A arte se inspira na fé, cria peças multicoloridas em homenagem a santos padroeiros, tece tradições centenárias para encanto dos olhos e faz do barro, da madeira, dos fios de algodão um tesouro a ser guardado no fundo do coração de Minas. E exposto ao mundo, com delicadeza.


Nas mãos de homens e mulheres, na capital e no interior do estado, imagens, terços, escapulários, oratórios, estandartes, presépios e outros objetos de devoção ganham forma e beleza para enriquecer ainda mais o patrimônio sacro das Gerais. Neste dia em que os católicos celebram a Assunção de Nossa Senhora – em BH, é dia da padroeira, Nossa Senhora da Boa Viagem – o Estado de Minas inicia uma série sobre o artesanato religioso.


Nesta primeira reportagem, o santeiro, restaurador, ceramista e tapeceiro Carlos Maurício Perret, há 50 anos dedicado ao ofício, fala da sua paixão pelo trabalho diário, mostra preocupação com a falta de mão de obra especializada e surpreende ao revelar que, muitas vezes, há preconceito até mesmo contra os santos negros.

 



 

A religiosidade está por todos os lados, mas não esperem encontrar muita ordem na oficina de Carlos Maurício Perret, mais conhecido como Carlinhos Perret, de 61 anos. No espaço no qual trabalha, há imagens sendo modeladas, quadros, peças à espera de restauração, presépios, incluindo um com todas as figuras negras, e santos de todos os tamanhos, além de ferramentas necessárias ao ofício e tintas, solventes e demais produtos usados diariamente. “Sempre dou um jeito de arrumar, mas acabo acumulando mais e mais. Mas pode ficar tranquilo, pois acho tudo o que procuro”, avisa o santeiro, restaurador, ceramista e tapeceiro.


Natural de Belo Horizonte e residente no Bairro Bonanza, em Santa Luzia, na região metropolitana, Carlinhos está há meio século no ofício que lhe dá sustento e também muitas alegrias. “Gosto realmente do que faço. E esse amor pela arte me acompanha desde criança, quando inventava tintas com creolina e vermelhão para pintar quadros, buscava argila na Mata do Inferno, na divisa da capital com Sabará, para criar minhas primeiras peças, enfim, dava meus 'pulos'.”

 


Na infância, ainda morando no Bairro Santa Inês, na Região Nordeste de BH, o menino Carlinhos aprendeu a ter respeito pelas imagens dos santos. “Sabe que não tínhamos muitas em casa? Minha mãe achava melhor que as imagens ficassem nas igrejas, enquanto meu pai temia pelos estragos, pois criança faz bagunça e sempre pode quebrar algo.”


Tantos cuidados ajudaram na formação do artista, que cursou estudos sociais na PUC Minas (então Universidade Católica de Minas Gerais), em BH, e lecionou em colégio até deixar o ensino de lado e abraçar de vez sua vocação. “Penso que a arte sacra está cada vez mais valorizada, mas falta mão de obra. Já ensinei muita gente a trabalhar. Infelizmente, hoje, os jovens chegam à oficina, ficam dois dias e desaparecem. Então, trabalho sozinho há vários meses.”


INSPIRAÇÃO VEM DA OBRA
DO MESTRE ALEIJADINHO

Perto do portão da oficina, que se emenda com um jardim, estão empilhadas toras de cedro adquiridas recentemente. Olhando a madeira, Carlinhos Perret diz que vem pensando na destinação: “Outro dia, vi um desenho de Nossa Senhora do Bom Conselho, na qual a Virgem Maria fala ao ouvido de Jesus. Estou decidido a esculpir essa imagem”, conta, como se já tivesse em mente todos os contornos na cabeça. Um segundo depois, olhando para o céu, ele revela que, desde criança, busca inspiração em Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), o mestre do Barroco. “É nosso maior artista.”


De volta ao espaço de trabalho, Carlinhos conta que as peças mais pedidas pelos clientes são as de Nossa Senhora, em suas várias denominações, mas de forma especial Nossa Senhora da Conceição, além do Sagrado Coração de Jesus, São Francisco de Assis e Divino Espírito Santo, que faz em policromia. A explicação é a deixa para que o artesão fale sobre a iconografia dos santos. “Todo mártir, a exemplo de Santa Luzia, traz as cores verde e vermelha nas vestes”.

 


Já os santos que acreditavam na vida após a morte têm uma caveira aos pés, entre eles São Francisco, Santo Ivo e São Geraldo. É importante também ficar atento à cor dos hábitos de ordens religiosas: “Os franciscanos, a exemplo de Santo Antônio, usam marrom, enquanto os jesuítas, preto.”

 

Para cada causa,
um padroeiro

Não raro, o artesão Carlinhos Perret ouve a seguinte pergunta de clientes, ao atender o telefone: “Que santo 'melhorzinho' você está tendo?” Sem se surpreender com a frase, responde logo: “Depende da sua fé”. Compenetrado no trabalho, o santeiro tem sempre uma dica na ponta da língua a quem lhe procura. “Uma pessoa estava com problemas nas pernas e queria uma imagem de devoção. Então, indiquei São Lázaro, já que as feridas do santo simbolizam suas dores e seus sofrimentos.” Já uma cliente que sofria com problemas nos seios pediu a imagem de Santa Ágata, protetora das mulheres com enfermidades nessa parte do corpo.


“Respeito muito a fé das pessoas. Trabalho com temas religiosos, mas não exploro a devoção de ninguém”, diz o mineiro que, há dois anos, quebrou o fêmur, numa cidade do Espírito Santo. “Estava trabalhando na restauração de uma igreja. Num dia, pela manhã, quando seguia para o templo católico, escorreguei na lama e caí, pois chovia demais. Fiquei por lá um mês, antes de voltar para casa. Agora, continuo no batente, entre a oficina e a fisioterapia.”


COR DA PELE INTERFERE
NO PEDIDO DO DEVOTO

Ao longo de décadas, são muitas as histórias vividas pelo escultor e restaurador. “Já chegaram ao absurdo de me encomendar uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, com a pele branca. Agradeci a preferência, mas recusei o pedido.”


Em outra oportunidade, uma mulher, que Carlinhos Perret não conhecia, conseguiu o número de seu telefone e encomendou uma imagem de Santa Efigênia, para pagar uma promessa. Então, ele fez a peça como manda o figurino. No entanto, quando a mulher viu, reclamou porque a santa era preta. “O lugar que moro é distante do Centro de Santa Luzia, e ela me disse que foi um custo para me achar, quase se perdeu no caminho. Mas meu espanto foi maior com seu comentário racista, preconceituoso.” Como Carlinhos não trocou a cor da escultura, a cliente se conformou, pagou e levou.


O caso que o restaurador conta agora ilustra bem o dito popular segundo o qual “não há nada como um dia após o outro”. Em uma ocasião em que o artesão estava muito atarefado, chegaram duas amigas à sua oficina, pedindo para olhar as imagens de Nossa Senhora da Conceição. Não passou muito tempo, e uma disse à outra para comprar a peça em São Paulo, onde haveria mais variedade e qualidade. “Achei estranho, mas fiquei calado.”


Meses depois, a mulher apareceu na oficina com uma imagem de Nossa Senhora da Conceição quebrada, pedindo a Carlinhos para restaurá-la. “Curiosamente, era uma imagem que eu havia feito. Aí, não aguentei e falei: A senhora não quis comprar aqui, né? Preferiu adquirir em outra cidade, certamente por um preço três vezes maior, um trabalho meu. Pode ficar tranquila, que farei o serviço sem cobrar.” A mulher ficou sem graça e agradeceu pela cortesia da casa.


A cada momento, se recebe elogios, Carlinhos também se surpreende com o que ouve. “Pessoas passam na minha porta e gritam palavras ofensivas, pois não gostam de imagens. O que posso fazer? Vou brigar com todo mundo? Jamais. Não maltrato ninguém, e espero que tenham respeito pelo meu trabalho e pela fé dos outros.”


Após mostrar uma escultura em cerâmica, “A mão de Deus”, que receberá policromia (camadas de tinta superpostas), Carlinhos apresenta um presépio com todas as figuras negras, que esteve em exposição no Circuito de Presépios de Santa Luzia. “Quis mostrar que não existe diferença de pele quando se trata de uma data tão importante como o nascimento de Jesus”, resume. 

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