Na tricentenária Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, mulheres reunidas no coletivo Historiarte preservam a cultura do bordado e costumes que atravessam gerações -  (crédito: Jair Amaral/EM/D.A Press)

Na tricentenária Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, mulheres reunidas no coletivo Historiarte preservam a cultura do bordado e costumes que atravessam gerações

crédito: Jair Amaral/EM/D.A Press

A agulha mergulha no tecido, puxa a linha e segue o caminho traçado pela bordadeira. Em silêncio de quase oração, dona Mauniz Profeta Urias Pinto, de 83 anos, mostra sobre o algodão as frases de uma prece, da qual, quebrando a quietude da tarde, diz um trecho em voz alta: “Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador...”. Tão logo conclui, a simpática moradora de Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, conta que o trabalho revestirá uma almofada feita à mão na Associação das Bordadeiras e Artesãos de Caeté – Historiarte, um coletivo de mulheres de várias idades.

 

Em Minas, a tradição dos bordados artesanais que ganha cores e traços pelas mãos de bordadeiras como dona Mauniz, atravessa séculos e, tanto na capital quanto no interior, ganha atenção como arte, oportunidade de renda e até terapia para esses tempos tão corridos. Em cidades como Barra Longa, na Zona da Mata, são tantas as pessoas dedicadas ao ofício que nem se sabe o número exato, diz Maria Aparecida Lanna, mais conhecida por Pice. “Venho de uma família de bordadeiras. Aqui, em outros tempos, teve o Salão do Bordado, e se faziam grandes enxovais”, afirma.

 

O amor pelo trabalho com linhas, agulhas, criatividade e devoção se repete no Serro, no Vale do Jequitinhonha, mais exatamente na comunidade Barra da Cega, em Milho Verde. Com esmero, artesãos costumam se espelhar na Igreja Nossa Senhora do Rosário, joia do período colonial, do tempo em que o Serro se chamava Vila do Príncipe. “Bordamos a igreja, cenas na roça, coqueiros, as crianças e a vida na natureza”, revela a também costureira Ângela Marques, integrante do coletivo Bordados da Barra, formada por 13 mulheres e um homem.

 


Dom natural aperfeiçoado


Tão logo termina de bordar a “Oração do anjo da guarda”, dona Mauniz, de Caeté, revela ao que atribui a origem do seu talento: “Nasci com o dom. Bordado é arte, faço com prazer”. Simples assim, uma habilidade lapidada com aulas no Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), no Bairro José Brandão, no mesmo município. Com o sorriso seguro de quem entende do riscado, ela, mestra no assunto, sabe fazer também a bainha aberta, tarefa, como se pode ver de perto, conhecendo o processo, de extrema paciência, efeito visual magnífico e história centenária.

 

Ao fim da conversa, mineiramente acompanhada de café, bolo e rosquinhas, dona Mauniz se junta às demais integrantes do Historiarte, agora de casa nova, na rodoviária, em espaço cedido pela Prefeitura de Caeté. Chega carregando um bastidor – suporte de madeira usado por quem borda, que serve como quadro decorativo – no qual se lê a palavra “fé” e uma almofada, já pronta, com a “Oração do anjo da guarda”. Ao lado, a filha dela, Heloísa Helena Urias Pinto Cândido, apresenta dois bastidores devocionais retratando, em bordado livre, Nossa Senhora da Piedade, padroeira de Minas, e Nossa Senhora do Rosário.

 

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As mulheres fazem peças para batizados, como camisola e toalha de cambraia de linho. “As tradições nas antigas cidades mineiras, como Caeté, são fortes. Muitas famílias guardam as roupas de batizado dos filhos, as quais serão usadas por crianças de sucessivas gerações. Nós nos inspiramos exatamente nesse costume”, afirma Heloísa Helena.

 

Padroeiros louvados em peças diversificadas

Também tradicionais em procissões, celebrações religiosas, festas populares e mesmo em residências, os estandartes merecem destaque especial. Foram, inclusive, motivo de uma exposição, no ano passado, com os bordados da turma do Historiarte, em Caeté, a partir dos desenhos da bordadeira Heloísa Helena.

 

No grupo reunido na loja, Maria de Fátima Costa segura um dos estandartes, artisticamente elaborado por ela, do risco ao bordado, para homenagear, triplamente, Nossa Senhora da Piedade, padroeira de Minas, com a imagem barroca e o calvário, no alto da Serra da Piedade, Nossa Senhora do Bom Sucesso, padroeira de Caeté, e São Caetano, primeiro padroeiro da cidade.

 

Outras peças retratam a devoção no município, ao longo dos seus mais de 300 anos, desde os tempos da Vila Nova da Rainha, uma das Sete Vilas do Ouro de Minas. Agora nas mãos de Karina Aparecida Gomes, salta aos olhos um bastidor com a imagem de Nossa Senhora do Bom Sucesso, enquanto Francisca Paulina Figueiredo segura um com a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, padroeira da localidade de Morro Vermelho. Também sorridente e feliz com a atividade prazerosa e terapêutica, Zélia Maria Urias Sérgio traz os bastidores com os bordados de Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora de Lourdes.

 

Os estandartes surgiram de pesquisas das bordadeiras baseadas na tradição oral nas comunidades de Caeté, informa Heloísa Helena: “Fiz os traçados e as colegas do Historiarte deram cor aos tecidos”. Já os bastidores vieram de uma parceria com o designer Bráulio Perdigão, que resultou na exposição “Bainhas de Maria”.


Costume preservado ao longo de gerações


Em Barra Longa, na Zona da Mata mineira, o bordado está presente em praticamente todas as casas, “passando de geração a geração”, como se orgulha de dizer Maria Aparecida Lanna, de 60 anos, conhecida por Pice. Entre as peças bordadas na cidade, há muitas inspiradas pela devoção aos santos e templos católicos. “Bordei um quadro de Nossa Senhora Auxiliadora para a exposição ‘Pontos de fé’, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte”, conta Pice.

 

A mostra reuniu, em julho, mais de 40 obras produzidas pelo coletivo Mãos que Bordam. Também servem de fonte de inspiração para os artesãos locais a Capela Nossa Senhora do Rosário e a Matriz São José.

 

 

Olhando o capricho e a beleza das peças, vale a pena perguntar: De onde vem essa cultura tecida com linhas multicores em vários estilos? A resposta está na ponta da língua: “Os primeiros portugueses que chegaram à nossa cidade vieram da Ilha da Madeira, localidade historicamente famosa pelos bordados”.

 

Formada em letras, Pice trabalhou durante 14 anos como servidora pública e hoje se dedica exclusivamente à profissão de bordadeira. “Larguei tudo para seguir minha real vocação.” A exemplo das demais colegas de ofício, aprimorou o talento para encantar os clientes com as peças em richelieu, crivo, matiz, frivolité e outros estilos que reúnem sofisticação no ponto perfeito e artesanato genuíno.

 

A tradição se fortalece a cada dia, conta Pice, que é parceira do grupo de bordadeiros Casa das Artes/Abba, de Barra Longa. “Temos grande tradição. Aqui, em outras épocas, havia o Salão do Bordado, com produção de grandes enxovais para casamentos. Com o tempo, as pessoas passaram a fazer encomendas pela internet, mas nada interfere na qualidade do nosso produto, totalmente manual.”


Riqueza colonial recriada com afeto

Considerado um dos grandes atrativos turísticos de Minas Gerais, Milho Verde, distrito do município do Serro, no Vale Jequitinhonha, também prima pela criação dos bordados. Um dos destaques da localidade, a Igreja do Rosário, tesouro colonial mineiro, ganha novas cores, traços e brilho pelas mãos de 13 bordadeiras e um bordadeiro do coletivo Bordados da Barra.

 

“Fazemos almofadas, panos de prato e muitas outras peças”, conta, com satisfação, Ângela Marques, de 34 anos, costureira e bordadeira. “Aqui, onde moramos, é muito tranquilo. Bordamos também cenas da vida na roça, a natureza, a roupa pendurada no varal, os coqueiros, as crianças, os rios, os peixinhos...”

 

Ângela aprendeu os segredos do ofício com a mãe, dona Maria José, que, num período de depressão, foi convidada a participar de uma oficina. Trabalhava na agricultura, e, de repente, estava em ambiente totalmente diferente, aprendendo um novo ofício e interagindo com outras pessoas. “Aprendeu com uma professora chamada dona Ana e se curou da depressão”, revela a bordadeira.

 

Com bom humor, Ângela, que é casada e tem três filhos “já rapazes”, é testemunha de que o trabalho artesanal poder terapêutico. “Não consigo me enxergar sem o bordado. Só tenho a agradecer por ter aprendido”, resume, lembrando que, por enquanto, nenhum dos meninos demonstrou vocação para seguir as linhas tratadas pela mãe e pela avó. “Um até tentou, mas não foi adiante”, brinca.