Nayara Pereira começou a cozinhar aos 7 anos e adotou o talento como profissão -  (crédito: Divulgação)

Nayara Pereira começou a cozinhar aos 7 anos e adotou o talento como profissão

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A Expo Favela começa nesta sexta-feira (13/9) em Belo Horizonte. Pela segunda vez, o evento desembarca na capital mineira para reverenciar a potência de empreendedores negros e periféricos de todo o Brasil. Serão dois dias de feira e 64 expositores de áreas como artesanato, moda, tecnologia e gastronomia. Nessa vastidão de nomes e trabalhos, o Estado de Minas conta quatro histórias de superação, criatividade e resistência.

 

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Artesã de sonhos e renda

“Ofereci a bolsa de crochê que fazia para uma empreendedora que estava na casa do meu patrão. Ela adorou e me perguntou se eu trabalhava fazendo outros tipos de bolsas. Nesse momento, ela me disse que eu era uma empreendedora. Eu neguei, disse que era apenas CLT e fazia crochê.” O relato é da empresária Eilaina Dak da Silva, de 56 anos, moradora do Jardim Alvorada, na Região Noroeste da cidade, que demorou a se reconhecer como dona do próprio negócio no início de sua história, sensação comum entre a parcela da população que se torna empreendedora por necessidade de aumentar a renda, por exemplo.  

 

A origem do seu trabalho remonta à sua infância. Nascida e criada em uma família numerosa, Eilaina enfrentou desafios desde cedo. Aos 10 anos, o pai saiu de casa, e sua mãe, costureira, foi quem assumiu a responsabilidade de criar os oito filhos. “Minha mãe nos chamou para uma conversa e disse que não tinha condições de nos manter na escola. Concluí até a 4ª série e parei de estudar. Naquela época, as mulheres eram prendadas, e os homens estudavam”, relembra. Foi quando a mãe a questionou se ela gostaria de aprender o crochê, e ela aceitou.

 

 

Aos 21 anos, a empresária, grávida dos filhos gêmeos, se viu impossibilitada de trabalhar fora. Foi então que começou a fazer “bicos” para uma boutique, produzindo peças em crochê. A empresária diz que seu talento surgiu como uma profissão, e a ajudou nos momentos difíceis como fonte de renda e sustentação para seus três filhos, os quais ela criou sozinha. “A partir disso, fui criando um amor pelo meu trabalho, aprimorando e aprendendo novas técnicas. Comecei a fazer sousplat (suporte para pratos), e os vendia no boca a boca, foi a forma que encontrei, já que não havia redes sociais”, recorda. 

 

Eilaina da Silva, de 56 anos, aprendeu o ofício de artesã desde a infância

Eilaina da Silva, de 56 anos, aprendeu o ofício de artesã desde a infância

Divulgação

 

 

O divisor de águas de sua trajetória foi a criação da bolsa de crochê. “Há um ano, inventei de fazer essa bolsa, e comecei a oferecer para as minhas amigas”, diz Eilaina. A empresária então, ofereceu o artesanato na casa de seu chefe. Lá estava uma mulher que afirmou que Eilaina era uma empreendedora e a convidou para o “Fórum Marianas - Mulheres que Inspiram", evento de empreendedorismo feminino da cidade histórica, na Região Central de Minas Gerais. 


“Houve uma virada de chave na minha mente. Vi as pessoas contando como começaram a empreender, o que elas passaram durante o processo, e revivi a minha história. Foi o que minha mãe pôde fazer por mim que me ajudou a construir uma história”, enfatiza. A partir daí, novos convites surgiram, inclusive para expor seus produtos na 1ª edição da Expo Favela.

 

Cada peça que Eilaina cria carrega um pouco do que viveu. “Quando estou tecendo, minha mente viaja. Fico imaginando quem vai usar aquela bolsa, para onde ela vai. É um sentimento muito especial.” Trabalhando há 11 anos como CLT, a empreendedora faz o crochê não importa onde esteja. “Faço dentro do ônibus e quando eu chego em casa. Saio às 6h40 e volto às 17h todos os dias, mas não perco tempo, em todo o lugar as linhas e agulhas sempre me acompanham”, destaca. 

 

Aos 56 anos, a empresária se prepara novamente para a feira. “Eu não vou lá para vender, vou para aprender, para me conectar com outras pessoas”, diz Eilaina, que sonha em viver da sua arte, e por meio dela conseguir montar o próprio ateliê.

  

 

Favela é moda!

Entre becos e vielas do Aglomerado da Serra, na Região Centro-Sul, há uma loja que transmite a essência da favela através de peças de roupa. Nascido e criado nas ruas movimentadas e pulsantes do maior complexo da capital mineira, Willian Pedro, 37 anos, construiu seu negócio a partir de uma paixão pessoal por moda e estilo. 

 

“Eu sempre saía para as baladas de BH e região, então, de duas a três vezes por semana, eu tinha que estar com alguma roupa nova para sair”, conta ele. Nessa época, conheceu sua esposa, que o elogiou pelo estilo e o encorajou a vender roupas. Ele se uniu a um amigo e começou a buscar as peças no Brás, em Goiânia, e com fornecedores de fora. Mas, em um ano, o mercado paralelo de roupas ilegítimas ficou muito forte. “Ficamos presos em ter um produto de qualidade e original, para as pessoas aparecerem com uma réplica idêntica por um preço reduzido”, explica Willian. 

 

A dupla decidiu então criar algo único. "Montamos uma logo com a primeira letra do meu nome, W. Fiz uma blusa de frio branca para mim e postei nas redes sociais. Um amigo viu e perguntou se eu tinha uma para vender.” A primeira peça da Dabliu, despretensiosa, deu início a algo muito maior. Logo, várias pessoas começaram a pedir as blusas personalizadas com o logo de Willian. 

 

Com o crescimento da demanda, o empreendedor decidiu criar embalagens e adesivos, que eram espalhados em pontos estratégicos da cidade — rodoviária, pontos de ônibus e bairros ao redor do aglomerado. O marketing funcionou, e o nome começou a circular. Em 2019, eles lançaram a primeira regata branca da marca. “Para movimentar as redes sociais, pedi que vários amigos fizessem fotos para divulgar, mas, na verdade, eram apenas seis regatas”, comenta.

 

Willian Pedro abriu uma loja de roupas femininas e masculinas no Aglomerado da Serra

Willian Pedro abriu uma loja de roupas femininas e masculinas no Aglomerado da Serra

Divulgação

 

Dois anos após a pandemia, a “Dabliu” ganhou uma casa nova. A loja física funciona no Aglomerado da Serra, mas também atende on-line. Hoje, Willian conta com uma equipe de sete pessoas, todas envolvidas no processo criativo. "Nós mesmos desenhamos as peças, escolhemos tecidos e estampas. Somos nossos próprios modelos e cuidamos das fotos e vídeos de divulgação", afirma. 

 

A marca local, já conecta a periferia com outros patamares de moda urbana, e também se destaca pela colaboração com grandes nomes da cena musical de Belo Horizonte. “Fizemos uniformes para a turnê do rapper Djonga, e participamos da coleção do MC Anjim. A ideia é fazer com que a população da favela tenha a mesma qualidade de grifes famosas por um preço acessível, como consequência alcançamos o público de classes mais altas”, declara Willian, que almeja expandir seu negócio para todas as regionais de BH.

 

 

A culinária como cura

Um diferencial desta edição da feira é o Palco Gastronomia, que contará com cinco expositores. Dentre eles, está Nayara Cristina Pereira, de 29 anos. Natural de Cristina, no Sul do estado, a chef de cozinha é neta e filha de cozinheiras. “Quando eu tinha 7 anos, minha mãe e minha avó me levaram para a cozinha e eu me apaixonei. No entanto, na adolescência o que eu queria mesmo era fazer medicina”, pontua.

 

No entanto, o destino tinha outros planos. Depois de inúmeras tentativas frustradas no vestibular de medicina, Nayara decidiu se inscrever em gastronomia, e dessa vez o resultado foi diferente. Aprovada, ela deixou sua cidade-natal e partiu para BH em busca de seu sonho. 

 

Faltando um mês para sua formatura, uma notícia dura a encontra no meio do caminho. “Minha avó faleceu. Ela era meu pilar nesse caminho. Acabei desenvolvendo um quadro de depressão”, revela. Apesar da dor da perda, a gastronomia foi seu refúgio. “Foi a cozinha que me tirou daquele estado. Quando estou desanimada, basta ir para o fogão que tudo se transforma”, reitera.

 

Nayara “mergulhou de cabeça” na culinária profissional. Teve a oportunidade de trabalhar no restaurante do Hotel Fasano e algumas casas do chef Léo Paixão. Foi quando resolveu se inscrever para a 1ª edição da feira de empreendedorismo, porém sem sucesso. Este ano, enfim, a empreendedora tentou novamente, até que recebeu uma mensagem confirmando sua seleção. “Não acreditei, achei que era golpe ou mentira e bloqueei o contato. Mas, depois de alguma insistência, vi que realmente era real.  A Expo Favela veio virar minha vida de ponta cabeça em um bom sentido, para me impulsionar”, acredita.

 

Atualmente, a chef comanda um restaurante em Ouro Preto e atua, nas horas vagas, como personal chef. “É como um chef privado. Vou até a casa das pessoas, monto cardápios personalizados e preparo as refeições da semana. Deixo tudo pronto no congelador, e eles usam conforme a necessidade. Também faço eventos, como jantares e aniversários”, descreve. 

 

 

Tecnologia para trancistas


“Nunca havia me enxergado como empreendedor. Sempre usei a ideia de empreendedorismo para executar meus trabalhos para terceiros. Nunca tive essa visão independente”, reflete Filipe dos Santos, formado em Sistemas da Informação. Aos 37 anos, ele já viveu em diferentes periferias e favelas da capital mineira. Hoje, o morador do Jardim Riacho das Pedras, em Contagem, na Região Metropolitana, finalmente reconheceu seu negócio ao participar da Expo Favela.


“Conheci a Expo Favela ano passado, em São Paulo. Tive uma experiência de coragem, porque conheci muitos projetos. Foi meu primeiro contato com a feira e pude ver muitas pessoas parecidas comigo. Ali eu vi a necessidade de colocar em prática uma série de ideias que eu já vinha fomentando”, destaca.


A partir dessa experiência, Filipe se reuniu com amigos para discutir a possibilidade de transformar seu trabalho em um empreendimento. “Penso nisso há mais de 10 anos. Mas, recentemente, eu e um dos meus sócios discutimos a ideia de criar um aplicativo para ajudar serviços, para isso era necessário atingir um nicho de forma mais impactante”, explica. 

 

Filipe dos Santos desenvolveu um sistema para ajudar mulheres trancistas

Filipe dos Santos desenvolveu um sistema para ajudar mulheres trancistas

Divulgação

 

O insight definitivo para o negócio veio de dentro de sua casa. “Há 5 anos, minha esposa se tornou trancista, e eu pude ver de perto as necessidades desses profissionais no dia a dia. Fui vendo o que elas precisam, quais os principais apoios e como a tecnologia pode ser aplicada nesse trabalho. Juntei as duas ideias”, recorda. A partir dessa convivência nasceu o projeto: um aplicativo para trancistas.


“A ideia é que o programa apoie trancistas afro brasileiros a desenvolver melhor os próprios negócios, e serem independentes. O programa vai entregar ferramentas para que as tranças sejam o seu trabalho principal, e não apenas um hobby”, reafirma. 


O trabalho ainda é recente, começou a ser aplicado em maio deste ano, mas será apresentado nesta sexta-feira (13/9) e sábado (14/9). “Para quem vem da periferia, nosso ser, nossas escolhas são resultado da necessidade. Fiquei muito feliz quando fui selecionado, era o ‘empurrão’ que precisava para fazer acontecer”, conclui o empreendedor.


 *Estagiária sob a supervisão da editora Vera Schmitz