O calor, na casa dos 32°C, não era impedimento. A idade, com mais de 81 anos, não era limitador. O tempo seco e o Sol da manhã passaram despercebidos pelo senhor dançante, um Rei do Congo animado, diante de seus súditos. A coroa pesada, o manto e cetro não eram apenas uma vestimenta em forma de fantasia. Para Márcio da Silva, Rei perpétuo da Guarda do Congo de Santo Antônio da Barra, de Pedro Leopoldo, é a forma dele reforçar a crença da tradição ancestral de seu povo e glorificar a fé: “Estou aqui só por um milagre. Venho por causa de Nossa Senhora do Rosário, foi ela que me trouxe aqui. E diante dela, agradeço as graças alcançadas. Desde abril desse ano, quase todos os domingos, acompanho e levo minha crença para festas da minha santa de devoção em várias regiões de Minas. Domingo passado, estive em Moeda e estarei onde a Senhora do Rosário me chamar”.
Neste domingo (15/9), cerca de 10 grupos de Congados e Reinados caminharam pela região da Lapinha, em Lagoa Santa – a mesma rota outrora trilhada pelo Imperador Dom Pedro II, quando visitou Minas Gerais, em 1881. Pelas ruas do antigo quilombo mineiro, pequenos grupos da região de Pedro Leopoldo, Matozinhos, Fidalgo, Mocambeiro, São José da Lapa, Santa Luzia e Vespasiano celebraram a irmandade do povo negro, com sua ancestralidade, suas tradições, cânticos e devoção. À frente deles, estandartes com os santos pretos de devoção – Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito. A região, onde se encontra a Gruta da Lapinha, também foi visitada por Dom Pedro II em sua visita a Minas Gerais.
Festa de Reis e Rainhas
As fitas coloridas no arranjo de cabeça dançam ao sabor do vento. O som do chocalho nos pés dos integrantes da Guarda de Moçambique é ouvido de longe. Os espelhos adornados nas roupas dos devotos refletem o brilho do evento. Pelo caminho, Reis e Rainhas serão reverenciados por sua corte e adoradores. Abaixo de suas coroas e abraçados por seus mantos, Márcios, Josés, Marias, Anas, Joãos, Pedros fazem parte de uma gente humilde, simples moradores de diversas comunidades, que se engrandece ao reafirmar o legado de seus antepassados – o Congado vive e permanecerá eterno na alma e na crença de quem tem fé. E novamente, a realeza teve um encontro marcado neste final de semana na comunidade da Lapinha.
O domingo festivo encerra a quinzena de Nossa Senhora do Rosário da Lapinha. Há 50 anos, a comunidade se reúne todos os anos, em louvor à santa de devoção de mesmo nome. A festa religiosa católica, com a presença de mais de 500 pessoas, entre integrantes das guardas e visitantes, tem o sincretismo com as religiões de matriz africanas com a presença de tambores, chocalhos, chique-chique, violas em suas comemorações. “É uma festa dançante, com muita música e cor. Uma traição que se renova a cada ano e que não podemos deixar se perder”, admira a Rainha Eugênia Miranda, da Guarda do Congo Guarda do Congo de Santo Antônio da Barra, de Pedro Leopoldo.
Voluntários da fé
Na cozinha montada ao lado da Capela de Nossa Senhora do Rosário, um batalhão de voluntários estava preparando o almoço festivo. São moradores da região da Lapinha que trabalhavam arduamente na preparação do banquete para a corte real e seus súditos. À frente desse exército de carinho, Elizabete Soares da Cruz, uma das integrantes da Rota das Doceiras, comandava o cardápio. “Este almoço só acontece graças às doações de moradores de Lagoa Santa e região. Para nós é um prazer receber este povo que vem de longe e saber que o alimento é fruto do carinho de tanta gente. É a dádiva de Nossa Senhora do Rosário que alimenta o corpo e alma”, emociona.
E, o banquete do reis, tem números surpreendentes: “Preparamos 60 kg de feijão, 60 kg de arroz, 300 kg de frango, 80 kg de macarrão e 40 kg de maionese para que todos possam sair daqui bem alimentados. O que sobre, distribuímos quentinhas para os moradores da comunidade da lapinhas”, alegra João do Carmo Paulino, cozinheiro que há 18 anos prepara os almoços nas festividades de Nossa Senhora do Rosário.
História do Congado no Brasil
De origem africana, das áreas do Congo, Moçambique e Angola, o congado chegou ao Brasil com os escravos e passou a ser também uma manifestação católica. Acredita-se que a história do congado em Minas Gerais começou com a vinda de Chico Rei, que era rei no Congo, na África, e veio para o Brasil na metade do século 18 e virou escravo na antiga Vila Rica. Ele conseguiu comprar sua liberdade e a de outros conterrâneos com seu trabalho e voltou a ser "rei" na então Ouro Preto. De acordo com Márcia Basílio, Rainha do Povo na comunidade da Quinta do Sumidouro, a Capela de Nossa Rosário foi construída por descendentes do rei escravizado: “todo mundo vai falar que são parentes de Chico Rei”, porque é uma origem ancestral. O conceito de família para os africanos é diferente do nosso, não é o sanguíneo, é a representação de todo um povo”.
O Congado ou Congada é uma manifestação cultural e religiosa afro-brasileira que surgiu no continente africano e foi introduzida no Brasil com a chegada dos primeiros escravos. É uma mistura de tradições africanas e católicas, considerada uma das mais autênticas expressões da brasilidade. A congada é um bailado dramático com canto e música que recria a coroação de um rei do Congo, terminando em uma procissão até uma igreja, geralmente de irmandades de negros, onde acontece a cerimônia de coroação. É uma homenagem aos antepassados, aos reis, às divindades e aos anciãos, animada por danças, cantos e música, realizada em diversas regiões do país, especialmente na região Sudeste.
Ouro Preto prepara para o mês de outubro uma extensa agenda de festas de Congado e Reinado na sede do município e nos distritos. A cidade mineira foi pioneira em Minas em promover a Congada e Chico Rei – enquanto ex-escravizado e morador da antiga Vila Rica–, promoveu a festa religiosa.
Patrimônio mineiro
Agora não terá mais empecilho: o Congado, Candombe e Guardas de Moçambique não poderão ser impedidos de entrar, rezar e celebrar a fé nas igrejas católicas de Minas Gerais. No final do mês passado, Congados e Reinados foram reconhecidos como Patrimônio Cultural Imaterial de Minas Gerais. Leônidas de Oliveira, secretário de Cultura e Turismo de Minas, ressaltou na cerimônia no Palácio da Liberdade que preservar as culturas populares e tradicionais do estado de forma ampla, técnica e livre, tem sido meta do governo de Minas, por meio do Iepha-MG. Para ele, a criação do programa Afromineiridades contempla expressões culturais mineiras como congadas, capoeira, terreiros, hip hop e samba.
"O programa faz a catalogação e inventariação dessas manifestações da cultura afromineira e afrobrasileira. As congadas e reinados de Nossa Senhora do Rosário existem desde os primórdios da formação cultural de Minas Gerais e representam a raiz profunda da existência enquanto estado. Considerados patrimônio imaterial, o primeiro registro no âmbito desse programa, ficam protegidos pela força e amparo da lei, construindo-se como bem cultural de Minas Gerais. Abre caminho para que as demais expressões, no conjunto das manifestações da cultura afromineira, sejam protegidas como patrimônio ao longo dos próximos anos", reforça o secretário.