Pedro Lúcio da Silva, o Pedro artes, de Sabará, recria igrejas e capelas da cidade com talento e milhares de palitos de fósforo -  (crédito: Gustavo Werneck/EM/D.A Press)

Pedro Lúcio da Silva, o Pedro artes, de Sabará, recria igrejas e capelas da cidade com talento e milhares de palitos de fósforo

crédito: Gustavo Werneck/EM/D.A Press

Rosário nas mãos, escapulário no pescoço, fé no coração e muita habilidade para manter vivas as tradições. Na tricentenária Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, um casal transforma dádivas da natureza, a exemplo de sementes, em objetos de devoção. Na mesma cidade, com talento e paciência, um artesão une palitos de fósforo sobre bases de madeira para homenagear o patrimônio cultural e religioso, reproduzindo igrejas e capelas.

 

A cada passo, vê-se que a criatividade humana não tem limites. É o que demonstra, na capital, um coletivo de mulheres que encanta os olhos com seus produtos feitos à mão, em total respeito à sustentabilidade e às diferentes crenças. Na loja do Bairro Salgado Filho, na Região Oeste, elas mostram terços de crochê em várias cores, mandalas, chaveiros do Divino Espírito Santo, pêndulos de porta, colar do “ho’oponopono” – uma prática ancestral havaiana –, quadros de divindades de matriz africana e muitos outros.

 

Nesta terceira reportagem da série “Ofícios de fé”, as descobertas começam em diferentes endereços: primeiro numa casa perto do Chafariz do Kaquende, no Centro Histórico de Sabará, e depois na Feira Livre do Centro, que ocorre, todos os sábados, das 7h às 13h, na Praça Melo Viana.

 

Na primeira parada, enquanto o gatinho de estimação chamado Gustavo passeia pela sala, Marco Antônio Bonfim de Oliveira e Maria Dorotéia Carvalho Silva, conhecida por Dora, casados há 23 anos, estão mergulhados em seu ofício: ele fazendo terços e rosários; ela, escapulários.

 

Natural de São Paulo (SP), Marco Antônio trabalhava como gerente de projetos na área de informática, quando trocou completamente de “universo digital”: os dedos deixaram o teclado do computador e passaram a trabalhar as contas chamadas lágrimas de Nossa Senhora, o coquinho ouricuri ou licuri e as sementes de açaí, todos usados na confecção de terços e rosários. “Hoje, está difícil encontrar as contas, originárias de uma planta que nasce em brejo”, lamenta Marco Antônio, creditando o sumiço à destruição ambiental.

Na sala da casa, há um mostruário dos terços, feitos também em pérolas, e rosários. Nesse momento, ele explica a diferença: “O terço tem 58 contas, enquanto o rosário, 200. Antes, eram 150, mas em 2002 o papa João Paulo II instituiu os mistérios luminosos”, explica.

 

Leigo carmelita, a exemplo de Dora, o paulista apresenta outros objetos feitos em casa, entre eles medalhas e canecas personalizadas. Uma delas traz a estampa dos “santos das causas impossíveis”: São Judas Tadeu, Santa Rita, Santa Filomena e São Gregório. “É das mais procuradas”, observa.


Em espaço aberto, mostra da criatividade mineira

No sábado ensolarado de agosto, Marco Antônio e Dora expõem na Feira Livre, na Praça Melo Viana, no Centro de Sabará. No espaço, à luz natural, rosários, terços e escapulários ganham mais brilho. Bem-humorado, Marco Antônio tem a resposta para quem pergunta o que ele faz: “Fazemos, aqui, tudo ao gosto de quem chega. Se tem um santo de devoção, podemos entregar a medalha ou a caneca na hora”.

 

Ao lado do marido, Dora mostra, com cuidado, os escapulários tanto em lã, em dois tamanhos, quanto em aço inox. “Cada um traz a imagem de Nossa Senhora do Carmo e de Jesus. É para proteção, no peito e nas costas, e deve ser abençoado antes do uso”, conta a artesã, que segue o modo tradicional de fazer a peça. “Fiz pesquisa histórica e procurei saber sobre a técnica de fazer os escapulários, existentes desde a Idade Média.”

 

Tradição originária da Idade Média

O momento é oportuno para se conhecer mais sobre o escapulário, nas palavras do padre Alexandre Fernandes, titular da Paróquia Bom Jesus do Vale, em Nova Lima (RMBH). “É um tesouro espiritual que muitos carregam no peito: o escapulário de Nossa Senhora do Carmo. Não é apenas um pedaço de pano, mas um abraço maternal da Virgem Maria, um sinal de amor e proteção.”

 

Padre Alexandre explica mais: “Imagine-se nos tempos medievais, quando os monges carmelitas buscavam a Deus nas montanhas do Monte Carmelo. A Virgem Maria, então, apareceu a São Simão Stock, entregando-lhe um escapulário. E disse ao santo: 'Quem morrer com este escapulário, não padecerá o fogo do inferno.'”

 

E como usar o escapulário? “Da primeira vez, o escapulário deve ser de pano e precisa ser abençoado e imposto por um sacerdote. Não é um amuleto, mas um sacramental que se deve usar continuamente, como um lembrete constante de que a Virgem Maria está ao seu lado”, ensina o religioso. Mas, não precisa ser visível; pode ficar sob a roupa. “E se você quiser, pode depois substituir o escapulário de pano por um de metal, que também seja abençoado pelo sacerdote, como uma medalha em que, na frente, esteja cunhada a imagem de Nossa Senhora do Carmo, e, atrás, a do Sagrado Coração de Jesus”, completa.


COM QUANTOS PALITOS SE FAZ UMA HISTÓRIA?

O movimento na Praça Melo Viana vai crescendo e Marco Antônio sugere que os repórteres conheçam um artesão muito especial. Trata-se de Pedro Lúcio da Silva, mais conhecido por Pedro Artes, de 63 anos, que recria as igrejas e capelas centenárias de Sabará com palitos de fósforo. O impacto visual é enorme diante das peças, principalmente quando Pedro mostra a Igreja Nossa Senhora do Ó, uma das joias do Barroco mineiro.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia

 

“Gastei um mês para fazer a igreja... Foram 3,5 mil palitos”, diz Pedro Artes, com alegria, apresentando ainda, elaborada com a mesma técnica e material, a Matriz Nossa Senhora da Conceição, considerada pelos especialistas um dos primeiros templos católicos mineiros. Na maquete foram empregados 6,5 mil palitos, enquanto na de Santa Rita, 8,5 mil.

 

Sabarense aposentado, o “construtor” de igrejas começou seu ofício num tempo de vacas magras, quando, para sobreviver, “tirava cascalho e procurava ouro” nos rios da região. Nos poucos momentos de descanso, criava as maquetes. “Aprendi sozinho”, revela o homem que, para garantir um melhor efeito das peças estabilizadas sobre madeira, conclui o serviço com verniz.

 

Nos sábados à tarde, depois que a feira termina, Pedro fica a postos na Praça Santa Rita, afinal, segue o verso da música que proclama: “Todo artista tem de ir aonde o povo está”. Aos domingos, passa o dia inteiro à espera dos moradores e visitantes.

 

Ao fim da conversa, vem a pergunta inevitável: Os fósforos são usados, né? Como se já esperasse, ele responde: “As donas de casa sabem que faço esse tipo de artesanato, então guardam os palitos para mim. Todos, claro, estão riscados.”


TODAS AS CRENÇAS PODEM CABER NO MESMO ESPAÇO


Já em Belo Horizonte, um grupo de mulheres cria objetos que contemplam a espiritualidade de forma ampla. “E tem para todo mundo, independentemente da crença”, informa Regina Ribeiro Bernardes, ao lado das irmãs Anete e Raquel, e da amiga Rosiley Dornelas.

 

Aberta há 10 meses, a loja colaborativa Somar Artesania, no Bairro Salgado Filho, na Região Oeste de BH, apresenta um leque de produtos artesanais. Já imaginou um escapulário para a porta? Pois ele existe, e quem apresenta é Rosiley, trazendo ainda um pendente usado na maçaneta. “Para bênção da casa”, explica.

 

Caminhando pelo espaço, é possível se surpreender com a mandala do divino, terços de crochê em várias cores, o trio e o dueto abençoados para pendurar (com duas imagens ou três) e a face de Nossa Senhora impressa em azulejo, conforme mostra Raquel.

 

 

“Respeitamos todas as crenças, e, principalmente, a fé das pessoas. Aqui, não temos apenas artigos católicos”

Anete Ribeiro Bernardes
Artesã


Mesmo que as mulheres estejam imersas diariamente nesse ambiente ligado à fé, o tema religião nunca está no centro das conversas. “Respeitamos todas as crenças, e, principalmente, a fé das pessoas. Aqui, não temos apenas artigos católicos”, conta Anete, segurando um cordão de repetição do “ho’oponopono”, prática ancestral havaiana.

 

“Com o cordão, repetimos palavras que trazem boas energias: ‘Sinto muito”, ‘Por favor, me perdoe’, ‘Te amo’ e ‘Sou grato’”, ensina Anete. Há também quadros de divindades de matriz africana, símbolos orientais e do esoterismo.

 

Os olhos curiosos encontram ainda peças em “amigurumi” – junção das palavras japonesas “ami”, que significa tricô ou malha, e “nuigurumi”, bicho de pelúcia –, árvores da vida, quadro com o símbolo Yin e Yang e outros. “Procuramos reunir fé e sustentabilidade, aproveitando antigos CDs para confecção dos objetos”, ensina Regina.


Leia amanhã em ofícios de fé: “Estandarteiros” carregam a bandeira da devoção