A 123 Milhas continua operando, mas não pode mais vender passagem e todos os serviços que já oferecia abaixo do preço de mercado e sem datas específicas -  (crédito: Juca Varella/Agência Brasil - 1º/9/23 )

A 123 Milhas continua operando, mas não pode mais vender passagem e todos os serviços que já oferecia abaixo do preço de mercado e sem datas específicas

crédito: Juca Varella/Agência Brasil - 1º/9/23

Os consumidores estão em um limbo. É assim que o defensor público Paulo César de Azevedo Almeida define a situação daqueles que compraram passagens, a preços muito abaixo do mercado, na 123 Milhas e viram seus planos frustrados. Há um ano, a empresa entrou com pedido de recuperação judicial e não há definição de quando os consumidores prejudicados vão receber reembolso ou indenização. Muitos buscaram a justiça, mas não têm esperança de receber os valores. Além disso, um especialista em direito do consumidor afirma que pouca coisa mudou no setor desde o início da crise da 123milhas.


O coordenador da Coordenadoria Estratégica de Tutela Coletiva da Defensoria Pública de Minas Gerais, Paulo César de Azevedo Almeida, explica que o órgão estabeleceu como estratégia de atendimento dessa demanda o ajuizamento de uma ação civil pública. “Se fossemos ajuizar cada uma das ações, para cada consumidor que passou por essa situação de frustração dos seus planos de viagem e de gastos com pacotes de turismo não efetuados, atenderíamos a milhares de pessoas.”

 

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Ele não consegue precisar quantos consumidores procuraram a defensoria com reclamações contra a empresa. Porém, destaca que atendem apenas a pessoas que recebam até R$ 3 mil como renda individual ou R$ 4 mil de renda familiar. O defensor lembra ainda que existem outras defensorias públicas espalhadas pelo estado.

 


“A perspectiva, segundo estudos que têm sido feitos, é de lesão de 700 mil até 1 milhão de pessoas no país inteiro. Houve lesões graves, pessoas que depositaram sua confiança na empresa, salvaram economias para poder realizar uma viagem e foram frustradas”, enfatiza. Segundo o Estado de Minas apurou, o valor devido pela empresa chega a R$ 2,5 bilhões.


“A Defensoria Pública sempre atuou de uma forma muito democrática, ouvindo as queixas dos consumidores e, sobretudo, os que são carentes. Houve casos de pessoas que iam realizar o sonho de viajar pela primeira vez de avião, de conhecer o mar porque nunca tinham ido à praia. Pessoas que juntaram suas economias para poder fazer viagem em família”, ressalta.

 

 

Almeida cita o caso de um senhor que migrou há 40 anos, de Fortaleza, para Minas Gerais e nunca teve a oportunidade de voltar para visitar sua família. “Ele tinha o sonho de voltar à capital cearense. Comprou uma passagem na linha promocional. Esse senhor extremamente carente não teve a oportunidade de visitar a família como tinha planejado. Atendemos pessoas que viram na linha promocional que a 123milhas praticava a oportunidade de ter acesso a essas passagens áreas e realizar sonhos. Isso nos comoveu muito.”


A ação proposta pelo órgão pede o cumprimento do contrato com emissão das passagens e das obrigações assumidas pela empresa. Caso não seja possível, elas devem ser indenizadas pelo valor gasto e por danos morais causados pela frustração do contrato. “As ações estão tramitando, não há uma sentença que condene a 123milhas ao pagamento dessas indenizações, nem uma decisão definitiva que possamos executar e cobrar o pagamento.”

 


Logo depois que a defensoria propôs a ação civil pública, a empresa entrou com pedido de recuperação judicial. Em 31 de agosto do ano passado, a juíza da 1ª Vara Empresarial da comarca de Belo Horizonte deferiu o pedido.


“Há um procedimento a ser seguido. O levantamento da lista de credores inclui todas as pessoas que têm valores a receber. Depois que essa lista é publicada, os consumidores têm um prazo de 15 dias para conferir se seus nomes constam dela lista, se os valores estão corretos e contestar eventual ausência de seus nomes ou valores incorretos”, explica o defensor.


Depois que a lista é consolidada, a empresa deve apresentar um plano de recuperação judicial. Os consumidores são credores quirografários, ou seja, aqueles que não têm prioridade na quitação dos valores. “Antes, são pagos outros créditos, como os tributários, trabalhistas limitados a 150 salários mínimos, os com garantias reais. Se sobrar patrimônio, são quitados os valores relativos aos consumidores.” Quando o plano for apresentado, a empresa definir quanto e como consegue pagar.

 

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“Os consumidores estão em uma situação de limbo, na expectativa de saber como, quando e de que maneira esses valores serão pagos. Não temos um horizonte de cumprimento efetivo de pagamento aos consumidores. A expectativa é de que em novembro já haja um plano de recuperação aprovado.” O defensor lembra que à medida que decisões importantes acontecem nas duas ações – civil pública e de recuperação judicial – a defensoria lança cartilha com explicações de como os consumidores devem proceder.

 

"Nem estou com expectativa de receber. O pior não é nem o dinheiro, mas era a oportunidade de conhecer a família dele (do namorado). Era uma coisa planejada. Achei muita falta de respeito deles de não comunicarem absolutamente nada", Fernanda Godoy, Estudante, uma das consumidoras lesadas pela 123 Milhas

"Nem estou com expectativa de receber. O pior não é nem o dinheiro, mas era a oportunidade de conhecer a família dele (do namorado). Era uma coisa planejada. Achei muita falta de respeito deles de não comunicarem absolutamente nada", Fernanda Godoy, Estudante, uma das consumidoras lesadas pela 123 Milhas

Marcos Vieira/EM/D.A press

 

 ‘Nenhuma satisfação’

 

A estudante Fernanda Godoy, de 20 anos, é uma das consumidoras prejudicadas pela 123milhas. Com quase um ano de antecedência, ela e o namorado compraram quatro passagens aéreas do Acre para Fortaleza e não conseguiram fazer a viagem planejada. Ela conta que a família do namorado mora no estado da Região Norte e a ideia era visitar uma irmã dele, que vive em Fortaleza. “Nunca chegava a confirmação ou o cartão de embarque.”


Eles foram para o Acre em dezembro e iam embarcar para a capital do Ceará em janeiro deste ano. O que atraiu os quatro – ela, o namorado, a mãe e uma irmã dele – foi o preço das passagens. “Estava muito barato, comparando com as outras tinha R$ 500 de diferença.”


A estudante disse que ficou sabendo do pedido de recuperação judicial da empresa por uma amiga. “Não estava sabendo, tinha comprado há muito tempo, não fazia ideia. Fui tentar cancelar, não tinha como, tentamos entrar em contato com eles, mandamos vários e-mails, nada de resposta. Ficamos sem saber o que fazer.”


Ela afirma que nunca recebeu qualquer satisfação da empresa. “Não fazia ideia do que fazer. Tivemos que cancelar a viagem e acabei não conhecendo a irmã dele. Todos ficamos no prejuízo”, lamenta. No início deste ano, a estudante decidiu procurar um advogado para tentar conseguir, pelo menos, o reembolso do valor gasto.


“Nem estou com expectativa de receber. O pior não é nem o dinheiro, mas era a oportunidade de conhecer a família dele (do namorado). As passagens para lá são muito caras, normalmente. Então, não vou ter essa oportunidade de novo, em breve. Era uma coisa planejada. Achei muita falta de respeito deles de não comunicarem absolutamente nada.”


Essa foi uma das razões que a levaram a procurar a justiça. “No site continuava como se estivesse tudo normal, a viagem programada, mas eu sabia que não ia acontecer.” Até hoje ela não recebeu nenhum contato da empresa. “Absolutamente nenhuma satisfação, nada.”

 

Quase nada mudou


Um ano depois, o advogado especialista em Direito do Consumidor, Felipe Ferreira, diz que quase nada mudou no setor. “Logo que começou o processo de recuperação judicial, teve uma CPI na Câmara dos Deputados, um projeto de lei, mas nada aprovado que regulamente o mercado de milhas ou que proíba expressamente qualquer tipo de comercialização de milhas”.


O que existe hoje, segundo ele, é uma impossibilidade de comercialização das milhas prevista no regulamento de cada programa de milhagens. “As milhas podem ser transferidas. Você pode passar para qualquer pessoa, inclusive essas empresas que comercializam, mas pela regra não se pode vender. Já existia a proibição nos regulamentos de cada programa de milhagem. Acredito que o comércio acontece ainda hoje porque as empresas fazem vista grossa. Elas não têm um incentivo para proibir que isso aconteça”.


A transferência pode ser feita para um particular. “Mas quando se transfere para empresa como 123milhas e outras que existem no mercado, a empresa (de milhas) sabe que a transferência está sendo feita comercialmente, ninguém faria isso gratuitamente”.


O advogado destaca, porém, que a questão das milhas é um ponto, mas o problema na 123milhas não foi exatamente esse. “Eles praticaram uma conduta de apostar que conseguiriam preços melhores no futuro, vendiam passagens mais baratas, mas não conseguiram no mercado o retorno disso. A CPI da Câmara não era sobre milhas e sim de pirâmide financeira. Eles entenderam que esse esquema era uma pirâmide. Vendia hoje por um preço muito baixo e conseguiu sustentar isso no início. Chegou uma hora que não tinha dinheiro para comprar aquele tanto de passagens que foram vendidas a preços abaixo do mercado. E o negócio ficou insustentável”.


De acordo com ele, a 123milhas continua operante, pode vender passagem e todos os serviços que já oferecia. “A questão são essas passagens vendidas muito abaixo do preço, com datas não específicas. Esse tipo de produto continua impedido de ser comercializado”.


Para o consumidor não cair em golpe, o advogado aconselha: “Desconfie de preços muito abaixo do mercado, de uma condição muito benéfica, além de sites que não sejam seguros. Na dúvida pesquise para saber se é um site confiável”.

 

Em nota, a 123milhas informa que opera normalmente e "tem como principal objetivo gerar recursos para honrar todos os compromissos financeiros e com credores".

 

Diz ainda que, desde que o grupo entrou com pedido de recuperação judicial "mantêm constante diálogo com as autoridades competentes, adaptando suas atividades para atender às exigências legais".

 

"Em audiência realizada em 17 de agosto na 1ª Vara Empresarial de Belo Horizonte, o Grupo 123milhas reafirmou seu compromisso com o cumprimento do plano de recuperação judicial, cujo detalhamento será apresentado em data a ser definida pelo Poder Judiciário. A magistrada responsável, juíza Claudia Helena Batista, destacou a importância de estabelecer um procedimento eficiente para a verificação dos créditos dos credores e a realização da assembleia geral".

 

A empresa diz ainda que "lamenta profundamente o transtorno e a frustração que causou a todos os seus clientes e colaboradores diretos e indiretos."

 

"Atualmente, o grupo conta com um quadro de 600 colaboradores e, desde o início do processo de recuperação judicial, já viabilizou a viagem de mais de 1 milhão de pessoas, demonstrando sua capacidade operacional e financeira para superar a presente situação. É importante ressaltar que todas as passagens comercializadas pela empresa são emitidas imediatamente", conclui.

 

Origem de tudo

Em 18 de agosto de 2023, a 123milhas anunciou a suspensão das emissões de passagens e pacotes com previsão de embarque entre setembro e dezembro. A suspensão afetou viajantes que compraram passagens com datas flexíveis. Em comunicado, a empresa informou que os valores gastos pelos clientes com produtos da linha promocional no período seriam “integralmente devolvidos em vouchers, com correção monetária de 150% do CDI”. Ainda de acordo com a nota, os vouchers poderiam ser usados para compra de outros produtos da 123milhas.

 

No dia seguinte, os ministérios da Justiça e do Turismo anunciaram o início de investigações contra a 123milhas.

 

Em 21 de agosto, o então ministro do Turismo, Celso Sabino, anunciou que o governo federal suspendeu o cadastro da 123milhas no CadasTur, sistema de pessoas físicas e jurídicas que atuam no setor de turismo.

 

No dia 23, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) divulgou balanço informando a existência de 186 processos judiciais abertos contra a 123milhas no estado por “cancelamento de vôo”, “indenização por dano moral” e “cláusulas abusivas”. Além disso, 16 estados e o Distrito Federal haviam notificados a empresa.

 

No dia 24, o Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito para apurar as denúncias de irregularidades envolvendo a 123milhas. No mesmo dia, o Procon-SP também anunciou a instauração de um procedimento de investigação.

 

Em 29 de agosto, a 123milhas entrou com pedido de recuperação judicial no TJMG. O valor da causa foi estimado em R$ 2,3 bilhões.

 

Dois dias depois, 31 de agosto, o pedido foi aceito pela Justiça mineira, que suspendeu todas as ações contra a empresa. A decisão determinava que o plano de recuperação contenha medidas de reparação para todos os credores, entre eles consumidores lesados, estimados em 700 mil na época.