Paracatu – Ildeu com “i” e Novaes com “e”. Com a voz pausada e a paciência de quem já viu de quase tudo – e sabe que não adianta correr demais, pois cansa –, Ildeu Novaes Pinto faz questão das vogais corretas no nome, como um bom cidadão brasileiro, ao pé da letra. Aos 99 anos, o morador do Centro Histórico de Paracatu, na Região Noroeste de Minas Gerais, mantém o corpo aprumado e não larga mão do trabalho. Servidor federal aposentado, faz artesanato e se dedica ao serviço de restauração de peças sacras... Isso quando não é dia de badalar o sino da Matriz Catedral de Santo Antônio.
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Essa atividade é cumprida religiosamente aos domingos, às 8h, chamando o povo para a missa, ofício que começou há quase três décadas, na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, atualmente interditada. “Você não imagina o jeito da escada que leva ao sino. É assim, ó!”, observa o simpático senhor, enquanto espalma a mão direita quase na vertical, para reproduzir o formato da escadaria no interior do templo do século 18. A oração é outro momento fundamental na vida dele. “Rezo diariamente, uma hora e meia de manhã, e o mesmo tanto à tarde.”
Ao chegar à casa de Ildeu, o repórter tem a exata impressão de ter atravessado um túnel do tempo. É que ela fica bem na esquina do Beco de Seu Candinho, hoje chamado Beco do Ranulfo, uma via em direção ao Largo do Rosário. Com calçamento de pedra dos tempos da Vila de Paracatu do Príncipe, o caminho ladeado pelo casario colonial ajuda o senhor a recordar a juventude e encher o peito de esperança com os ares da atualidade.
“O mundo mudou, principalmente Paracatu, que cresceu demais. Gosto de lembrar da época de criança. Mas confesso que não tive infância, comecei a trabalhar muito cedo”, conta o mineiro quase centenário – o aniversário, para o qual planeja uma festa em família, será em 14 de março. “Estou engordando o boi para a comemoração”, avisa, com um sorriso e um convite.
“E por que o senhor não teve infância?” Segurando agora uma foto em preto e branco, datada da primeira metade do século passado, da cidade onde nasceu e cresceu, Ildeu diz que começou a trabalhar aos 7 anos de idade. “Meu dia era assim: de manhã, ia para a escola (hoje Escola Estadual Afonso Arinos), depois vinha para casa almoçar. Logo em seguida, ia ‘tirar ouro’ nos córregos da região, principalmente no Córrego Rico. Aqui em Paracatu sempre teve muito ouro, viu?”
ARTE PLENA
Seu Ildeu não perde o foco na pintura, e informa que tem nas tarefas de restauro e artesanato a parceria da filha Cláudia, dona de um ateliê (Rainha do Céu) ao lado da casa, na Rua Samuel Rocha. Cláudia completa a informação caminhando até a varanda, onde mostra algumas das peças feitas à mão pela dupla: quadros, porta-chaves, imagens, colheres de pau, casas de passarinho, porta-guardanapos e outros.
O pai se orgulha da produção e presenteia o repórter com uma pequena imagem de São Benedito, santo de grande devoção na cidade e padroeiro das cozinhas. Perto dali, se encontra outro motivo de orgulho da família: emoldurada, está a Moção de Regozijo, outorgada a ele pela Câmara Municipal de Paracatu, em 17 de novembro do ano passado, “em reconhecimento à contribuição social à comunidade paracatuense”.
A manhã ensolarada entusiasma o mineiro a contar histórias que ajudaram a formar o personagem reconhecido na cidade. “Minha mãe, Joviana, era muito enérgica e exigente, então queria me ver empregado. Eu só tinha o curso primário e, assim, fui trabalhar no comércio, na Casa Crioulo, de cereais e ferragens, onde depois foi o Automóvel Clube de Paracatu, e hoje é a Casa Paracatu”, diz, referindo-se ao que se tornou um equipamento cultural do município.
Quando termina a frase, o artesão e sineiro pede ao neto que o visita, Tobias, engenheiro ambiental, para buscar uma pasta no quarto. Ele volta num segundo e entrega o objeto ao avô, que retira um outro documento importante da sua vida. Em letra muito bem-feita, sobre o papel já amarelado, dona Joviana registrou, em 1939, todas as compras que o filho fazia com o dinheiro do salário. “Minha mãe tinha muito cuidado comigo”, observa com os olhos iluminados pela emoção.
NA ESTRADA
Passado o período de trabalho no comércio, Ildeu achou que era hora de correr mundo. Da lida num sítio, vendendo gado, comprou um caminhão e decidiu conhecer o Brasil de ponta a ponta. Como Paracatu fica a 250 quilômetros de Brasília (DF), foi na construção da futura capital federal que encontrou muito trabalho, em meados da década de 1950.
“Vi, muitas vezes, o presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) e Israel Pinheiro (1896-1973, engenheiro, autoridade responsável pela construção de Brasília e seu primeiro prefeito), conversando nas ruas poeirentas. E fui à inauguração da nova capital do Brasil”, ressalta, orgulhoso.
Naquela época, as estradas eram “puro chão”, mas Ildeu não vacilava. Seguia firme com o caminhão, já um modelo mais novo, pelas vias de Minas. “Costumava ir de Paracatu a Belo Horizonte (distante 500 quilômetros), dormia em São Gotardo (Alto Paranaíba), atravessava a Serra da Saudade. Enfim, rodei no nosso estado e em outros cantos do país”, relembra.
RETRATOS
Da pasta de documentos, o artesão tira retratos do início da construção de Brasília, ainda um grande canteiro de obras, com projeto de autoria do arquiteto e urbanista Lúcio Costa (1902-1998). As fotos remetem também ao seu casamento, em 1958, dois anos antes da inauguração da capital federal, com dona Eunice de Lourdes Santos Pintos, falecida no ano passado, aos 85 anos.
Da união, nasceram seis filhos, e, para alegria de Ildeu, vieram sete netos e dois bisnetos. Ao falar sobre a família, ele recebe o abraço de mais uma filha que chega, a Maria Antônia, pronta para elogiar a disposição do papai.
Dando por encerrada a vida ao volante, o paracatuense entrou para a área de saúde no governo federal, com atuação na Campanha de Erradicação da Malária (CEM), chegando a chefe do distrito da CEM em Paracatu. “Trabalhei até os 70 anos, também no combate à doença de Chagas e leishmaniose”, diz o aposentado, que de aposentado não tem nada. “Sempre gostei de trabalhar, de conversar com as pessoas, de viver. O segredo da vida está no trabalho e na fé.”
“BEM-BEM”
A vida de sineiro começou de forma curiosa, há quase 30 anos há quase 30 anos, na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, atualmente interditada devido a problemas na cobertura. Conta Ildeu: “Havia na igreja dois sinos, que ficaram paralisados por vários anos. Numa festa de São Benedito, resolvi subir a escadaria que vai até a torre, e pensei: e eu que vou tocar o sino! Chegando lá, comecei a badalar. Naquele momento, me lembrei de um antigo zelador do templo, que tocava o sino, Gustavinho Bem-bem”.
Com essa memória, Ildeu, então com 70 anos, começou a tocar o som da sua lembrança: “Gustavinho bem... Bem... Bão! Gustavinho bem... Bem... Bão!”. E, assim, faz até hoje na catedral, aos domingos.