Professores foram nomeados nesta sexta-feira -  (crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press)

Professores foram nomeados nesta sexta-feira

crédito: Leandro Couri/EM/D.A Press

A transferência da gestão da educação pública para empresas privadas no Brasil tem ganhado cada vez mais espaço nas discussões, em especial depois que os governos de São Paulo e do Paraná anunciaram projetos nesse sentido. Em Minas Gerais, o governo adota experimentalmente uma espécie de “meio-termo” entre o modelo público e a privatização das escolas estaduais: a gestão compartilhada. E, em meio a questionamentos, se prepara para estender o Projeto Somar já no ano que vem. Nessa quarta-feira (31/7), a Secretaria de Estado de Educação (SEE-MG) publicou o edital para que Organizações da Sociedade Civil (OSCs) da área de educação se credenciem para colaborar na gestão compartilhada de algumas escolas estaduais. Essa ampliação, entretanto, preocupa especialistas, uma vez que não foram divulgados dados que permitam avaliar a efetividade do programa.

 

Apresentado como uma abordagem estratégica para implantação do Novo Ensino Médio, o Projeto Somar foi proposto em 2021 e começou a ser executado em 2022 em programa-piloto que envolve três escolas estaduais, com duração de quatro anos: a Francisco Menezes Filho, no Bairro Ouro Preto, a Maria Andrade Resende, no Bairro Garças, ambas da Região da Pampulha, na capital, e a Coronel Adelino Castelo Branco, em Sabará, na Grande BH.

 

Desde o lançamento, a iniciativa é alvo de críticas sobre os mais diversos aspectos, entre eles a entrega da educação pública à iniciativa privada, a falta de participação popular no desenvolvimento do projeto e a não divulgação dos resultados. “Não se tem dado algum sobre resultados. A SEE nunca prestou contas, não tem nenhuma avaliação sobre como é o projeto, nem dos resultados nesses anos de implantação. Nas escolas em que esse projeto foi levado a termo ninguém fala sobre o assunto, porque todos têm medo de demissão, já que são vinculados à organização da sociedade civil e não ao Estado”, afirma a coordenadora-geral do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação (Sind-UTE/MG), Denise Romano.

 

O secretário de Educação, Igor de Alvarenga informa, entretanto, o Estado pretende aumentar a “capilaridade” da iniciativa. “Ainda não temos números porque estamos no momento de construção, mas em breve pretendemos soltar novidades do Projeto Somar. Ter uma maior capilaridade do projeto no nosso estado seria um avanço muito importante”, afirmou o secretário em entrevista ao Estado de Minas dias antes de anunciar a ampliação.

 

Segundo o governador Romeu Zema, a expansão do projeto pode alcançar até 80 escolas em todo o estado. “Esse projeto inovador tem mostrado excelentes resultados nas nossas escolas, comprovando que a gestão compartilhada entre Estado e as OSCs pode realmente transformar a educação pública”, afirmou Zema na divulgação da publicação do edital.

Diretor-executivo da Associação Centro de Educação Tecnológica (Ceteb), responsável pela gestão das escolas do Projeto Somar, Claudenir Machado explica que o objetivo não é transformar todas as escolas em parcerias público-privadas, mas oferecer “mais uma” opção de ensino. “Acho que o que está mais próximo da realidade da educação pública brasileira é um projeto dessa natureza, sem desresponsabilizar o Estado. Adequando e aprimorando para que seja uma escolha a mais. O grande propósito é esse”, defende.

 

Também o presidente do Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais, Felipe Michel Santos Araújo Braga, considera positiva a oferta de diferentes modelos de escolas a fim de atender à diversidade das demandas da população. Para ele, isso faz parte da obrigação do Estado de oferecer educação de qualidade a todos. “No Conselho, de uma forma geral, a gente está vendo essas inovações não para substituir o modelo que a gente tem, mas para complementar e expandir o perfil das juventudes que são acolhidas e formadas nas nossas escolas”, sustenta Felipe.

 

TRANSPARÊNCIA EM QUESTÃO

Para os críticos do projeto, falta transparência que permita uma avaliação, uma vez que não foram divulgados estudos sobre desempenho das escolas envolvidas. Em uma página disponibilizada pela SEE, é possível ter acesso aos relatórios feitos pela Comissão de Monitoramento e Avaliação, mas neles constam apenas considerações gerais, afirmando que a gestão compartilhada “foi desenvolvida de forma parcialmente satisfatória”. Não são apresentados índices ou dados para sustentar a afirmação.

 

Após reiteradas solicitações da reportagem do Estado de Minas, a secretaria disponibilizou, em 4 de junho, via e-mail, alguns dados referentes às instituições envolvidas. Segundo a SEE, “em duas das três escolas que integram o projeto, a classificação dos pais/responsáveis, professores/funcionários e o entorno mudou de 'Desorganização' e 'Falta de Segurança' (2022) para 'Boa Escola' (2023)”.

 

 

Na Escola Estadual Francisco Menezes, a taxa de aprovação dos estudantes aumentou de 86,9% em 2022 para 95,4% em 2023, enquanto a taxa de frequência subiu de 87% para 89%. Houve também um aumento na participação da comunidade, que se elevou de 23% para 34% no período, abrangendo maior presença de estudantes, familiares, funcionários e membros da comunidade. Na Escola Estadual Maria Andrade Resende, a taxa de aprovação dos alunos subiu, segundo os mesmos dados, de 92% em 2022 para 95,2% em 2023. A frequência escolar aumentou de 90% para 94%, com todas as aulas previstas sendo realizadas conforme planejado.

 

Na Escola Estadual Coronel Adelino, a taxa de aprovação dos alunos aumentou de 62% em 2022 para 93% em 2023. A frequência subiu de 95% para 98%. Houve também um aumento notável na participação da comunidade escolar em reuniões agendadas no calendário escolar: a participação dos estudantes subiu de 5% para 20%, dos familiares, de 10% para 34%, e dos funcionários/professores, de 50% para 86%.

 

O relatório completo, porém, não foi disponibilizado até o fechamento desta edição. A Fundação João Pinheiro (FJP), que também atua na elaboração do relatório de monitoramento e avaliação do Projeto Somar, foi contactada, e informou que “o trabalho, por parte da FJP, já foi concluído e enviado à Secretaria de Estado de Educação”. Esse resultado, da mesma forma, não foi divulgado.


DADOS “FECHADOS”

Tiago Fávero, doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, fez um estudo sobre o Projeto Somar e tinha a intenção de acompanhar o programa para novas análises, mas não conseguiu acesso aos dados. A mesma queixa foi relatada pela pedagoga e especialista em gestão escolar Lara Rodrigues, pelo Sind-UTE e pelo Sindicato dos Professores de Minas Gerais (Sinpro Minas).

 

“A secretaria diz nos editais que haveria um acompanhamento do projeto. Só que em nenhum momento foi publicado nada desse acompanhamento”, afirma Lara, pontuando que, dessa forma, é difícil “saber se realmente a implementação foi boa em relação à qualidade”. Já Valéria Morato, presidente do Sinpro Minas, afirma ainda que “o governo do estado ignora a representação dos trabalhadores e trabalhadoras não possibilitando qualquer diálogo sobre a alteração da organização escolar”.

 

 

Questionado sobre a falta de participação popular para o desenvolvimento do Somar, o secretário de Educação afirmou que o projeto foi apresentado para os diretores das escolas, além de diálogos e assembleias com as comunidades escolares, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, com o Ministério Público e com a Defensoria Pública. “Não foi do nada, foi construído”, afirma Alvarenga.

 

Em que pesem as críticas, alunos, pais e funcionários ouvidos pelo EM em visita acompanhada pela assessoria de imprensa da SEE a uma das escolas se mostraram satisfeitos com a atual gestão. “Eles estão aprendendo que aqui tem valor e que esse valor não é monetário (...)Vejo que os estudantes de escola pública, quando começam a enxergar a educação com muito valor, se esforçam mais e dão uma resposta bastante favorável”, afirma a professora de biologia da Escola Estadual Francisco Menezes Filho, Gabriela Lelis de Moura.

 

Em execução experimental em três escolas estaduais de Minas Gerais desde 2022 e com uma expansão já em formatação, o Projeto Somar enfrenta questionamentos quanto à sua legalidade. O argumento gira em torno da proximidade da proposta da chamada gestão compartilhada com a privatização. Segundo os críticos, o Estado estaria abrindo mão do dever de suprir o direito à educação, transferindo-a para o mercado.

 

Segundo Tiago Fávero, doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atualmente, é mais interessante para entidades privadas firmarem parcerias com o Estado para acessar o dinheiro público do que comprar uma instituição. Esse processo, acredita, transforma direitos como a educação em mercadorias.

 

Já para Carlos Roberto Jamil Cury, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/Minas) nas áreas de políticas educacionais e direito à educação, o Projeto Somar descumpre artigos e metas do Plano Nacional de Educação (PNE), instituído pela Lei nº 13.005/2014, que estabelece a gestão democrática para as escolas da rede pública. O Estado, afirma Cury, estaria substituindo a gestão democrática por “um conceito novo, de gestão compartilhada, que não tem sustentação legal”. “Está muito claro, seja no PNE, na LDB (Lei de Diretrizes de Base), na Constituição e agora numa lei específica sobre gestão democrática. Do ponto de vista jurídico, o democrático supõe o compartilhado, só que o compartilhado não prevê, na gestão democrática, a introdução do privado”, afirma Cury.

 

Para o secretário de Educação, Igor de Alvarenga, entretanto, afirmar que há repasse da educação para a iniciativa privada demonstra desconhecimento sobre o projeto, e sua vinculação a um discurso de privatização é “partidária”. “O que trago aqui é uma discussão educacional. É importante saber que não adianta forçar uma vinculação de algo que não é compatível com o conceito de uma gestão compartilhada. Estamos trazendo um modelo diferente, mas não estamos privatizando a escola”, defende o secretário de Educação.

 

Uma das críticas do projeto é a deputada Beatriz Cerqueira (PT), presidente da Comissão de Educação e Tecnologia da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Ela lista denúncias contra a iniciativa, entre elas a de que os editais de chamamento público referentes ao projeto seriam inconstitucionais. A Ceteb também foi alvo de denúncias, no âmbito trabalhista. Entre as supostas irregularidades listadas estão: início das atividades pelos profissionais contratados antes de finalizado o processo de contratação, atraso de mais de 20 dias para assinatura da Carteira de Trabalho e ausência de pagamento dos salários e dos demais encargos trabalhistas. Segundo a SEE e o Ceteb, esses foram casos pontuais, já resolvidos, de modo que todos os contratos estão regularizados e sem pendências.


APOIO NA COMUNIDADE

A reportagem foi até uma das participantes do Projeto Somar, a Escola Estadual Francisco Menezes Filho, no Bairro Ouro Preto, Região da Pampulha, mas teve a entrada negada. Após diversos pedidos, foi concedida uma visita, acompanhada pela assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Educação. Foi possível conversar com alunos, ex-alunos, pais e professores.

 

A escola estava muito bem-cuidada, com paredes e canteiros de flores artificiais pintados. Banners mostrando que a instituição de ensino participa do Projeto Somar podem ser vistos desde a entrada. Um laboratório, onde uma aula de química era ministrada no momento da visita, uma pequena biblioteca e projetores integram a estrutura.

 

Todos os entrevistados consideraram que houve avanços na escola, especialmente no que se refere à segurança. “O ambiente da escola em si era diferente no sentido da convivência, mais pesado. A gente não se sentia seguro aqui, porque qualquer coisa virava briga, as pessoas ameaçavam umas às outras”, conta Anderson Almeida, que estudou na Francisco Menezes Filho de 2021 a 2023.

 

Agora, afirmam os entrevistados, a imagem está totalmente mudada. Entre as mudanças listadas está a obrigatoriedade do uso do uniforme, a liberação da entrada apenas para quem tem permissão, punição de alunos que desobedecem as regras e a implementação de um sistema de diálogo com os pais por meio do WhatsApp. Houve também um processo de valorização da educação, incentivo para fazer inscrição no Enem e outros vestibulares, assim como aulas preparatórias no turno da noite.

 

Hoje no segundo ano do ensino médio, Lara Cardoso Ramos conta que sempre estudou em escolas públicas e que a Francisco Menezes Filho se destaca entre elas. Ela também afirma que a reputação da unidade de ensino melhorou muito nos últimos dois anos. “A segurança está bem melhor, sempre tem policiais nas redondezas. É um ambiente muito tranquilo e acaba que a vizinhança fica mais tranquila também”, avalia.

 

As mães Renata Fantini e Edilaine Caroline dos Santos elogiaram a qualidade do ensino, o ambiente e o incentivo da escola à participação dos pais. “Meu filho está bem mais entusiasmado com as matérias porque aqui tem uma metodologia diferente. A escola tem dado um acompanhamento tão especial que ele está conseguindo obter boas notas, está gostando da escola. Então, estou muito feliz”, afirma Edilaine.

 

A diretora da unidade, Maria de Jesus Fernandes Xavier, enfatizou o esforço da escola em criar um ambiente acolhedor para os alunos: “Avalio a Francisco Menezes Filho como uma escola com um ambiente acolhedor para os estudantes. Eles são muito engajados nas ações propostas tanto pelos professores quanto pela coordenação pedagógica e temos um clima agradável de trabalho”.

 

No cargo desde janeiro de 2023, Maria já tinha experiência como diretora de uma escola da rede estadual de educação. Segundo ela, trabalhar na gestão compartilhada é melhor, uma vez que tem mais apoio para tomar as decisões.

 

Entenda o Somar

 

Os critérios para escolha das escolas que fazem parte do projeto-piloto foram oferecer exclusivamente o ensino médio e ter baixo desempenho no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).

 

A escolha da organização que compartilha a gestão das escolas, a Ceteb, foi feita por meio de edital.

 

As escolas seguem públicas e gratuitas, com matrículas sob a gestão da Secretaria de Educação, diretrizes pedagógicas com base no Currículo Referência do Ensino Médio e cumprimento do calendário escolar da Rede Estadual de Ensino.

 

Diretores, vice-diretores e secretários das instituições permaneceram em cargos de carreira de educação pagos pela SEE-MG.

 

Todos os professores concursados que prestavam serviços nesses locais foram remanejados para outras escolas.

 

Os professores que ensinam atualmente no Projeto Somar seguem o regime CLT e foram contratados pela Ceteb. A base salarial segue a convenção coletiva de trabalho e difere da dos professores concursados das demais escolas da rede pública.

 

Os recursos destinados às escolas que participam do Projeto Somar são provenientes do Tesouro Estadual.

 

Foram destinados R$ 4.927,35 por aluno e um total de R$50.791.110,60 a serem investidos durante todo o programa. Segundo a SEE, o valor é o mesmo que seria investido caso continuasse na gestão tradicional.

 

O gestor

A Associação Centro de Educação Tecnológica (Ceteb), que assumiu o projeto-piloto do Somar, é uma organização da sociedade civil (OSC) sem fins lucrativos, com sede na cidade de Feira de Santana, na Bahia. Fundada em 1998, é mantenedora do Colégio Ceteb, de uma escola técnica e de um centro de qualificação profissional. A organização atuou durante 15 anos na gestão de escolas da rede pública do estado da Bahia, por meio de contrato de gestão com base na Lei das Organizações Sociais. Recebeu o prêmio Gestão Social concedido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) e Certificação de Excelência pela Câmara de Vereadores de Feira de Santana.