O cerrado, que ocupa a maior parte do território mineiro, é um bioma com a marca da resistência. Assim como as espécies que o habitam, aqueles que primeiro ocuparam essas terras tiveram de aprender a sobreviver entre secas extensas e chuvas intensas, condições das duas estações do ano tão bem marcadas na “savana brasileira”. Mas, ao longo dos anos, com o avanço da ocupação humana e de tecnologias que tornaram possível ao agronegócio superar o desafio da água restrita e do solo ácido e com nutrientes pouco acessíveis, a convivência entre homem e ecossistema tornou-se cada vez mais conflituosa. Ao ponto de, hoje, as ações humanas ameaçarem a sobrevivência de várias espécies e o próprio equilíbrio do conjunto.
Uma realidade constatada pela equipe de reportagem do Estado de Minas ao acompanhar por dois dias uma expedição do projeto Plano de Ação Territorial (PAT) Espinhaço Mineiro até a região de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, em busca de três espécies de vegetação que existem apenas naquele pequeno recorte do cerrado, localizado nos chamados campos rupestres.
As características particulares desse conjunto fazem com que muitos pesquisadores defendam sua separação como um bioma em si. Porém, antes que essa discussão possa dar resultado, o ecossistema corre o risco de ter parte da sua flora extinta sem que seja sequer estudada. E um dos inimigos críticos para isso avança sem controle este ano pelo mapa de Minas: o fogo.
As plantas estudadas pelos pesquisadores do PAT têm características únicas e forma de preservação ainda desconhecida, e correm sérios riscos de serem extintas devido à ação humana. Na tentativa de preservá-las, biólogos e pesquisadores têm trabalhado para identificar e estudar espécies “criticamente em perigo”, último estágio antes da extinção.
É um esforço para preservar representantes da biodiversidade extremamente rica do cerrado – desenvolvida em grande parte devido ao processo evolutivo pelo qual espécies tiveram de passar para se adaptar e sobreviver. E esse triunfo do bioma, que o faz tão encantador, hoje se encontra ameaçado não apenas pelos incêndios florestais, que se tornaram especialmente críticos nos últimos meses, mas também pela criação de gado, pelas monoculturas e pela mineração.
Biodiversidade nas alturas
Os campos rupestres, estudados pelos pesquisadores mineiros na Serra do Espinhaço, não se restringem ao cerrado. O ecossistema se espalha por 16 estados e cinco dos seis grandes biomas brasileiros – a única exceção é o pampa. Estima-se que os campos rupestres abriguem 15% da flora nativa do país, apesar de abrangerem menos de 1% do território brasileiro.
Adaptação e riqueza
A extensão da área estudada no PAT Espinhaço Mineiro faz parte dos campos rupestres, uma fitofisionomia do cerrado. Em linhas gerais, é como se fosse um bioma dentro de outro bioma, localizado em áreas de cerrado entre 900 e 1.500 metros de altitude. Essa adaptação a áreas elevadas faz com que os campos rupestres apresentem uma biodiversidade ainda mais restrita. Outra razão para essa particularidade está no solo rochoso, o que dificulta a penetração de sementes na terra.
O biólogo Carlos Alberto Ferreira Júnior, especialista em taxonomia, atribui aos campos rupestres a característica de heterogêneos, por apresentarem vários ambientes dentro de si.
"Tem ambientes mais úmidos, outros mais ensolarados e mais secos. Alguns muito mais iluminados do que uma área de mata, por exemplo. Isso faz com que a diversidade de vegetação seja muito alta."
Carlos Alberto Ferreira Júnior, biológo especialista em taxonomia
Pesquisa e proteção
Os trabalhos do PAT Espinhaço Mineiro, desenvolvidos por estudiosos como Carlos Alberto, são voltados para a cordilheira que se estende da Chapada Diamantina, na Bahia, até próximo a Ouro Preto, na Região Central de Minas. O ciclo do projeto, em resumo, inicia-se na prospecção, na qual pesquisadores buscam em expedições novas populações das espécies-alvo. Em seguida, é feita a coleta de amostras de frutos e de sementes, que são enviadas para o Jardim Botânico de Belo Horizonte e passam por tentativas de germinação para gerar novas unidades. Depois, os exemplares encontrados em campo seguem sendo monitorados in loco.
"Nesse projeto, nós enriquecemos nossas coleções vivas com exemplares das espécies ameaçadas. É de fundamental importância a gente conciliar essa conservação in situ – onde as espécies estão ocorrendo –, mas também ter essa conservação ex situ, no Jardim Botânico."
Juliana Ordones Rego, bióloga, doutora em ecologia e integrante do PAT Espinhaço Mineiro
Uma das espécies acompanhadas pelo projeto, a Barbacenia pungens, é microendêmica, o que significa que está espalhada em uma região muito pequena. Nesse caso, foram encontradas exemplares em apenas três paredões de rocha no distrito de Guinda, em Diamantina. Os locais onde os espécimes se estabeleceram dão dicas de como funciona seu metabolismo e o caminho percorrido no processo evolutivo para sobreviver ao ambiente.
Os exemplares foram identificados em meio às pedras dos paredões, em localização onde apenas o sol poente incide diretamente – e por um curto espaço de tempo. A preferência da espécie por esses locais indica uma adaptação ao sol escaldante do bioma. Outra característica que a planta desenvolveu para se proteger são espinhos por toda a sua estrutura, o que evita ser alvo de animais.
"Isso faz com que seja menos palatável. Além disso, ela tem bastante tricoma nas folhas, que são pelos, o que diminui a palatabilidade."
Carlos Alberto, biólogo
Um encontro com o inimigo
Durante a expedição, pesquisadores do PAT Espinhaço se depararam com uma infeliz surpresa ao visitarem uma das espécies-alvo em Três Barras da Estrada Real, distrito do município do Serro, no Vale do Jequitinhonha. Um grupo de Lavoisiera tetragona, um tipo de arbusto de tamanho menor, havia sido atingido por um incêndio no dia anterior. Ao redor, toda a vegetação estava tomada por tons escuros, que ainda emanavam fumaça em um lugar ou outro. Até então, os pesquisadores não tinham visto a espécie ser atingida por uma queimada – a planta está em monitoramento contínuo desde 2022.
O pesquisador Tiago Vilas Boas, doutor em biologia vegetal, explica que ainda não há estudos sobre como a Lavoisiera tetragona reage ao fogo. Contudo, tanto essa quanto outras espécies evoluíram com a presença de incêndios naturais no cerrado.
"Elas têm várias estruturas, das folhas, das raízes, dos troncos e no metabolismo, que vão ajudá-las a sobreviverem tanto à seca quanto ao fogo."
Tiago Vilas Boas, pesquisador
Essas características são destacadas pelo biólogo Carlos Alberto, que reforça a adaptação desenvolvida pela Lavoisiera tetragona aos campos rupestres e que as diferencia de outras espécies do gênero. Enquanto outras variam entre 1,5 a 3 metros de altura, essa tem em torno de 20 centímetros, o que facilita o acesso aos nutrientes do solo.
"Tem um tronco bem desenvolvido, mas sempre deitado sobre o solo. Isso é uma característica muito legal da espécie e é muito diferente dentro do gênero. Também é uma adaptação ao ambiente onde ela vive."
Carlos Alberto, biólogo
A terceira espécie-alvo dos pesquisadores também têm seus próprios mecanismos para sobreviver à aridez do cerrado. É o Diplusodon glaziovii, arbusto bem pequeno restrito ao município de Diamantina. A brotação e a produção de flores e frutos da espécie ocorrem no período chuvoso, diferentemente de outras plantas do mesmo grupo, que florescem e frutificam no período seco.
"Essa característica faz com que o Diplusodon glaziovii atraia maior polinização, já que nessa época os polinizadores têm menos recursos. E o fruto sendo seco também diminui a predação pelos animais."
Carlos Alberto, biólogo
Ciclos desajustados
Quem faz o acompanhamento mensal das espécies-alvo do PAT Espinhaço Mineiro é o estudante de ciências biológicas Lynniker Júnior Brandão, da Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Sua participação no projeto inclui fazer a contagem de botões, flores e frutos de amostras selecionadas para saber se a reprodução das plantas está condizente com a época do ano e com o clima, estudo chamado de fenologia.
Lynniker conta que este ano os ciclos de algumas plantas estão desajustados, com a floração atrasada, por exemplo. A explicação para esse fenômeno pode estar no longo período de seca que Minas Gerais enfrenta, além da incidência de incêndios em vegetação.
"Este ano está bem crítico e isso com certeza vai ser bastante prejudicial no futuro. Muita planta morreu. Muita planta não vai se recuperar desses incêndios e é uma grande perda para a flora brasileira e, principalmente, daqui da Serra do Espinhaço."
Lynniker Júnior Brandão, estudante de ciências biológicas
As marcas dos incêndios são visíveis por toda a região de Diamantina. Nos dois dias que a reportagem percorreu estradas vicinais em direção às espécies estudadas, foram avistados inúmeros focos de incêndio e extensas áreas tomadas por cinzas.
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Esforço de preservação
Além das queimadas, as espécies sob risco de extinção que são alvo da pesquisa enfrentam outras ameaças, como mineração, desmatamento, trilhas feitas por motociclistas e pisoteio pelo gado. Na tentativa de preservar as espécies, os pesquisadores recolhem sementes e frutos para serem estudados na Fundação Zoobotânica de Belo Horizonte.
Em um primeiro momento, as sementes são colocadas em incubadoras com controle de luz e temperatura, etapa que serve para estudar as condições ideais para sua germinação. Em seguida, vão para a parte de coleções vivas, onde são plantadas – nem sempre com sucesso.
"É fácil cultivar uma rosa, mas plantas que ninguém cultiva e que se tem pouco conhecimento é mais difícil."
Carlos Alberto, biólogo
Uma amostra de cada espécie também é enviada para a Zoobotânica após ser prensada e totalmente seca. O exemplar é armazenado no herbário da instituição, que conta com 15 mil espécimes de todo o mundo, explica a bióloga Juliana Ordones. “É um registro eterno da planta”, pontua. (Os repórteres viajaram a convite do IEF-MG)
Todos contra a extinção
O PAT Espinhaço Mineiro, que estuda espécies da flora criticamente ameaçadas em campos rupestres do cerrado, é coordenado pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF-MG) e faz parte da iniciativa “Pró-Espécies: Todos contra a extinção”, projeto financiado pelo Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF), coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e implementado pelo Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), sendo o WWF-Brasil a agência executora.