Imagem da artesã mineira em destaque na mostra do Rio de Janeiro: peças romperam fronteiras -  (crédito:  CRAB/Divulgação)

Imagem da artesã mineira em destaque na mostra do Rio de Janeiro: peças romperam fronteiras

crédito: CRAB/Divulgação


As mãos amassaram o barro, a criatividade moldou as formas e o coração deu vida à arte que hoje encanta o mundo e se multiplica no Vale do Jequitinhonha. Filha legítima dessa região mineira, Izabel Mendes da Cunha (1924-2014), artesã famosa pelas bonecas de cerâmica tradicionais da região, ganha neste mês homenagens pelo centenário de nascimento. No Rio de Janeiro (RJ), está em cartaz a exposição “Dona Izabel: 100 anos da mestra do Vale do Jequitinhonha”, com 300 peças. A mostra no Centro Sebrae de Referência do Artesanato Brasileiro (Crab) ficará aberta até abril de 2025.

 


Outra reverência à memória, desta vez em Diamantina, também no Vale do Jequitinhonha, ocorrerá em 12 de setembro, com a entrega à família da mestra-artesã da Grande Medalha, grau máximo da Medalha JK (Juscelino Kubitschek). “Minha mãe ficaria feliz com as homenagens, e mais ainda porque já são cinco gerações da nossa família no mesmo ofício”, conta, com alegria, Glória Maria Mendes, de 67 anos, residente no distrito de Santana do Araçuaí, em Ponto dos Volantes, na mesma região.


Dona Izabel aprendeu a trabalhar o barro com a mãe dela, Vitalina, na Fazenda Córrego Novo, em Itinga, onde nasceu em 3 de agosto de 1924, e mais tarde, já em Ponto dos Volantes, transmitiu o conhecimento aos filhos. O tempo passou, e novos artesãos vieram. “Desde pequeninha, minha filha, Andréia, ficava olhando a avó fazendo as peças. E acredita que meu neto, Mateus, de 9 anos, já está no mesmo caminho?”, revela Glória Maria, toda orgulhosa.

 

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Admiradora da obra de dona Izabel, a colecionadora de arte popular e erudita Priscila Freire tem várias peças de autoria da mineira do Vale. “Ela deu grande dignidade à figura feminina, tratando-a com nobreza. Não são imagens de santas, mas parecem figuras de altar, pelo porte. São ‘entidades’, sem aspecto fantasioso ou doméstico a respeito das mulheres do Vale”, afirma Priscila, que foi diretora do Museu de Arte da Pampulha, de BH, durante 14 anos, além de coordenar o Sistema Nacional de Museus, que deu origem ao Ibram (Instituto Brasileiro de Museus) e criar vários equipamentos culturais.


Talento do interior de Minas para o mundo


Para entender essa história, é preciso conhecer os primeiros tempos de dona Izabel, que deixou um legado precioso e obteve reconhecimento internacional. Tanto que recebeu o Prêmio Unesco de Artesanato Popular para a América Latina e Caribe (2004), além da Ordem do Mérito Cultural (2005) e Prêmio Culturas Populares (2009), ambos do Ministério da Cultura brasileiro.

 


“Minha mãe era uma pessoa muito humilde, e ficou surpresa quando teve a notícia da premiação da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Ficou dizendo assim, pela casa: ‘Gente! Tem muita gente mais importante do que eu para merecer esse prêmio'”, recorda-se Glória Maria. Um segundo depois, ela acrescenta que a mãe ficou viúva muito cedo, e encontrou no barro o sustento para os quatro filhos pequenos: Amadeus, Maria Madalena, Glória Maria e Rita de Cássia. “Agradecia a Deus por ter lhe dado quatro filhos, o barro e a água para trabalhar.”

 


As palavras comoventes conduzem diretamente ao trabalho da mulher cujas bonecas ganharam fama e o mundo. “Minha avó Vitalina fazia panelas, potes, talhas e outras peças utilitárias, mas ‘mãinha’ sempre gostou, desde criança, de fazer bonecas. Todos nós fomos criados com o barro. Ele está aí, até hoje, unindo gerações e garantindo o sustento”, afirma Glória Maria. O tempo trouxe oportunidades e ampliou horizontes, tanto que sua filha Andréia estudou artes plásticas na Escola Guignard, em Belo Horizonte, sem deixar de seguir os passos da avó.

 


“E como era o processo criativo de dona Izabel?”, pergunta o repórter. Sem pensar muito, Glória Maria explica que a mãe nunca copiou ninguém. À noite, amassava o barro, e dizia, antes de dormir, que faria seu trabalho na manhã seguinte. Então, compenetrada, começava a fazer as bonecas. “Adorava fazê-las vestidas de noiva, talvez porque não tenha se casado na igreja. Era um sonho dela se vestir de branco, de véu e grinalda”, observa Glória Maria.

 

Dona Izabel Mendes com a filha Glória Maria Andrade, em foto de 2011: saber compartilhado em família e com quem mais quisesse aprender

Dona Izabel Mendes com a filha Glória Maria Andrade, em foto de 2011: saber compartilhado em família e com quem mais quisesse aprender

Beto Novaes/EM/D.A Press – 8/4/2011

 

Uma professora de gerações de artistas

 

O espírito de valorização da arte em barro sempre permeou a vida da mestra Izabel Mendes da Cunha e de outros moradores do Vale do Jequitinhonha, onde há cerca de 100 mil artesãos atuando nos setores de cerâmica, bordado, tecelagem, escultura e trançado. Além de trabalhar em família, dona Izabel nunca se negou a transmitir conhecimento. Ensinou sua técnica a muita gente. “Aprendi muito com a minha avó, que, na verdade era ‘a grande mãe’ de todos nós’”, diz a neta Andréia Andrade, artista plástica e artesã, de 43, mãe de Lucas, de 12, e Mateus, de 9, o qual mantém a tradição familiar na lida com o barro.


Autora de uma escultura para homenagear dona Izabel, Andréia se inspirou em todas as qualidades que, desde criança, enxergou na avó. “Não sabia ler nem escrever, mas era muito sábia, forte, amiga, moderna, empreendedora, conselheira, bem à frente do seu tempo”, testemunha Andréia, que participa, em São Paulo, do 18º Salão do Artesanato. “Ensinou a muito gente, e tinha paciência”, resume ela, que está entre 100 artistas populares brasileiros selecionados para o evento no estado vizinho.

 


Em entrevista ao Estado de Minas em 10 de junho de 2012, dona Izabel falou sobre a arte de transmitir conhecimento. “O grande prazer que a gente tem é ensinar. Ensinei tanta gente... Foi um gesto importante que não ficou só para mim”, disse. Na mesma entrevista, revelou, como verdadeira mestra, o “nascimento” das suas bonecas: “Já tinha ouvido falar de boneca, mas nunca tinha visto uma. Pensei: ‘Deve ser parecido com gente’. E inventei uma para mim’”.

 


Com o que parecia brincadeira, a menina nascida na zona rural encontrou a chave para abrir seu universo. E conquistar olhares de admiração, principalmente a partir da década de 1970. Aquela época marcou uma virada na sua carreira, pois foi quando começou a criar as bonecas que se tornariam famosas. Originalmente projetadas para conter água, as peças de barro evoluíram para esculturas superiores a um metro de altura, tornando-se marca registrada da artista e ícone da cultura do Jequitinhonha.

 


Além das noivas e noivos, dona Izabel criou mulheres amamentando, matronas e moças em grande formato. “As peças criadas por minha mãe se encontram em vários cantos do mundo. Na França, nos Estados Unidos, no Palácio da Alvorada, em Brasília (DF) e em muitos museus. Nessa exposição no Rio de Janeiro, encontrei algumas que, sinceramente, não via já tinha muitos anos. Foi emocionante”, diz Glória Maria. Até nas passarelas as bonecas foram parar. Em 2003, estiveram na São Paulo Fashion Week, quando o estilista mineiro Ronaldo Fraga homenageou as ceramistas do Vale do Jequitinhonha.


Unesco valorizou a artesã do Vale


Com a escultura “A mãe amamentando o filho”, dona Izabel, então com 80 anos, venceu a sétima edição do Prêmio Unesco de Artesanato para América Latina e Caribe, que, em 2004, enfocou o tema Criações do Cotidiano. A obra passa a fazer parte do acervo da Unesco e foi exposta na feira Maison & Objet, em Paris, França, em 2005.

 


O trabalho da artesã mineira foi escolhido entre 90 obras, de 16 países, a partir de critérios de beleza, originalidade e potencial de mercado. Na ocasião, dona Izabel declarou: “Estou muito satisfeita, muito alegre por ter um trabalho valorizado no mundo”.

 


A premiação foi uma oportunidade para a mineira voltar aos tempos de criança e falar sobre sua arte dos primeiros tempos. “Era um trabalho de imaginação, nunca tinha ouvido falar em bonecas de barro. Aos poucos, o trabalho, a imaginação e a experiência foram crescendo. Somos nós que nos ensinamos. Até minha mãe ficava admirada e dizia que era Deus quem estava me ajudando”, disse dona Izabel.


Uma década sem a artista mineira

 


Se festeja neste mês, com saudade e orgulho, o centenário de dona Izabel, a família da artesã vai se lembrar, em 31 de outubro, de uma década do falecimento da matriarca. Ela morreu vítima de câncer no pâncreas, aos 90 anos. “Nossa família é grande. Minha mãe teve quatro filhos, nove netos e 11 bisnetos”, observa a filha Glória Maria.

 


Na exposição, que tem curadoria de Ricardo Lima e ocupa oito salas sobre a obra de dona Izabel e de seus discípulos, no Rio, a arte faz brilhar ainda mais a luz do trabalho pioneiro. Presente na abertura da mostra – realização do Sebrae Minas e do Centro Sebrae de Referência do Artesanato Brasileiro (Crab), com parceria técnica e institucional do governo de Minas, via Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico (Sede-MG) –, o vice-governador de Minas, Professor Mateus, destacou o legado da mestra.

 


“Dona Isabel é a criadora do ofício das bonequeiras do Vale. É a primeira, a precursora, quem desenvolveu a técnica. O que a gente conhece como as bonecas do Vale foi pensado, desenvolvido, criado e ensinado por ela. Então, dona Izabel precisa ser celebrada e comemorada pelo que fez e pelo que representa para os artesãos do Jequitinhonha”, afirmou.

 

Serviço

 

O Crab fica na Praça Tiradentes, 69/71, no Centro do Rio de Janeiro, e está aberto de terça-feira a sábado, das 10h às 17h. A entrada é franca (mediante documento com foto)

 

Depoimento

 

E o barro se fez poesia

 

“Em 2004, em andanças pelo Vale do Jequitinhonha com o repórter fotográfíco Beto Novaes, cheguei à casa de dona Izabel, em Ponto dos Volantes. Ela acabara de ser reconhecida pela Unesco, com toda honra e direito, recebendo o Prêmio de Artesanato Popular para a América Latina e Caribe (2004). O feito já havia sido amplamente documentado pela imprensa, incluindo o Estado de Minas, e, portanto, reservei um tempo para apenas observar aquela mulher tão especial para a cultura mineira. Na oficina, me senti numa casa de arte, onde do barro tudo brotava em beleza. Aproveitei a oportunidade para adquirir um jarro, que julguei ser uma ânfora. Na minha cabeça, não estava consumindo, mas levando poesia para casa. Presenteei um casal muito querido, pais de três crianças pequenas, com a peça. Resultado: ela acabou se partindo em mil pedaços, embora nunca tenha saído da minha memória.” (Gustavo Werneck)

 

 

Patrimônio em forma de saber


Solo fértil para o florescimento do artesanato, o Vale do Jequitinhonha tem no barro um tipo de matéria-prima que une gerações, sustenta famílias e transforma vidas com o poder da criatividade. Da força da terra ao talento das mãos, ele está presente em bonecas, panelas, vasos, borboletas e flores, de formas e cores variadas, realçando uma atividade que se tornou, em 2018, Patrimônio Imaterial de Minas, com o registro de Saberes, Ofício e Expressões Artísticas sob proteção do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG).