A sala, os quartos e o jardim mais parecem um santuário de memórias: retratos, livros, objetos, móveis e plantas estreitam laços de família e fortalecem as lembranças do morador do Bairro Floresta, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. Guardião dessas lembranças, Ailton Batista da Silva dá mais vida ao ambiente reunindo fé, arte, criatividade e belas imagens. Nas paredes da casa, há estandartes em homenagem aos santos que, desde a infância, povoam o universo espiritual do pesquisador, restaurador e servidor público aposentado. “Tudo isso faz parte da minha história, da minha devoção”, resume Ailton.

 

Estandarte traz arte na palavra, força no visual, beleza nas formas. E esse conjunto se encontra presente, também, no trabalho de Marcelo Brant, “estandarteiro”, como se identifica, de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha. Completando três décadas no ofício, Marcelo traz no coração as manifestações populares, a religiosidade e a paixão pela cultura. “Não faço simplesmente para vender, mas porque a fé está dentro de mim”, conta.

 

Conhecer a trajetória dos artistas visuais, que destacam símbolos das tradições mineiras é mergulhar nas profundezas da alma das Gerais. Cores, materiais, tecidos e inventividade se unem em estandartes das procissões, na Semana Santa, e em bandeiras de folias de Reis, festas juninas, congados e diante dos olhos da multidão, no alto de mastros. É o que mostra a última reportagem da série “Ofícios de fé”, na qual o leitor vai conhecer um pouco da essência desses mineiros e de como nasce essa vocação.

 

O artista visual Marcelo Brant, de Diamantina, carregando um estandarte feito por ele durante procissão na cidade

Arquivo pessoal/Divulgação


Talento despertado ainda na infância


Na manhã muito fria de BH, se torna quase impossível iniciar a conversa sem pão de queijo quentinho e café recém-coado. Aílton concorda e vai abastecendo, bem à moda mineira, a mesa da cozinha com outras quitandas, incluindo um saboroso biscoito de polvilho. Nesse clima acolhedor, ele recorda o despertar do seu talento para a confecção de estandartes. “Morava em Nova Lima (Região Metropolitana de BH), e, desde criança, via as procissões passando na rua. Esse cenário ficou gravando no meu inconsciente, pois minha família era muito religiosa, principalmente a minha avó materna, Virgínia.”



Os festejos religiosos, missas e demais cerimônias na Matriz Nossa Senhor do Pilar, da qual era vizinho, na Igreja do Rosário e na Igreja Santo Antônio encantavam cada vez mais o menino que, um belo dia, deixou a arte falar mais alto e fez uma bandeira em louvor a Nossa Senhora do Rosário. Como deu certo, logo recebeu um pedido para fazer um estandarte de Santo Antônio, festejado em 13 de junho. “Era uma festa junina, e fiquei feliz por terem encomendado.”

 

Terminado o café, é hora de conhecer os estandartes pendurados em vários cantos da sala. “Só uso tecidos nobres, como linho e seda, e belas estampas em respeito aos santos. Faço para os católicos e também para festas da umbanda e candomblé, celebrando os orixás. Nesse caso, cada fita tem sua cor e significado.”

 

Nessa galeria particular, há um São Francisco aos pés da cruz, com franjas douradas na base do estandarte, ao lado de um Sagrado Coração de Jesus, que apresenta um diferencial: o coração sobressai no tecido, por ser acolchoado com espuma. “Demorei uns 20 dias para fazer esse”, conta Ailton, para, um segundo depois, informar que desenha todos os detalhes antes de começar a tarefa.

 

A coleção inclui São José com os lírios, “flores que simbolizam a pureza do pai adotivo de Jesus”, Nossa Senhora das Dores, em linho bordado, e Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, em reluzente cetim, com uma curiosidade: “No lugar do verde da Bandeira do Brasil, fiz um retângulo amarelo, e em vez do losango amarelo, usei o verde, rodeando a estampa de flores”.

 

 

Perto da porta de entrada, o artesão pendurou o estandarte de Santa Efigênia, protetora dos militares. Caprichando nos detalhes, colou, na base da peça, pequenas estatuetas de soldados, entre eles os romanos. Já ao lado da escada que conduz ao segundo pavimento, pode-se ver um em 3D, dedicado a Nossa Senhora dos Anjos. Nesse, chama a atenção o acabamento, nas partes superior e inferior, de penas brancas.

 

O estandarte de Nossa Senhora da Piedade, feito por Ailton, homenageia a padroeira de Minas

Jair Amaral/EM/D.A Press

 

Raízes de peças que ilustram a história


Formado em filosofia e em conservação-restauração no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (Cecor/UFMG), Aílton, que trabalhou três por décadas no Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), pesquisou as origens do estandarte, “símbolo de religiosidade trazido ao Brasil pelos portugueses no início da colonização”. Com o tempo, o item deixou de ser apenas peça de igreja para ganhar espaço na decoração de residências.

 

“Manter essa tradição, para mim, é motivo de alegria e de valorização de nossas raízes. O estandarte, na verdade, é sinal da minha devoção.” Ao pronunciar a última palavra, o restaurador abre o caminho para se entender como a Igreja interpreta a religiosidade expressa por meio das mais diversas manifestações da arte.

 

Segundo a Arquidiocese de Belo Horizonte, “a arte sacra, em suas diversas e ricas nuances, contemplando desde obras de renomados artistas, belas igrejas e catedrais até criações mais simples, fruto da inteligência de artesãos anônimos, partilha uma bonita identidade, bem definida no Concílio Vaticano II (1962 a 1965): 'Expressam, em obras humanas, a beleza infinita de Deus e procuram aumentar seu louvor e sua glória na medida em que não tiverem outro propósito senão o de contribuir poderosamente para encaminhar os corações humanos a Deus'”.

 

A arquidiocese afirma ser “importante sublinhar que a arte sacra traz, em sua essência, a dimensão divina e, ao mesmo tempo, as singularidades culturais de cada povo”. “Por isso, a arte sacra precisa ser promovida e preservada, pois constitui um patrimônio que é de todos, herança construída por diferentes gerações capazes de narrarem a história de uma civilização e, ao mesmo tempo, de expressarem a relação do ser humano com Deus”, conclui.


Trinta anos de arte e encantamento


Em Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, o artista visual Marcelo Brant, rei da Festa do Rosário, comemora três décadas no ofício de “estandarteiro”, com peças distribuídas mundo afora, exposições e um pensamento que o norteia: “Não faço estandarte simplesmente para vender, mas porque a fé está dentro de mim”. Imerso na rica atmosfera que a região proporciona, o diamantinense bebe na fonte da cultura popular e na religiosidade para deixar fluir a criatividade.

 

 

O “nascimento” dos estandartes na vida de Marcelo ocorreu quando ele foi rei do Rosário, na Festa de Nossa Senhora do Rosário, em Milho Verde, na vizinha cidade do Serro. Fez, então, o primeiro, dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, o qual ainda guarda com carinho. “No meu inconsciente, estavam as procissões e outras celebrações que presenciava desde criança”, testemunha.

 

Sempre em movimento, o artista acredita já ter produzido mais de mil peças. “Trabalho diariamente, a todo momento. Quando faço o estandarte, somos eu, o santo e a peça”, avisa o artista, que também atuou como figurinista em novela.

 

Uma característica que merece destaque nessa trajetória está no uso de materiais reciclados, descartáveis, com os quais o artesão possui um trato refinado. “Na verdade, tenho um olhar de ‘catador’, escolhendo objetos que o tempo e o santo pedem”, afirma. Numa época em que se fala tanto em inteligência artificial, ouvir as palavras do artista é um alento e sinal de que sentimentos e trabalho, quando associados pelo bom gosto, traduzem o melhor do ser humano.

 

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Diferentemente de outros artistas, Marcelo Brant, que foi professor de arte durante 20 anos, não faz croqui (esboço), preferindo partir diretamente para a confecção, fazendo brotar a energia que o move.

 

Dessa forma, nunca fez um estandarte igual ao outro, e, considerando-se “ecumênico”, faz peças para pessoas de todas as crenças. Animado, Marcelo planeja uma exposição para celebrar seus 30 anos como “estandarteiro”, e conta que, em Diamantina, suas peças podem ser encontradas na Livraria Espaço B, no Beco da Tecla, e, em BH, no Restaurante Dona Lucinha.

 

Origens na Idade Média

Com origem na antiga palavra francesa “estendard”, o estandarte tem origem na cultura europeia medieval, servindo como identificação de tropas militares, confrarias e irmandades, entre outras associações.

 

O Estado de Minas publicou, a partir do dia 15 deste mês, a série “Ofícios de fé”, sobre artesãos que dedicam sua obra a objetos de devoção. A íntegra das reportagens pode ser acessada pelo site em.com.br

 

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