Reprodução




  

 

“À Rosa o que é de Rosa”

 (À memória de Benedito Nunes)

 


A leitura de “Grande sertão: veredas” pede tempo e paciência. Ou, como diz o narrador Riobaldo ao seu interlocutor: “O senhor espere o meu contado. [...] só aos poucos é que o escuro é claro”.

 


Na luta decisiva entre bandos de jagunços chefiados pelos inimigos Riobaldo e Hermógenes, o triunfo sobre o demoníaco e uma cena trágica e reveladora comovem o leitor. Antes dessa batalha crucial, Riobaldo selara um pacto com o demônio, e o embate contra o Mal persistirá até o fim. Isso leva o narrador a especular sobre Deus e o diabo, uma das postulações metafísicas do romance. “Travessia, Deus no meio”.

 


As histórias narradas por Riobaldo (agora um fazendeiro velho e cansado) deságuam numa espécie de mar épico, em pleno sertão mineiro. Nos inúmeros caminhos percorridos pelas personagens, a fauna, a flora e a geografia do centro-norte de Minas são invocadas com precisão e emoção lírica. Mais que meras descrições, a natureza e a cultura dessa região são constitutivas da vida das personagens. Não por acaso, o título refere-se a um espaço grandioso e suas diversas veredas. Mas no romance há outra região, igualmente vasta e complexa: o mundo interior, íntimo e subjetivo das personagens. “Sertão: é dentro da gente.”Ao contar sua vida a um homem da cidade, Riobaldo sonda as múltiplas faces da alma humana, a que não faltam indagações sobre questões existenciais, sociais, religiosas, políticas. A construção de personagens complexas e de uma notável arquitetura narrativa é iluminada pela linguagem, um dos astros de primeira grandeza do romance. A capacidade inventiva de Rosa transforma a fala do sertanejo em prosa poética, algo dificílimo num romance tão extenso. No sertão (e no Brasil) de “mil e uma misérias” e de “constante brutalidade”, esse romance, assim como o amor mais profundo e verdadeiro, é “um descanso na loucura”. Penso que é uma dessas raras obras literárias que, em sua complexidade e beleza, nos estimulam a refletir sobre tantas coisas de natureza íntima, até então misteriosas, e que nos causam uma emoção forte, perene. Enfim, ler esse romance colossal é uma alegria para sempre.

 

Milton Hatoum
Escritor, autor de livros como “Dois irmãos”, “Cinzas do Norte” e “A noite da espera”

 

Milton Hatoum

Fotos: Reprodução

 

 


“Os caminhos onde deságuam
tramas e encantos”

 

Ouvi certa vez de Donaldo Schüler que os narradores se distribuem em duas categorias: os contadores e os estilizadores de histórias. Ainda que não seja para tomar ao pé-da-letra, trata-se de partilha instigante, segundo a qual, como Sousândrade ou Clarice Lispector, Guimarães Rosa se poria do lado dos estilizadores. Mas não se nega que ele seja também contador de estórias, de que “Grande sertão: veredas” dá amplo testemunho.

 


Se o que de imediato chamou e chama a atenção dos leitores é a sofisticada carpintaria linguística (o que já bastaria para a consagração), ela só se realiza como um modo de narrativa apropriado para contar a estória cuja vereda principal chega ao clímax apenas nas derradeiras das mais de 600 páginas: o trânsito de Reinaldo, o menino “diferente” que Riobaldo conhece de início, a Diadorim, seu nome secreto, e, finalmente, à bela Deodorina. O subtítulo “veredas” sugere como o enredo se desdobra em percursos, uma vereda sendo isto: um caminho, em geral com alguma água, donde deságuam as tramas, as cenas, indagações, batalhas, traições, alianças e amizades – a principal sendo a atração proibida entre os dois jagunços. Como tudo é altamente estilizado, o livro envereda por todo tipo de reflexão existencial, Riobaldo (ou Rosa) revelando-se excelente aforista: “Eu quase nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”; “Viver é muito perigoso”; “As pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas”.

 


Como todo aforismo, estes são insights que logo caíram logo em domínio comum, pelo tanto que significam do incomum existente em cada acontecimento e ensinam como “tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto”.

 

Jacyntho Lins Brandão
Escritor, professor e tradutor, presidente da Academia Mineira de Letras (AML)

 

Jacyntho Lins Brandão

Fotos: Reprodução

 


“Uma teia de imagens da
memória do que se perdeu”

 

Ler “Grande sertão: veredas” é uma experiência que se renova sempre a cada releitura, como ocorre com os livros que se tornam clássicos à medida que o tempo passa. Situada num enclave do sertão mineiro que, para nossa tristeza e remorso, vai desaparecendo, a narrativa da história do amor impossível entre Diadorim e Riobaldo é a moldura ou o retrato da luta entre o bem e o mal – Deus e o diabo em confronto no nosso “Fausto” sertanejo. A alta carga inventiva do texto, como nenhum outro romance em língua portuguesa atingiu, lança o leitor numa teia de imagens que vão tecendo a memória do que se perdeu e Riobaldo, o narrador, busca recuperar: “O que lembro, tenho”, diz ele.

 


Assim é que o sertão, espaço geográfico determinado, passa a ser do “tamanho do mundo”, “está em toda parte” e “dentro da gente”, num processo narrativo de expansão e contração próprio da reminiscência. Afastamento e aproximação simultâneos à procura do sentido: “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo”.

 


Por isso também é que Diadorim é a “neblina” de Riobaldo – inapreensível imagem do que poderia ter sido e não foi. Os olhos do/a companheiro/a pontuam a “estória acabada”, signo de amor e morte cuja visibilidade mais perturba do que deixa ver claro, o que é a razão de toda imagem literária. Todas elas são da ordem do inesperado, como a exaltação de Riobaldo diante de Diadorim: “Assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível – o senhor represente”. Afinal, a tarefa de todo grande escritor não é dar nome ao que não tem nome?

 

Wander Melo Miranda
Crítico literário e professor emérito da UFMG, autor de “Os olhos de Diadorim e outros ensaios”

 

Wander Melo Miranda

Fotos: Reprodução

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