Uma espécie de leitura comentada, bússola para ajudar o leitor a atravessar a “floresta linguística” engendrada por João Guimarães Rosa. Este é o objetivo de “Para ler Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa”, do professor Luiz Carlos de Assis Rocha. Lançado em 2020 pela Páginas Editora, o livro tem ilustrações de Nelson Cruz e quase 400 páginas resultantes de um trabalho de obstinação desenvolvido ao longo de décadas.

 


Nascido em Pitangui, aluno e professor da Faculdade de Letras da UFMG, Luiz Carlos Rocha defendeu tese de doutorado baseada na linguagem de Guimarães Rosa. Ele acaba de concluir “Para ler ‘Corpo de baile”, guia de leitura para “um livro tão espetacular quanto ‘Grande sertão’, com sete contos fantásticos, cheios de estória e de fantasia”, afirma, sobre a obra do autor que inspira também a série de reportagens “Veredas mortas”, publicada pelo Estado de Minas. “Há muitas semelhanças entre os dois livros, pois ambos apresentam a natureza luxuriante dos gerais de Minas, com as aventuras, os sonhos, as traições e as ambições de seus personagens. Mas, se ‘Grande sertão’, por ser um romance, propicia um adensamento maior de seus dramas, ‘Corpo de baile’ apresenta contos que podem se igualar a romances, como é o caso, por exemplo, de ‘Buriti’.” O lançamento da editora Literíssima (novo nome da Páginas), previsto para agosto, está em pré-venda no site da editora. Leia, a seguir, a entrevista de Luiz Carlos Rocha ao EM sobre o seu trabalho.

 




Como surgiu sua necessidade de escrever “Para ler ‘Grande sertão: veredas’, de Guimarães Rosa”?


“Grande sertão: veredas” tem sido considerado como um dos livros mais importantes da literatura de língua portuguesa, ao lado de “Os Lusíadas”, de Camões e de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. No entanto, o que se observa é que um número relativamente pequeno de pessoas consegue ler o livro até o fim. Mesmo pessoas estudadas, como professores, jornalistas, advogados, escritores, suspendem a leitura nas primeiras páginas, sem falar, é claro, nos iniciantes em literatura. Isso é uma pena, porque estamos falando de um escritor mineiro, que nasceu e viveu aqui, pertinho de nós, e que trata em sua obra de coisas e acontecimentos intimamente ligados ao nosso estado. “Para ler Grande sertão: veredas” é um livro que ajuda o leitor a entender o grande romance, com explicações passo a passo a respeito do vocabulário, dos recursos sonoros, dos neologismos, das expressões idiomáticas, da sintaxe, da semântica do texto, chegando, enfim ao significado da obra.


Como foi desenvolvido o trabalho?


Para que o leitor consiga mergulhar de corpo e alma na obra de Guimarães Rosa, é necessário que ele participe ativamente da revolução linguística operada pelo autor. Como levar o leitor a perceber e a sentir a linguagem tão inovadora do escritor? Preferimos optar pelo acompanhamento natural da pessoa, uma espécie de leitura comentada, ou seja, à medida que a pessoa vai lendo, vão sendo explicadas as principais dificuldades, como o sentido das palavras, o porquê do surgimento de novos vocábulos, as figuras de linguagem, os significados ambíguos e assim por diante.

 


O que é preciso para desbravar o que o senhor chama de “floresta intrincada de malabarismos linguísticos”?

 


Há passagens do “Grande sertão” que são verdadeiras florestas impenetráveis de artifícios linguísticos, ou seja, o autor chega ao ápice das inovações da linguagem, usando de recursos os mais variados possíveis. Mas é preciso considerar que essas florestas impenetráveis escondem tesouros do mais alto valor, peças riquíssimas, de riqueza inestimável. Cabe ao leitor, interessado na descoberta desses tesouros, ler “Grande Sertão” com o máximo de paciência, se possível com o auxílio de um livro de leitura comentada (como o que oferecemos) ou com a participação em grupo de leitura de Guimarães Rosa.

 


Por que o senhor contesta a afirmação que a linguagem de “Grande sertão” copia a “língua dos gerais”?

 


Alguns autores chegaram, de fato, a afirmar que a linguagem do “Grande sertão” é uma cópia da “língua dos gerais’. Há um certo exagero, ou mesmo uma inverdade, nessa afirmação. Sem dúvida, o texto rosiano apresenta uma forte influência do linguajar do Norte de Minas, não só no vocabulário, como também na formação das frases, na semântica e na arquitetura das sentenças. Mas há infindáveis passagens do livro que não apresentam essa influência (como no episódio da Maria Mutema). Além disso, toda extensão do livro não apresenta a apócope do “s” e do “r” (as casa, os menino, casá, morrê), tão comum no falar dos gerais. Acrescente-se que a concordância verbal, assim como outros recursos linguísticos, é nitidamente característica da linguagem escrita.

 


Como se dá a adjetivação no livro?

 


A adjetivação praticada por Guimarães Rosa é tão original que muitas vezes se torna difícil estabelecer o elo entre o substantivo e o adjetivo, o que torna o sintagma um tanto anódino e estranho, como no caso de “novidade quieta” ou “olhos perguntados”, mas de um efeito estilístico único. Outros exemplos: “...e concebia por ele [Diadorim] a vexável afeição que me estragava...”; “...até daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e conheci, concernente amor.”; “Diadorim vindo feito um milagre alvo.”.

 


“A verdadeira revolução rosiana se faz no campo da sintaxe”, o senhor afirma. Poderia explicar e exemplificar essa afirmação?

 


A verdadeira revolução rosiana se faz no campo da sintaxe, porque é nesse campo que o autor é mais ousado, mais revolucionário. Guimarães Rosa chega ao extremo de apresentar frases, orações, períodos e combinações de períodos que não pertencem à língua portuguesa. Ele rompe com o sistema do idioma, ou seja, ele constrói frases que não obedecem à estrutura sintática da língua portuguesa. Cada língua tem sua maneira específica de combinar palavras, que pode coincidir com o sistema de outras línguas. Mas Guimarães Rosa constrói frases estranhas ao português, como nos exemplos: “Pra não isso, hei coloquei redor meu minha gente;”; “Me mordi, me abri, me-amargo.”; “Cujo eu me disse...”; “Como no homem que a onça comeu, cuja perna”; “Só nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio interno delas; só nos onde os olhos.”`É claro que tais ousadias do idioma funcionam bem melhor no contexto fabuloso das estórias rosianas.

 

 

Guimarães Rosa afirmava que não procurava a transparência. Pelo contrário, defendia que o leitor ficasse “chocado, despertado de sua inércia mental, da preguiça e dos hábitos para tomar consciência viva do escrito, a todo momento.” Ao facilitar a leitura, o seu livro não corre o risco de reduzir o choque defendido pelo autor?


Conheço pessoas, amigos meus, que conservam o “Grande sertão: veredas” como um “livro de cabeceira’ e, todas as noites, antes de dormir, rejuvenescem-se com a poesia do grande livro. Tenho um outro amigo que me garantiu que lê “Grande Sertão” todos os anos. Sei de casos de pessoas que já ouviram a “Sétima Sinfonia”, de Beethoven, por mais de cem vezes. E assim por diante. A verdadeira obra de arte nos choca sempre que entramos em contato com ela. Facilitar a leitura de Guimarães Rosa é promover o encontro do leitor com um gênio da escrita.

 

 

Obra do professor luiz Carlos de Assis Rocha tem ilustrações de Nelson Cruz e quase 4oo páginas resultantes de um trabalho de décadas

NELSON CRUZ/reprodução

 

 

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