Os perfis começaram com ofensas de cunho sexual e chegaram a ponto de criar nudes falsos com inteligência artificial para atacar as estudantes -  (crédito: Marcos Vieira/EM/D.A Press)

Os perfis começaram com ofensas de cunho sexual e chegaram a ponto de criar nudes falsos com inteligência artificial para atacar as estudantes

crédito: Marcos Vieira/EM/D.A Press

Duas estudantes universitárias, uma de Belo Horizonte e outra de Santos (SP), vivem dias de ansiedade e angústia desde que passaram a sofrer ataques e ameaças de estupro pelas redes sociais. Além de postagens insinuando, com detalhes, como seriam as agressões sexuais, as duas jovens tiveram fake nudes (fotos nuas falsas) compartilhadas na internet e acusações mentirosas de zoofilia. Os ataques partiram de contas que supostamente fazem parte da autointitulada “Bolha da resenha”. Parte deste grupo é formado por perfis que utilizam simbologias neonazista e supremacista branca, como suásticas e o sol negro, e postam ofensas direcionadas a grupos minoritários.

 

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“No começo estava sofrendo xingamentos de cunho sexual, mas foram piorando. Começaram as montagens, as ameaças, aí eu comecei a ficar mais preocupada”, relata a mineira Mariana, de 25 anos. Os ataques direcionados a ela começaram há mais de um ano, mas se tornaram cada vez mais intensos, e violentos, há cerca de dois meses.

 

Em seu perfil na rede social X, onde possui a alcunha de Mari Caronas, a estudante faz postagens sobre sua a vida pessoal e, também, sobre uma das suas paixões, o futebol. Por meio desse interesse em comum, a atleticana fez amizade com outros perfis da rede social que tratam do esporte e passou a ter um público mais masculino. Devido a essa aproximação com amigos homens, perfis dessa “bolha da resenha” passaram a chamá-la de prostituta, piranha e outras ofensas machistas.

 

 

“Por eu estar com algum cara em algum estádio, alguma coisa, começavam a fazer os ataques”, relata Mariana. As ofensas, por si só absurdas, escalonaram em pouco tempo. Vários perfis publicaram postagens como “eu estudaria a Mari Caronas” - termo que usam para dizer “estuprar” sem sofrer punições da moderação da rede social. “Teve um perfil que falou que me estupraria e um outro respondeu que faria o mesmo quando eu chegasse no IML”, conta.

 

Os perfis também passaram a divulgar montagens falsas, feitas a partir de inteligência artificial, como sendo fotos da estudante nua. Até mesmo vídeos criminosos de outras pessoas foram compartilhados como se fossem dela. “Tinha vídeo de zoofilia que falaram que era eu. Pegaram vídeo de uma pessoa, que eu não cheguei a assistir, que era de uma mulher sendo estuprada e também falaram que era eu”.

 

 

Vítimas

 

Outra vítima dos ataques deste grupo foi Jeniffer, de 21 anos, também estudante e moradora de Santos, no litoral paulista. A violência contra ela começou antes, em 2022. Em determinada ocasião, no meio de vários xingamentos e ofensas, um perfil fez uma postagem detalhando como estupraria a estudante. Ela foi até uma delegacia com o texto para fazer uma denúncia, mas foi desencorajada. “A delegada disse que seria muito fácil eles se defenderem dizendo que os prints foram forjados ou de que eles foram hackeados”, relata.

 

A perseguição cessou em 2023, mas voltou, ainda mais voraz, há cerca de três meses. No começo de maio, Jeniffer postou um texto emotivo falando da morte da sua cachorra, que havia adquirido um câncer sublingual e que se alastrou rapidamente por todo o corpo. Aproveitando este momento de fragilidade, perfis voltaram a atacar a estudante - e com métodos ainda mais criminosos. “Pegaram um vídeo de zoofilia na internet, onde o cachorro era muito semelhante à minha cachorra, e falaram que era eu ali. Disseram que eu passei IST pra cachorra e por isso que ela morreu”, conta.

 

As violências não pararam por aí. Dias depois, um perfil da “Bolha da Resenha” usou uma foto da Jeniffer junto de um amigo, ambos sentados num banco de praça, e criou o que seria um “desfecho” para aquela noite. “Ele fez um texto gigante me difamando e narrando como seria uma cena de sexo entre eu e o menino, falando da minha classe social, etc. Eu descobri que se enquadra na lei de pornografia de vingança, porque ele narrou uma cena de sexo sem consentimento”, observa.

 

Assim como aconteceu com Mariana, Jeniffer também teve fake nudes com seu rosto criados por inteligência artificial. Além de fotos, também criaram um vídeo onde a estudante estaria chamando homens para estuprá-la. “Você ver sua mãe chorando por uma situação de merda dessa é um inferno”, desabafa.

 

 

Impunidade

 

Para os perfis da “bolha”, “resenhar” seria fazer postagens direcionadas a uma pessoa específica promovendo ataques, xingamentos e, até mesmo, crimes, como calúnia e injúria. Em uma chamada em grupo feita pelo X, intitulada “Resenha do Século”, um dos participantes foi gravado dizendo que se tivessem pessoas infiltradas no grupo “as resenhas que a gente está fazendo iam para frente nunca”. Em seguida, outra pessoa respondeu “a gente já falou umas paradas lá que se esses caras não denunciaram, eles também são criminosos”.

 

O ódio contra as mulheres é presente em postagens onde estes perfis tratam como “prostitutas” qualquer mulher que não seja submissa a um homem. Outro exemplo de misoginia são postagens dessa bolha que enaltecem e tratam o ex-jogador de futebol Daniel Alves como “herói nacional” - ele foi condenado por ter cometido agressão sexual contra uma mulher na Espanha.

 

Assim que as estudantes anunciaram que iriam processar os perfis que as atacaram, houve um movimento destas contas de apagar postagens antigas - algumas chegaram a excluir os perfis, numa tentativa de dificultar o acesso às provas de possíveis crimes. Com o fim destas contas, surgiram posts lamentando, como “o mundo está ficando chato” ou “a resenha morreu”.

 

Mesmo com as contas apagadas, as redes sociais são obrigadas pelo Marco Civil da Internet a manter armazenadas todas as postagens feitas por seis meses, assim como informações dos usuários. “A internet dá para essas pessoas uma falsa sensação de anonimato”, explica Rhuan Nascimento Batista, advogado da Mariana.

 

 

Processos

 

As duas estudantes decidiram levar os crimes à Justiça - cada uma num processo próprio. Segundo o advogado da Mariana, até o momento foram identificados 251 perfis que teriam participado dos ataques. O processo é de crime contra a honra, mas pode incluir, no futuro, ameaça e stalking. “Processos para responsabilizar criminalmente pessoas pela internet são muito comuns", observa Rhuan Nascimento.

 

A defesa de Jeniffer catalogou cerca de 30 perfis que teriam atacado a estudante. O advogado João de Senzi explica que o modus operandi dos ataques é: um perfil maior, e mais influente, publica algo negativo sobre uma pessoa. Em seguida, outras contas da “bolha”, com menos seguidores, entram na discussão publicando ofensas e outras agressões. “Esse pessoal mais influente fala e logo em seguida vem um pessoal atacando. E aí vai abaixando o nível, de racismo pra baixo”, explica o advogado.