O olhar fixo nas chamas analisa caminhos pelo matagal para enfrentar o fogo, mas procura também rotas para escapar de um dos maiores temores de quem combate incêndios florestais: os ventos voltando as labaredas contra os combatentes. Enquanto faz o raciocínio estratégico, o deslocamento por trilhas espremidas carregando 30 quilos de equipamentos e água segue aos tropeços e escorregões. Até que um impacto na perna lembra ao militar de outros perigos que espreitam o combate aos incêndios por bombeiros e brigadistas.
“Estava passando e a serpente deu um bote na minha perna. Como estava com o roupão (uniforme de combate a incêndio com tecido grosso e resistente a chamas), acabei não sendo ofendido. A gente sempre tem esses encontros-surpresa com animais peçonhentos”, relata o sargento Diogo dos Santos Ramos de Carvalho, de 43 anos, do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais (CBMMG), destacado em diversos incêndios nesta intensa temporada de 2024, como no Parque Estadual da Serra do Rola-Moça e na Serra da Moeda.
Na mata fechada, até o ruído dos sopradores a gasolina – equipamento que lança ar no fogo – acaba abafado. O som que predomina é o crepitar da queima da vegetação. O mato se transforma em uma paisagem homogênea de montes de cinzas fumegantes entre árvores, bambus e cipós, que perdem profundidade à medida que a copa das árvores retém a fumaça na altura dos caules. Morro abaixo, se equilibrando, o brigadista Gustavo Athayde, de 41, persegue uma linha de fogo, golpeando-a de cima para baixo com o abafador. Num momento de respiro, se vê sozinho.
“Olhei à minha volta e tudo parecia exatamente igual, sem referências. Não sabia mais onde estava. Se perder é muito fácil, por isso, é preciso ter consciência de onde estamos e como retornar. Acabei achando meu caminho. Mas, de repente, meu pé afundou nas cinzas e por pouco não me feri. Um buraco de tatu estava embaixo da camada de dois palmos de cinzas. Machucar o pé poderia ser uma dolorosa retirada”, afirma o integrante da Brigada Apas (Associação de Preservação Ambiental e Social de Rio Acima e Itabirito).
As dificuldades são iguais, mas as motivações que levam esses dois combatentes a arriscar suas vidas lutando contra o fogo nos incêndios que devastam Minas Gerais são diferentes. Enquanto o bombeiro militar segue a sua missão, sendo designado para áreas diferentes e por vezes desconhecidas, o brigadista guarda uma conexão com a região onde mora e faz parte da comunidade, além de, como no caso de Athayde, ser um voluntário.
Ambos imersos em uma guerra contra o fogo, que de janeiro a 22 de setembro já se espalhou em 9.337 focos de incêndios, o sétimo pior índice do Brasil. O número é 132% superior ao mesmo período de 2023, quando foram registrados 4.010, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Nos dois dias seguintes, o número chegou a 9.508.
Nos fundos, em uma parte mais alta do seu terreno, Gustavo Athayde foi um dos primeiros a ver uma coluna de fumaça rompendo o verde das copas das árvores da Serra do Capivari, nas bordas do Parque Nacional da Serra do Gandarela, atrás da Serra do Caraça. Contudo, se tratava de uma área onde se mesclam exemplares dos biomas de Mata Atlântica e Campos Rupestres nas partes mais altas, que não enfrentava um incêndio havia décadas.
“O combate é muito diferente do Cerrado. A mata fechada e o terreno muito acidentado dificultavam o deslocamento. Outro problema é que demorou muito para termos um apoio dos bombeiros e de outras brigadas. Começamos com cinco pessoas e, no 11º dia, já eram mais de 40. Se o contrário ocorresse, os danos e o tempo de combate seriam menores”, estima Athayde, que trabalhou na coordenação do combate.
“Em 20 anos de combates e manejo de fogo, foi o maior e mais difícil incêndio que já enfrentei. Eram muitos focos, muito difusos e uns muito distantes dos outros. Queimaram mais de 900 hectares (quase 50 parques municipais Américo Reneé Gianetti, em BH) só nos 10 primeiros dias”, conta o brigadista.
“Na mata fechada é difícil se deslocar e se orientar. Os recursos acabam ficando longe e não tinha apoio aéreo capaz de fazer nada. A grande quantidade de matéria orgânica no solo queimava em labaredas altas e a fumaça ficava enclausurada. É difícil enxergar. É difícil respirar. Fora o bambu e o cipó entre as árvores, que não queimavam, mas impediam a nossa passagem. Agarravam nas bombas costais e se prendiam nos abafadores que usamos como mochilas, além de se entrelaçar até nos chicotes. Cada metro foi muito suado”, lembra.
Mesmo os atos de parar, avaliar a situação ou tentar recuperar o fôlego viraram um desafio, segundo Athayde. “O chão fica fervendo. Incandescente. Sentia o solo fumegando debaixo da bota. A gente sua desidratado. Bebe água do cantil ou da mochila, mas o desgaste físico não se resolve só com água, precisaria de isotônico para repor sais minerais”, afirma.
Uma das ações que possibilitaram a virada no combate, na Serra do Capivari, veio quando uma estratégia engenhosa foi pensada. “Lembramos de uma equipe de mateiros na (mineradora) Vale, que faz aceiros (desmate de áreas para cortar vegetação que possa ser combustível para a continuidade de um incêndio) e manutenção. Solicitei essa equipe da Vale, que é da empresa Século 21, e passaram a nos apoiar abrindo picadas para chegarmos mais perto dos focos, com menos dificuldade, e fazendo aceiros para impedir as linhas de fogo em outros locais”, conta.
DIREÇÃO DOS VENTOS
Nos incêndios que combateu nesta temporada de estiagem, o sargento Diogo dos Santos Ramos de Carvalho, do CBMMG, relata que os principais perigos foram as mudanças de direção das queimas, devido ao regime de ventos. “Já passamos muitos apuros. Mudanças de vento que nos obrigaram a procurar abrigo nas áreas já queimadas, onde não pega fogo de novo, para evitar queimaduras. Acaba que a gente sai com um ou outro ferimento leve, mas nada mais crítico. Porém, os militares são treinados. Fazemos uma reunião no início do combate ao incêndio. Escolhemos áreas previamente demarcadas para poder nos encontrar e para fugir do fogo. Orientamos também os colegas a sempre seguir por uma rota de fuga. Sempre que entramos em um combate temos de ter em mente que a qualquer momento pode ser preciso usar essa rota de fuga para a área livre do fogo”, relata o sargento.
Enquanto combate ao fogo em Minas Gerais, a família do sargento, que tem quatro filhos, fica apreensiva. “Eles me perguntam se vai ser muito perigoso. Mas tento orientá-los e deixá-los mais tranquilos. A gente ora, durante a noite. Quando vou me deslocar, me despeço de todo mundo. No quartel, também, sempre fazemos uma oração quando entramos de plantão. E quando chegamos ao local da ocorrência, oramos, principalmente se for uma questão mais complexa”, conta o sargento dos bombeiros mineiros.
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Sobre a destruição provocada pelo incêndio na Serra do Capivari, Athayde alerta sobre consequências ambientais graves. “Aqui é uma área de preservação extensa, que funciona como corredor ecológico de diversas unidades de conservação. O trânsito da fauna de pequeno a grande porte, como onças, pode ser muito prejudicado. Diversos animais perderam seus abrigos, pássaros ficaram sem ninhos. Além disso, é uma importante área de recarga de aquíferos do Rio Conceição (Bacia do Rio Doce), áreas de nascentes, muito ricas em plantas que só existem aqui como bromélias e orquídeas, além de líquens e musgos”, afirma Athayde.
“Estava passando e a serpente deu um bote na minha perna. Como estava com o roupão, acabei não sendo ofendido. A gente sempre tem esses encontros-surpresa com animais peçonhentos”
Diogo dos Santos Ramos de Carvalho
Sargento do CBMMG
“Grande quantidade de matéria orgânica no solo queimava em labaredas altas e a fumaça ficava enclausurada. É difícil enxergar. É difícil respirar”
Gustavo Athayde
Integrante da Brigada Apas