O cerrado se desenvolveu enfrentando incêndios naturais durante sua evolução. O fenômeno exigiu que, no decorrer do processo, fauna e flora se adaptassem para sobreviver ao fogo que, ao atingir a vegetação rasteira, dificulta o acesso a nutrientes disponíveis no solo. Contudo, ainda se sabe pouco sobre como as plantas reagem aos incêndios mais intensos no bioma, provocados pela ação humana e que produzem dinâmicas bem diferentes do que o fogo natural, como os que vêm ocorrendo de forma sistemática no estado este ano.

 

 

“Antigamente, o pessoal fazia queimadas numa época que não causava tantos problemas. Agora, com essas mudanças climáticas e o atraso da época chuvosa, os incêndios são mais prejudiciais”, explica Renan Cézar da Silva, biólogo e coordenador do Núcleo de Biodiversidade Regional do Jequitinhonha no Instituto Estadual de Florestas (IEF).

 

Parcela considerável dos incêndios que atingem grandes extensões de vegetação são causadas por descuidos durante queimas que deveriam ser controladas. O Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais (CBMMG) estima que aproximadamente 90% dos incêndios em vegetação são causados por ação humana, o que inclui as queimadas acidentais.

 

Já os incêndios naturais ocorrem em frequência bem menor e se concentram no início do período chuvoso. O fenômeno geralmente acontece no cerrado quando um raio atinge a vegetação seca e, consequentemente, gera faíscas. As recentes queimadas no bioma são incompatíveis com esse cenário, exatamente devido à seca prolongada, que em algumas regiões de Minas ultrapassa 150 dias.

 



 

 

Incêndios substituem as cores do cerrado pelo cinza

Edésio Ferreira/EM/D.A Press

 

Fogo moldou a diversidade

 

Os incêndios naturais e a adaptação das plantas para sobreviver às altas temperaturas foram cruciais para o desenvolvimento da biodiversidade do cerrado. Estudos apontam que o bioma convive com queimadas há cerca de 25 milhões de anos.

 

Um artigo publicado em 2008 no “Edinburgh Journal of Botany” mostrou que as plantas do bioma desenvolveram uma série de mecanismos para resistir ao fogo, como a produção de cera nos troncos e galhos, o que fornece proteção térmica aos tecidos internos. Outra adaptação é a presença de órgãos subterrâneos, também protegidos do calor.

 

Outra pesquisa publicada em 2022, feita por cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de Brasília (UnB), constatou que os incêndios do cerrado podem provocar “estresse fisiológico” nas plantas, o que leva a quedas de folhas e galhos. Também foi apontado que incêndios no cerrado e no pantanal se propagam muito mais rápido que em biomas florestais, como a amazônia e a mata atlântica.

 

Uma ferramenta do metabolismo que ajuda a resistir aos incêndios é a dormência, fenômeno no qual as plantas deixam de germinar. Devido ao período de estiagem, espécies vegetais do cerrado passam por esse processo até que cheguem as chuvas.

 

"“As plantas só brotam quando os fatores ecológicos forem propícios para isso”."
por Bernardo Machado Gontijo, professor do Instituto de Geociências da UFMG


Segundo o acadêmico, o fogo agiu como uma espécie de “peneira” durante o processo evolutivo do cerrado.

 

"“As plantas que melhor se adaptaram conseguiram resistir, como as que rebrotam mais rápido”."
por Bernardo Machado Gontijo, professor do Instituto de Geociências da UFMG

 

Um castigo mais intenso

 

A bióloga Juliana Ordones Rego, doutora em ecologia e integrante do PAT Espinhaço Mineiro, plano de ação territorial para preservação de espécies vegetais ameaçadas de extinção na região de Diamantina, explica que faltam estudos sobre o impacto dos incêndios causados pela ação humana nas plantas. O fogo não-natural é muito mais intenso e frequente, já que não é acompanhado de chuva.

 

"“Essas espécies ameaçadas não estão dentro de reservas e não se tem estudo sobre elas. Além disso, essas plantas têm uma distribuição restrita. É importante a gente conhecer um pouquinho mais para saber conservar”."
por Juliana Ordones, bióloga

 

Duas populações de Lavoisiera tetragona monitoradas pelo PAT Espinhaço Mineiro foram atingidas por incêndio pouco antes da última visita dos pesquisadores

Edésio Ferreira/EM/D.A Press

 

Costumes pioram estação do fogo

 

Ainda na região de Diamantina, duas tradições entre comunidades locais facilitaram que os incêndios se intensificassem este ano, aponta o engenheiro florestal Evandro Luiz Mendonça Machado, que também é professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Uma das práticas envolve a produção do tradicional Queijo do Serro.

 

"“O pessoal costuma pôr fogo na pastagem para que ela rebrote e o gado possa comer capim de forma mais palatável, e assim produzir mais leite”."
por Evandro Luiz, professor da UFVJM

 

 

Outra tradição está na produção de sempre-vivas, plantas com pequenas flores que recebem esse nome por resistirem ao tempo após serem colhidas e secas.

 

" “Esse ano, na série histórica, é o preço mais alto da flor. O quilo está em R$ 80 na região, sendo que no passado era R$ 20. É uma prática cultural colocar fogo para ela rebrotar e produzir a flor”."
por Evandro Luiz, professor da UFVJM

 

 

O biólogo Carlos Alberto Ferreira Júnior, integrante do PAT Espinhaço Mineiro, observa área de cerrado arrasada pelo fogo: quanto menos vegetação, mais fácil a exploração

Edésio Ferreira/EM/D.A Press

 

Queimadas por interesse econômico

 

O biólogo Carlos Alberto Ferreira Junior, integrante do PAT Espinhaço Mineiro, pontua que, para além dos agricultores, outros causadores de incêndios na região são as mineradoras.

 

"“Elas colocam fogo nas lapas para suprimir as plantas que vivem ali. Quanto menor for a biodiversidade, mais fácil é conseguir o licenciamento ambiental”."
por Carlos Alberto, biólogo

 

A extração mineral é uma das atividades econômicas mais presentes na região de Diamantina. A cidade, inclusive, recebeu o nome por ter se desenvolvido devido à extração de diamantes – chegou a ser o maior centro de extração da pedra preciosa no século 18. Atualmente, o destaque tem sido a extração de quartzito, rocha usada para fins ornamentais.

 

"“Isso torna o ambiente daqui único. A gente não tem áreas tão extensas desse tipo de rocha, dessa geologia, em outros pontos do estado, mas isso torna a vegetação muito vulnerável por conta da mineração”."
por Evandro Luiz, professor da UFVJM

 

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Em busca dos responsáveis

 

Devido à intensificação das queimadas este ano, autoridades fecharam o cerco para tentar responsabilizar autores de incêndios florestais. No começo da semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse, em reunião com representantes dos Três Poderes, que "há indícios fortes" de ação criminosa e coordenada em incêndios pelo país. A ministra do meio ambiente Marina Silva (Rede Sustentabilidade) classificou a ação como “terrorismo climático”.

 

Na sexta-feira (20/9), a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) apresentou balanço segundo o qual 91 pessoas foram indiciadas, entre janeiro e setembro, por crimes relacionados a incêndios florestais.

 

O tenente-coronel Ivan Neto, do Corpo de Bombeiros, explicou, em entrevista ao Estado de Minas em agosto deste ano, que a corporação promove curso de perícia de incêndio, para que os militares possam identificar indícios de autoria e materialidade das queimadas.

 

"“Nós pegamos esse material, acionamos a polícia que, consequentemente, vai avaliar e instaurar o devido processo para responsabilização dos autores”."
por Ivan Neto, tenente-coronel do Corpo de Bombeiros

 

De acordo com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), é proibido o uso do fogo e a prática de qualquer ato ou a omissão que possam ocasionar incêndio florestal, salvo no caso de queima controlada, que necessita de prévia autorização do órgão ambiental competente. Essa prática é adotada por várias razões, entre elas consumir a vegetação de uma área delimitada e impedir que o fogo vindo de outro lugar continue a se propagar.

 

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