O alemão Walter Bartoschik, com a filha Isabella e o neto Felipe:

O alemão Walter Bartoschik, com a filha Isabella e o neto Felipe: "O brasileiro é aberto Às novidades"

crédito: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press

O esperto Felipe, de 1 ano e 10 meses, corre pela casa chamando pelo avô. Não demora muito, passa por detrás do sofá da sala e vai se aninhar no colo de Walter Bartoschik, de 81. Os olhos azuis de ambos se iluminam, mais ainda quando a eles se junta Isabella, mãe do garoto. A cena une três gerações e dois lados da história familiar, na residência em Nova Lima, na Região Metropolitana de BH: Walter nasceu na Alemanha, casou-se com uma mineira, tem duas filhas e quatro netos belo-horizontinos.


Conversar com Walter, alemão de ascendência tcheca, é como estar diante de um precioso pedaço da história. Um livro relatado com suavidade, mas forte em cada linha, contendo lições de vida. “Nasci em Dorsten, em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945)”, conta o engenheiro mecânico que chegou a BH em 1975, para trabalhar na Siderúrgica Mannesmann, instalada 23 anos antes. As lembranças do pós-guerra vêm à tona quando ele fala do seu país em escombros, das pessoas sobrevivendo a duras penas, picando tijolos em busca de alguns trocados.

 

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Mesmo com o cenário desolador, Walter alimentava, desde criança, o desejo de correr mundo, algo presente no sangue da família – “Meu pai viajava muito”, recorda-se. Na adolescência, sentiu vontade de, um dia, morar no exterior e essas lembranças, hoje, iluminam seus quase 50 anos no Brasil. “Nunca compare seu país de origem a outro. São culturas diferentes, então nunca questione, procure aceitar o que vier”, ensina.


 

A frase termina com um novo movimento na sala. O netinho Felipe deixa os braços do avô e da mãe e recomeça seu ziguezague pela casa. E Walter conta mais sobre seus primeiros tempos no Brasil, onde chegou sem falar português. “Na verdade, antes de vir para o Brasil, tive aulas com uma professora portuguesa. O que me ajudou muito no aprendizado da nova língua foi ter estudado latim, inglês e francês no colégio.” Com um sorriso, explica que nunca passou apertos, mesmo sendo chefe de suprimentos da empresa.


Quatro anos após chegar a BH, o alemão se casou com Leocádia Silveira, de Patos de Minas, cidade da Região do Alto Paranaíba. Da união, nasceram Michelle, mãe de Victor, de 5, e Lucas, de 2, e Isabella, que tem, além de Felipe, Henrique, de 8.


Acolhida e aprendizado

 

 

A boa receptividade encontrada no estado ajudou a encarar os desafios, e de posse de experiência, Walter aprendeu as diferenças entre alemães e brasileiros. “Fui muito bem recebido quando cheguei, pois as pessoas ajudam muito os estrangeiros. Mineiro não usa muito a palavra ‘não’. É inteligente, criativo e tolerante. Em um ano, aprendi mais aqui do que em cinco na Alemanha”, diz Walter, que trabalha como consultor de empresas.


Outra observação: “O brasileiro é aberto às novidades; o alemão, resistente”. Atenta a cada palavra, Isabella ressalta que o pai é muito caloroso. “Adaptou-se muito bem ao Brasil, aceitando um novo tipo de vida.”


Após a ótima prosa com Walter Bartoschik, nada melhor do que aprender sobre o início da imigração alemã no Brasil, ocorrida a partir de maio de 1824, quando os pioneiros chegaram a Nova Friburgo (RJ). Dois meses depois, em julho, outros recém-chegados rumaram para a Colônia de São Leopoldo, atual São Leopoldo (RS), considerado o berço da colonização germânica no Brasil. Vale destacar que a primeira e a segunda levas oficiais foram promovidas pelo imperador dom Pedro I (1798-1834), dois anos após a Independência do Brasil.

 

MUCURI RECEBEU OS ALEMÃES PIONEIROS

 


No Vale do Mucuri, em Minas Gerais, há dois marcos da vinda dos europeus: entre 1856 e 1858, e, no século 20, de 1922 a 1924, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O destino principal foi a atual cidade de Teófilo Otoni, antiga Filadélfia, fundada por Teófilo Benedito Ottoni (1807-1869).


Inicialmente, todos eram considerados alemães, mas a história não era bem assim. “Com o passar do tempo, alguns descendentes foram assumindo a nacionalidade dos antepassados”, conforme registra a pesquisadora Magali Barroso, autora do artigo “A descendência alemã em Teófilo Otoni”, publicado no livro “Minas Gerais 300 anos”, do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (IHGMG).


O município, hoje com 140 mil habitantes, foi criado fora dos padrões da formação da maioria das cidades mineiras. A fundação como Filadélfia se deu com as atividades da Companhia de Comércio e Navegação do Rio Mucuri, em 1853, por Teófilo Benedito Otoni, ensina Magali Barroso. “À época, havia os habitantes locais, indígenas, migrantes do Norte do estado e do Vale do Jequitinhonha, escravizados trazidos da África, além dos imigrantes de língua alemã, vindos da Confederação dos Estados Germânicos, formada por Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda, Prússia, Eslovênia e parte da Itália e França (Alsácia-Lorena, de população germânica pertencente ora à Alemanha, ora à França, devido às guerras intermitentes)”, diz o artigo.


Os primeiros imigrantes partiram do território da Confederação dos Estados Germânicos “devastado pelas guerras onde a fome rodava os lares por falta de dinheiro ou escassez de alimentos, havendo carência de emprego e insegurança”. No seu artigo, Magali Barroso explica mais sobre a situação: “Foi nesse cenário de insatisfação, medo e desesperança que os jornais divulgaram informações da empresa alemã Schlobach & Morgenstern, de que o Brasil forneceria terras a quem se interessasse por povoar uma nova região no Nordeste mineiro, chamada Filadélfia, no Vale do Mucuri”.


Muitos chefes de família se entusiasmaram, vendo a possibilidade de encontrar um lugar no qual as condições de vida pareciam mais favoráveis, poderiam ser proprietários de terras e afastariam as incertezas, afirma o texto. “Assim, iniciaram a emigração, mas as glebas distribuídas pela Companhia do Mucuri deveriam ser pagas pelos imigrantes num prazo de até 15 anos.”


GERMANIZAÇÃO NO INTERIOR DE MINAS

 


“Teófilo Benedito Otoni tinha o sonho de ‘germanização’ do Vale do Mucuri, a exemplo do que vira, em 1846, em Petrópolis (RJ), cidade colonizada pelos alemães”, diz a pesquisadora, professora e pedagoga Dalva Neumann Keim, autora dos livros “Genealogia” e “Sob o sol do Mucuri: A descendência alemã em Teófilo Otoni”, com Magali Barroso, e “Pastor Johann Leonhard Hollerbach e Teophilo Benedicto Ottoni: Líderes que transformaram o Nordeste de Minas Gerais e sua influência na unidade do Brasil”.


Segundo Dalva, a primeira igreja luterana em Teófilo Otoni, de madeira, foi destruída por cupins, e a segunda, construída na Praça Germânica (em 1868), destruída na época da Segunda Guerra Mundial (em 1942), foi erguida com a ajuda da comunidade, sob coordenação do pastor Johann Leonhard Hollerbach. “Alemão, era missionário evangélico de confissão luterana, que se integrou aos luteranos, que já estavam no Brasil desde 1824, com a aquiescência do imperador do Brasil”.


DA ALEMANHA PARA A FILADÉLFIA MINEIRA


Descendente de alemães e casada com Roberto Keim, também de família alemã, a professora Dalva explica que Teófilo Otoni teve um vice-consulado da Saxônia (1856), para atender as questões de Minas. Na cidade, onde há um espaço público em referência à imigração, a Praça Germânica, comemora-se, em 23 de julho, o Dia da Colonização Alemã. “Trata-se de uma homenagem aos primeiros que chegaram a bordo dos navios Alma e Sophie, partindo da cidade de Hamburgo, e aportaram no Rio de Janeiro. De lá, os imigrantes seguiram para Filadélfia, partindo de São José do Porto Alegre, na Bahia”, diz a pesquisadora teófilo-otonense.

 


Os primeiros tempos não foram nada fáceis para os imigrantes, “que se sentiram enganados pelas propagandas que os haviam motivado à travessia do Oceano Atlântico, pois havia densa mata, precárias instalações, enfim, tudo por fazer”. Pior ainda foi durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil declarou guerra à Alemanha (1942). “A perseguição aos imigrantes alemães, italianos e japoneses foi um fenômeno ocorrido em todo o Brasil. Embora fossem brasileiros, eles recebiam ameaças, e muitos descendentes de alemães, de Teófilo Otoni, foram presos e perseguidos, com bens confiscados, incluindo-se documentos, portas, janelas e móveis destruídos e queimados pelo fogo.”


Porém, a história de muitas famílias que hoje se reúnem para celebrar o Dia dos Pais na presença ou sob a lembrança de patriarcas que vieram de outras terras mostra que os conflitos e as dificuldades foram superados. Hoje, enriquecem a trajetória daqueles que são homenageados por seus filhos, em uma linguagem que não distingue fronteiras nem nacionalidade.

 

Marcas da imigração

A saga dos imigrantes no Brasil já foi amplamente detalhada em livros, filmes, peças de teatro, exposições e, sempre com a voz da emoção nos depoimentos de homens e mulheres que deixaram a terra natal em direção ao desconhecido. Na capital mineira, são muitas as marcas das mãos estrangeiras na cultura, na arquitetura e nos costumes. Basta pôr o pé nas ruas para beber dessa fonte inesgotável de memórias.