Uma pesquisa relacionada aos feminicídios praticados em Minas Gerais, entre 2021 e 2023, revela que 72% dos autores dos crimes já são responsabilizados na esfera penal. No caso dos julgamentos, 94% dos réus foram condenados, com média de pena, na 1ª instância, de 22 anos e nove meses de reclusão. Para a promotora Patrícia Habkouk, responsável pelo levantamento, essas condenações mostram que a sociedade não tolera o feminicídio. Os resultados da pesquisa serão apresentados neste 23 de agosto, Dia Estadual de Combate ao Feminicídio, em um seminário no Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).
Patrícia Habkouk é promotora há 31 anos. Há 10 atua no enfrentamento à violência contra mulher e, nos últimos cinco anos e meio, está à frente do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (CAOVD), que acompanha a situação envolvendo a violência contra a mulher. Ela explica que os 853 municípios do estado estão divididos em 298 comarcas. Em cada uma delas, há um promotor ou promotora que atua para garantir o cumprimento da Lei Maria da Penha.
“Meu papel é apoiar esses promotores, além de fomentar, fiscalizar e incentivar a existência de políticas públicas específicas, com recorte de enfrentamento à violência contra a mulher. Feminicídio é a morte da mulher por ela ser mulher. Desde 2015, é uma qualificadora do crime de homicídio que decorre das circunstâncias de envolver o sexo feminino, nos casos de violência doméstica ou ódio e discriminação à condição de mulher.” Nos últimos anos, Minas tem liderado o ranking de casos de feminicídio no país. “Em 2021, fomos o estado da Federação com o maior número de feminicídios. Em 2022 e 2023, ficamos na segunda posição, atrás de São Paulo.”
A promotora explica que analisou os processos judiciais, de 2021 a 2023, a partir dos boletins de ocorrência. “O que fiz foi analisar um a um esses 497 casos. Meu objetivo é mostrar para a sociedade mineira como estamos reagindo ao feminicídio. A lógica da Lei Maria da Penha é que as mulheres não morram. Elas devem denunciar, pedir medidas protetivas, têm o direito de ser bem atendidas, acolhidas e encaminhadas. Mas, se o sistema de proteção não funciona, acaba acontecendo a violência. E o ápice dessa violência é o feminicídio”, afirma.
Diante desse cenário, ela decidiu analisar como a segurança pública e a Justiça lidam com esses crimes. “Observei que estamos dando boas respostas. Por exemplo, 44% dos homens autores de feminicídio são presos em flagrante. Já 16% deles cometem suicídio logo após matar a vítima. Estamos prendendo mais da metade dos autores de feminicídio em flagrante.”
O levantamento também mostra que 72% dos agressores são réus em processos penais condenatórios. “A investigação foi concluída, a denúncia oferecida e eles estão sendo responsabilizados.” Em 82% dos casos já há sentença de pronúncia, quando os suspeitos estão aptos a serem julgados pelo Tribunal do Júri. Além disso, em 51%, o julgamento já foi realizado.
“Ou seja, a metade desses casos que chegaram até a sentença de pronúncia já foi julgada. E no julgamento, 94% dos réus foram condenados. Em 88% dos casos julgados, a qualificadora do feminicídio foi reconhecida.” Nos casos já julgados, a média de pena, na 1ª instância, é de 22 anos e nove meses de reclusão. Já na 2ª instância, há uma diminuição para 21 anos e nove meses.
Outro dado revela que 82% dos autores de feminicídio são cônjuges, companheiros, namorados ou ex-cônjuges, ex-companheiros ou ex-namorados da vítima. Já 71% dessas mulheres mortas são negras. Além disso, do total de 497 casos, em apenas 12% as mulheres tinham medida protetiva contra os agressores.
PAPEL DOS JURADOS
A promotora Patrícia Habkouk analisa que, com base no resultado do levantamento, a sociedade mineira mostra que não tolera o crime de feminicídio. “Estamos falando dos crimes dolosos contra a vida, em que, embora caiba ao promotor fazer acusação, ao advogado de defesa ou defensor defender o acusado, e ao juiz conduzir o procedimento com suas múltiplas fases, no final, o julgamento é feito pelo corpo de jurados, o conselho de sentença. Que é formado por cidadãos.
Após o levantamento, informa a promotora, os próximos passos são na direção do acompanhamento dos casos. “Monitorando todos esses processos, exigindo a investigação dos outros 28% que ainda precisam ser investigados. Desses, existem alguns que estão foragidos. Vamos fazer um monitoramento para exigir a prisão desses autores com prisão em aberto.”
Habkouk destaca também que a pesquisa foi um trabalho artesanal. “Fui olhando um por um, é muito trabalhoso. Precisamos fazer a compatibilização dos sistemas. Eles têm que ser compatíveis, o da Polícia Civil com o MP, o TJ. Para que possamos levantar esses dados de uma maneira mais rápida e eficaz”, defende.
“Além disso, temos que seguir firmes na construção e efetivação de políticas públicas específicas para mudar esse cenário. Chamei a pesquisa de cenário porque estamos vendo uma realidade, mas essa realidade tem que mudar. Temos que evitar as mortes violentas de mulheres e precisamos pensar no estado como um todo. E isso não é possível só com a atuação do Ministério Público. Aliás, essas respostas de punição, de responsabilização, são fruto do trabalho integrado da Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público e Tribunal de Justiça”, completa.
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A promotora lembra de casos de feminicídio que chocaram a sociedade recentemente. Como o da jovem Vitória Alves da Silva, de 22 anos, morta pelo ex-namorado Wallef César Oliveira Gonçalves, de 27, na Avenida Presidente Antônio Carlos, Região da Pampulha, em 7 de agosto.
“Precisamos dizer que não estamos tolerando mais isso. Estamos, de fato, agindo rápido para prender (os autores dos crimes). Mas o que queremos é que as mulheres não morram. Precisamos monitorar, construir e aperfeiçoar todas as políticas públicas.”
Ela ressalta que esse também é um dos objetivos da pesquisa. “Trabalhar em rede, construir ações com a bancada feminina da Assembleia Legislativa, a Sedese (Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais), as polícias, o Tribunal de Justiça e os demais órgãos da rede, como Defensoria Pública e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Temos que trabalhar de forma integrada. Violência doméstica é muito complexa. Não se resolve com uma única instituição nem com uma única intervenção. Não somos indiferentes a esse fenômeno e precisamos dar respostas integrais.
CONSCIENTIZAÇÃO
O Dia Estadual de Combate ao Feminicídio foi criado por lei para lembrar a servidora do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) Lílian Hermógenes da Silva, morta em 23 de agosto de 2016 a mando do ex-marido dela, Artur Campos Resende. Em setembro de 2022, ele foi condenado a 24 anos de prisão pelo crime.
Lílian foi morta a tiros por uma dupla em uma moto, quando saía de casa, no Bairro Industrial, em Contagem, na Grande BH. Os autores levaram a bolsa da vítima para simular um crime de latrocínio. Ela tinha 44 anos e deixou dois filhos.
Patrícia Habkouk acredita que a punição aos agressores, principalmente no Tribunal do Júri, está relacionada a uma conscientização maior da sociedade do que é o feminicídio. “O reconhecimento de que nada justifica a morte, de que esse não é um problema só das mulheres, mas da sociedade inteira. Todos nós temos o dever de lutar para evitar o feminicídio. Acho que é uma consciência coletiva.”
QUEDA DE CASOS
Levantamento divulgado pelo governo de Minas ontem (22/8) aponta que os feminicídios tiveram redução de 20,8% de janeiro a julho deste ano na comparação com o mesmo período do ano passado. Foram 80 mortes contra as 101 registradas nos sete primeiros meses de 2023. No mesmo período de 2022 foram 104. Há ligeira redução nos casos de violência doméstica em geral, no estado. São 600 registros de violência contra a mulher a menos nos sete primeiros meses, uma redução de 0,7% (87.195 para 86.595). n