A descaracterização da Serra do Curral, cartão-postal de Belo Horizonte, pela atividade mineradora foi alvo de ofensiva liderada pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) ontem (23/8). Coordenada pelo Núcleo de Combate aos Crimes Ambientais (Nucrim), em parceria com órgãos como a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Semad) e o Grupo Especial de Policiamento Ambiental (Gepam) da Polícia Militar (PM), a fiscalização de três mineradoras na área tombada pelo patrimônio municipal revelou a continuidade da extração de minério, apesar de ordens judiciais.
O ponto de partida da operação foi a Mina Corumi, da Empresa de Mineração Pau Branco (Empabra), que teve suas atividades suspensas pela Justiça no início da semana, após acusações de irregularidades. Desde o tombamento municipal da Serra do Curral, a empresa está proibida de extrair minério do local e foi obrigada a executar ações de recuperação da área, devastada após quase seis anos de atividades irregulares.
Durante a vistoria realizada ontem, fiscais constataram que a empresa continua extraindo minério no local. Na mesma manhã, a imprensa registrou uma retroescavadeira em operação, apesar da ordem judicial que determinava o fechamento da mina. Segundo o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a mineradora ainda não havia sido formalmente notificada da decisão. “O MPMG estudará as providências a serem adotadas”, afirmou o órgão, em nota. O Ministério Público também identificou novas irregularidades, que podem resultar em autuações por danos ambientais, mas não forneceu detalhes sobre as infrações. A reportagem procurou a Empabra, mas, até o fechamento desta matéria, não houve retorno.
A Empabra tem um longo histórico de descumprimento de acordos e manobras para continuar explorando a Serra do Curral, apesar das proibições judiciais. A mina, em operação desde a década de 1950, teve suas atividades reduzidas após o tombamento do maciço como patrimônio de Belo Horizonte, em 1990. Na época, a mineradora foi obrigada a interromper a extração de minério e a realizar ações de recuperação das áreas degradadas, depois de deixar uma cratera no cartão-postal da cidade. Em 2005, a empresa assinou um acordo com o Ministério Público de Minas Gerais para implementar medidas de recuperação, mas essas obrigações nunca foram cumpridas, segundo o MP. O Ministério Público tentou forçar essas intervenções, mas, em vez disso, descobriu que a empresa estava utilizando o pretexto de recuperação ambiental para realizar mineração ilegal.
Mesmo após a intervenção da Agência Nacional de Mineração, que autorizou apenas a movimentação de material já extraído, as operações ilegais persistiram, segundo o MPMG, agora respaldadas por um termo de ajustamento de conduta (TAC), assinado em 2015. O coordenador do Centro Operacional de Defesa do Meio Ambiente do MPMG, promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto, acusa a mineradora de usar há mais de 20 anos manobras para obter lucros ilícitos às custas da degradação da Serra do Curral. “Eles (Empabra) usam instrumentos jurídicos como uma forma de encobrir a mineração. Todo o processo de recuperação, na verdade, serve como um subterfúgio para essa atividade. Por isso, o Ministério Público é firme em seu posicionamento: vamos exigir o fechamento definitivo dessa mina e o cancelamento do título minerário. A mineração é incompatível com a preservação da Serra do Curral”, disse, em coletiva de imprensa no local na manhã de ontem.
OUTRAS FISCALIZADAS
Durante a ação, o Ministério Público verificou também as atividades de outras mineradoras na Serra do Curral, que enfrentam ações judiciais em defesa do patrimônio. Ré por mineração irregular desde 2023, a mineradora Fleurs Global teve as atividades suspensas em março deste ano pela Justiça, a pedido do MPMG, após ter provocado danos ambientais e coletivos avaliados pela promotoria em R$ 30 milhões, além de ter seu processo de licenciamento ambiental interrompido. O Estado de Minas tentou contatar a Fleurs Global Mineração, mas não recebeu resposta.
Em agosto, a mineradora obteve uma licença ambiental de seis anos para explorar uma área na Serra do Curral de aproximadamente 79 hectares, localizada entre os municípios de Raposos, Sabará e Nova Lima, na Região Metropolitana de BH. O empreendimento inclui duas Unidades de Tratamento de Minérios (UTM), uma Pilha de Disposição de Rejeitos e diversas estruturas administrativas e operacionais. A licença ambiental concedida é de classe 6, a mais alta em termos de potencial poluidor, conforme a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). Na fiscalização, as atividades da mineradora estavam paralisadas. “Não foi possível verificar as medidas de controle da operação. No que se refere às medidas de controle independentes da operação, como a gestão de resíduos e efluentes, não foram encontradas irregularidades”, informou o MPMG.
No ano passado, enquanto as atenções estavam voltadas para impedir a instalação de mais um empreendimento minerário na Serra do Curral, o Estado de Minas flagrou uma atividade ilegal da Gute Sicht Mineração (nome em alemão que significa Boa Vista), a 350 metros de uma das cavas projetadas pela nova mineradora, na face nova-limense da cadeia montanhosa. Após diversas suspensões e autorizações de funcionamento, o governo de Minas determinou, em maio do ano passado, a multa e o encerramento imediato das atividades da Gute Sicht no local. A fiscalização realizada ontem confirmou o cumprimento da decisão. “Como não havia representantes da empresa presentes, as informações adicionais necessárias serão analisadas posteriormente na elaboração dos autos”, informou o MPMG.
IMPACTOS NA COMUNIDADE
A chegada de helicópteros e carros com as equipes que fizeram a fiscalização alarmou os moradores que vivem próximo à entrada da Empresa de Mineração Pau Branco (Empabra), onde a ação do MPMG começou. A estudante Alice Maia, de 23 anos, contou que ouviu o barulho e se deslocou até as proximidades da mina para ver o que estava acontecendo. “A gente acordou sem entender o que era toda essa movimentação diferente no bairro, de carro, de helicóptero. Aí, eu acho que é importante vir trazer um pouco da nossa opinião, já que todo mundo é muito contra. Acho que não tem uma pessoa aqui no bairro, independentemente da posição política, que seja a favor dessa mineração aqui na Serra do Curral”, comentou.
Alice Maia levou cartazes para a entrada da mina e contou que a mineração mudou a qualidade de vida no Bairro Cidade Jardim Taquaril. A estudante mora na região desde 2008, quando tinha 7 anos. “Antes, eu fazia caminhada aqui no bairro e era outro, mais tranquilo, sem barulho nenhum, sem poluição nenhuma, com muito mais maritacas. Eu era acordada por maritacas ali na minha janela, e hoje não tem mais nada. É muito triste e revoltante. Hoje é muito barulho de caminhão a madrugada inteira. Por hora, passam uns 30 caminhões ou mais. A gente lava a varanda, lava o banheiro um dia e no outro já ta tudo preto, tudo sujo de poeira”, relatou.
O avanço da mineração no local também tira o sono do professor Michel Carlos Rocha, de 44, que mora no Bairro Cidade Jardim Taquaril há 10 anos. Michel ressalta que a atividade atrapalha um cartão-postal importante para Belo Horizonte. “A nossa região aqui é um prolongamento da Serra do Curral, então, nas proximidades, a gente observa essa movimentação, que são os caminhões que entram e saem e o barulho que sai daí de dentro. Quase que o dia inteiro os caminhões levam o minério daqui e eles não passam dentro do bairro. No momento, estão passando em uma estrada de acesso dentro desse terreno, mas é muito próximo, então dá para perceber o barulho. Inclusive no período da noite”, contou.
PROTEÇÃO GLOBAL
Rica em minério de ferro, a região começou a ser explorada por volta dos anos 1940. Hoje, o espaço é protegido apenas a partir de Belo Horizonte, tendo como eixo central a Avenida Afonso Pena. Essa proteção foi reiterada em 1991, com o tombamento, pela Prefeitura de BH, de toda a porção inserida nos limites da capital.
O procurador-geral de Justiça de Minas, Jarbas Soares Júnior, que acompanhou a operação, define a fiscalização de ontem como parte de um esforço maior para proteger a Serra do Curral em sua totalidade, pedido reiterado inúmeras vezes por ambientalistas e moradores da região. “Precisamos ter uma visão mais global da Serra do Curral e não atacar empreendimentos específicos apenas. E pensar uma ação que venha a proteger em definitivo aqui, como fizemos na Serra da Moeda”, afirma.
Denúncias do Ministério Público de Minas Gerais evidenciam, há anos, que mineradoras faziam uso de autorizações provisórias para atuar sem estudos de impacto ambiental e podem ter causado danos que nem sequer podem ser dimensionados. Para a arquiteta e urbanista Cláudia Pires, conselheira do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB/Seção Minas Gerais), o problema está centrado nos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), que são extremamente permissivos, e por isso dão margem para várias atividades não regulamentadas. “Está sendo uma forma de burlar legislação, então, na verdade, está contribuindo para o dano”, avalia.
O tombamento integral da Serra do Curral pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), cujo processo teve início em 2018, é visto pela especialista como a única arma para proteger a região, que, inclusive, passou por um processo de destombamento na década de 1960, justamente para beneficiar as atividades mineradoras. O estudo de tombamento da região está pronto desde 2020, mas, quatro anos depois, ainda não foi aprovado pelo Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep).
Cláudia Pires lembra ainda que a exploração na Serra do Curral entrou no alerta de patrimônio do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos, na sigla em inglês),e põe em risco o título de Reserva da Biosfera, concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) à Serra do Espinhaço, cordilheira da qual o cartão-postal da cidade faz parte. O Icomos é legitimado pela Unesco.
*Estagiária sob supervisão da subeditora Rachel Botelho