“Imagine chegar uma pessoa com poder, com influência, e dizer que as terras da sua família são dela. Isso daqui é tudo que a gente tem.” Quem faz o desabafo é Tamires Fernanda da Silva, de 32 anos. Há pelo menos dois anos, a família dela enfrenta uma disputa para manter as terras onde vive há mais de duas gerações, no pé da Serra do Cipó, em Santana do Riacho, na Região Central de Minas.

 

A paz do distrito Serra do Cipó, onde moram dezenas de outras famílias, foi demovida desde que Henri Dubois Collet, de 73, ex-diretor-geral do Instituto Estadual de Florestas (IEF) e atual gerente do Parque do Rola-Moça, passou a alegar ser dono das terras. A família de Tamires tem a escritura dos terrenos, matriculadas pelo seu bisavô, João Luiz da Silva, desde 1935 quase 90 anos atrás. Com a morte do patriarca, a posse do terreno ficou para seu genro, João Ferreira da Cruz, de 89, conhecido como "João Nico".

 

Outros documentos, como guias de impostos recolhidos e registros da Prefeitura de Santana do Riacho, se alinham aos relatos de moradores da região sobre a quem as terras pertencem. "Eu sei que isso daqui é do João Nico desde que eu me entendo por gente", diz um morador da região, de 65.

 

O imbróglio sobre quem possui a legítima posse dos terrenos poderia ser resolvido na Justiça. No entanto, as pessoas envolvidas na disputa denunciam ameaças e pressões que estariam sendo praticadas por Henri, que as acusa de ocuparem terras das suas propriedades.



Uma das vítimas dessas supostas condutas é o artista Philippe Ribeiro de Oliveira, de 40, que comprou das mãos de João Nico o terreno onde construiu sua casa. Cada detalhe do imóvel foi feito pelas próprias mãos do artista, com tijolos de adobe, madeiras de eucalipto usadas e outros materiais reutilizados. Segundo ele, dois anos atrás, um dos filhos de Henri apareceu por ali com dois policiais militares, armados e fardados, e alegou ter uma decisão judicial que dizia que aquela terra pertencia à família dele. Contudo, nem ele nem os oficiais apresentaram nenhum mandado. Philippe conta ter tentado uma solução pacífica para a disputa. "Eu tentei ter um diálogo com ele, falei que estava disposto a esperar o resultado da Justiça, mas ele veio por contra própria e arrancou a cerca", relata.

 

Desde a primeira visita dos policiais, Henri já mandou que arrancassem a cerca do terreno três vezes, causando um prejuízo de mais de R$ 10 mil, afirma Philippe. Por conta do trabalho, ele costuma passar meses fora do país. Quando está em casa, sente temor já que, pelo menos uma vez por semana, um funcionário de Henri passa em frente à casa dele de moto. "Eu já disse pra ele que se a Justiça determinar que é dele, eu tiro a cerca. Se determinar que é meu, eu só quero que ele me deixe em paz", relata.

 

EPISÓDIOS

 

As terras onde historicamente vive a família de João Nico fazem divisa com propriedades dos Collet, que só chegaram à Serra do Cipó em 1964. Essa informação foi confirmada pelo próprio Henri em entrevista para o jornal “Manuelzão”, em maio de 2008. "A gente morava em João Monlevade, e todo ano vinha passar as férias aqui. Papai gostava muito da região", disse.

 

Henri é servidor público do estado de Minas Gerais e, pelo menos desde a última década, teve passagem por cargos de chefia nos órgãos de meio ambiente ligados ao governo estadual. Foi diretor de unidades de conservação do Instituto Estadual de Florestas (IEF), onde acumulou a chefia do Monumento Natural Estadual da Serra da Moeda e a Estação Ecológica de Arêdes. No mesmo órgão, já ocupou também o cargo de diretor-geral. Atualmente, é gerente do Parque Estadual da Serra do Rola-Moça.

 

Segundo o advogado de Tamires e de Philippe, Marcelo Adomiram, o ex-diretor do IEF tenta emplacar uma nova interpretação das escrituras das suas propriedades, que é incompatível com os relatos dos moradores da região. "A escritura do Henri diz que as suas terras vão até uma grota, mas ele alega que essa grota é, na verdade, uma que fica abaixo das terras do João Nico. É como se o João Nico não tivesse terra nenhuma", explica.

 

Muitas das pessoas que moram nos vilarejos dali trabalhavam nas lavouras do pai de Henri. É o caso de Antônio Carlos dos Santos, de 65, conhecido por ali como Bigode. "O pai do Henri dizia 'pro lado de cá dessa água não mexe que não é meu'", conta o lavrador, que é uma das testemunhas a favor de Tamires e Philippe no processo contra Henri.

 

 

Bigode é um dos afetados pela disputa, já que vendeu algumas terras que lhe pertenciam e que estão dentro da área reivindicada pelo ex-diretor do IEF. "Se der problema, (os donos) vão vir atrás de mim, por causa dos terrenos que eu vendi", explica Bigode.

 

Outra pessoa afetada pelo imbróglio é o autônomo Adimar de Souza Cruz, de 39. Há cerca de seis anos, ele mora com a esposa em uma casa que o casal construiu num lote na Serra do Cipó, dentro da área que passou a ser reivindicada por Henri.

 

Certo dia, conta Adimar, o servidor público foi até Adimar alegando ter uma decisão judicial garantindo que as terras eram dele – o mesmo expediente adotado com Phillipe. Em seguida, Henri teria proposto deixar a casa para o autônomo, desde que ele "colaborasse" e cedesse o restante do terreno. "Ele tá achando que é coronel", desabafa Adimar. O autônomo conta que, desde esse episódio, já foram três vezes tirar foto da casa quando estava vazia.

 

PERSPECTIVAS

A tentativa de tomar as terras por parte do ex-diretor do IEF levou a família de João Nico e Phillipe a judicializarem o caso. Ambos foram beneficiados por uma liminar, em meados de julho, que lhes garante, provisoriamente, a manutenção da posse das terras.

 

Segundo o advogado dos envolvidos, a defesa levou 11 testemunhas para a primeira audiência, mas o juiz ouviu apenas 4 – o restante ficou para a audiência de instrução, ainda sem data marcada. O processo, conta o advogado, é formado 136 documentos, que incluem, além das escrituras, guias de impostos pagas, registros das terras em órgãos públicos, entre outros.

 

Duas das testemunhas ouvidas pelo juiz disseram ter presenciado ocasiões em que funcionários de Henri removeram as cercas do terreno de Phillipe. Por isso, o juiz deu a decisão liminar sob o argumento de que Henri praticou esbulho possessório, crime que ocorre quando alguém invade terreno ou edifício alheio com uso de violência ou de grave ameaça.

 

A defesa de João Nico e Phillipe acredita que terá um resultado favorável nas próximas etapas do processo, impedindo Henri de conseguir as terras. "Ele faz tudo a bel-prazer, como se não existisse lei. É o famoso coronel mesmo, coronel das antigas", diz o advogado Marcelo Adomiram.

 

 

Phillipe, que tem perdido o sono desde o começo desse imbróglio, espera que as coisas melhorem com o avançar das denúncias. "Eu espero que ele me deixe em paz e que as coisas sejam do jeito que são: o que é meu é meu, o que é dele é dele".

 

OUTRO LADO

Procurado pela reportagem, Henri Dubois afirmou que as terras que tem reivindicado foram adquiridas por seu pai em 1964. O gerente do Parque do Rola-Moça sustenta que as terras de João Nico são bem menores do que as testemunhas dizem. “Tenho um documento de 1895, escrito a bico de pena, que comprova que as terras são minhas”, alega Henri.

 

Ele confirmou que seu filho esteve com policiais armados na residência de Phillipe e deu sua versão sobre o episódio. Segundo Henri, ele havia feito uma denúncia de ocupação ilegal dos terrenos e foram os oficiais que se colocaram à disposição para ir ao local fazer o registro do boletim de ocorrência. Sobre as reiteradas remoções da cerca no terreno, ele disse que vai continuar. “O que eu faço nada mais é do que proteger a área. Vou continuar ‘picando’ toda a cerca que estiver no meu terreno”.

 

A reportagem entrou em contato com a Polícia Militar de Minas Gerais em busca de posicionamento sobre as situações envolvendo agentes da corporação, mas não obteve retorno. 

 

 

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