Moradores de Ouro Preto, na Região Central de Minas, e defensores do conjunto histórico da primeira cidade do país reconhecida como Patrimônio Mundial (em 1980) vivem dias de apreensão. No centro das atenções, está uma caleça – meio de transporte com quatro rodas, a tração animal, do século 19 – que poderá deixar o Museu da Inconfidência, vinculado ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), para recompor o acervo do Museu Nacional, do Rio de Janeiro, alvo de um grande incêndio há oito anos e em processo de restauração.
O temor de perder o bem cultural começou após uma reunião realizada no equipamento cultural localizado na Praça Tiradentes, no Centro Histórico de Ouro Preto. Em votação, a Comissão de Aquisição e Descarte de Acervo Museológico (formada por servidores efetivos da instituição) definiu, com apenas um voto contra, sobre a cessão da peça ao Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Vozes, em tom de indignação, se levantam contra a proposta. “O Museu da Inconfidência está completando 80 anos. Não se pode deixar que saia qualquer objeto de lá. Sou totalmente contra, pois isso é muito grave, fere a História de Minas, a nossa história”, afirma o jornalista Mauro Werkema, que foi secretário Municipal de Cultura, na década de 1990, diretor local do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), cargo ocupado também em nível estadual.
Para Werkema, integrante da Associação dos Amigos do Museu da Inconfidência “desde o início, no tempo do seu diretor Rui Mourão (1929-2024), a saída da caleça (ou carruagem), a exemplo de qualquer peça, abre perigoso precedente. “O Inconfidência é intocável, não pode perder seu acervo, ainda mais cedendo peças para outro estado.” Destacando razões históricas do museu, o primeiro do país instalado fora da área litorânea, ele cita fatos marcantes em oito décadas do monumento, como a inauguração do Panteão, criado no governo de Getúlio Vargas, para o qual foram transferidos os despojos dos inconfidentes mortos no exílio na África e repatriados em 1936.
Outras pessoas ouvidas pelo Estado de Minas se mostram, além de apreensivas, igualmente indignadas, usando expressões como “ideia absurda e inconcebível” para caracterizar a iniciativa que, na forma de doação ou cessão temporária, “jamais deveria ser cogitada”, conforme disse um ouro-pretano. “Minas já perdeu muitos bens culturais ao longo do tempo, não podemos deixar mais esse sair do estado.”
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EXEMPLAR ÚNICO
Único exemplar desse tipo em Minas Gerais, a caleça foi doada em 1940 por dom Helvécio Gomes de Oliveira (1876-1960), então arcebispo de Mariana, ao Museu da Inconfidência. Sem estar atualmente exposta no Inconfidência, a peça teria pertencido a um cônego da primeira cidade de Minas.
Com 79 municípios em seu território, a Arquidiocese de Mariana, também primeira de Minas, festeja, em 2024, os 150 anos da primeira consagração ao Sagrado Coração de Jesus. “Minas tem muita história, por isso não pode ter seu conjunto histórico desfalcado. No Museu Nacional, estava “Luzia” (fóssil humano mais antigo encontrado na América do Sul, considerado o crânio da “primeira brasileira”), e, com o incêndio (2 de setembro de 2018), se transformou em fragmentos. Nosso medo é de ir e não voltar nunca mais para Ouro Preto”, observou um estudante.
A caleça esteve um período na sede do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), conhecida como Casa da Baronesa, em Ouro Preto, e retornou ao Museu da Inconfidência, onde foi restaurada, em 2021, ao custo de R$ 46 mil. Durante décadas, era peça de destaque na Sala dos Transportes ou da Caleça, espaço desmontado. Ao sair de cena, foi guardada na área da antiga loja, no primeiro andar do prédio, portanto, longe dos olhos dos visitantes.
O presidente da Associação dos Amigos do Museu da Inconfidência, professor Gabriel Geller Xavier, informa que a proposta ainda não foi apresentada à entidade fundada em 1992, e, tão logo seja possível, vai conversar com Calheiros sobre o assunto. “A associação não tem caráter deliberativo ou técnico, portanto se trata de uma decisão da direção do museu”, disse Gabriel Geller, para quem a caleça, que não se encontra exposta em Ouro Preto, poderá ter “fruição” no Museu Nacional, permitindo que as pessoas desfrutem do bem o equipamento bicentenário reabrir as portas.
SEM DECISÃO
Diretor do Museu da Inconfidência há um ano, Alex Calheiros procura “tranquilizar” a população informando não haver nada definido ainda sobre a cessão da antiga carruagem. Ele admite que a peça foi citada como um dos itens que podem ser cedidos ao Museu Nacional, a exemplo de um mapa cartográfico do Rio, do século 19, e de uma coroa do Império, feita com insetos, incluindo asas de borboletas, hoje na reserva técnica. Com as obras de restauração do Museu Nacional e perda de grande parte do acervo (maior parte dos 20 milhões de itens), o Ibram, vinculado ao Ministério da Cultura, fez uma consulta aos museus para que doem ou cedam peças a fim de ser recomposto o acervo na capital fluminense.
Calheiros diz não haver motivo para “alvoroço” sobre a cessão da caleça, que, em “estado de conservação impecável”, ocupa agora um espaço reservado a uma exposição. Segundo ele, a cessão de objetos, obras de arte e outros itens de um museu para outro, ainda mais sendo ambos da União, como nesse caso, é comum entre as instituições brasileiras.
“Aqui mesmo, no Inconfidência, há cerca de mil peças em exposição, 6 mil na reserva técnica e 500 emprestadas”, contou o diretor, lembrando que acaba de incorporar ao acervo duas peças atribuídas ao português Francisco Vieira Servas (1720-1811), entalhador e escultor que trabalhou em várias localidades mineiras no período colonial.
Citando a importância do bicentenário Museu Nacional, a mais antiga instituição científica do Brasil, e que, até setembro de 2018, era um dos maiores museus de história natural e antropologia das Américas, Calheiros ressalta que atender a esse tipo de solicitação é uma “questão de solidariedade”.
CRONOLOGIA
80 ANOS DE HISTÓRIA
1785
Em 1º de junho, o governador da Capitania de Minas, Luís da Cunha Meneses, começa a construção da
Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica, atual Ouro Preto
1862
A Casa de Câmara e Cadeia deixa o prédio, que passa a funcionar apenas como prisão
1907
Prédio sofre adaptações para se transformar em penitenciária estadual
1938
Doação do edifício à União, ato formalizado pelo Decreto-Lei 144, de 2/12/1938. Em 20 de dezembro é criado o Museu da Inconfidência pelo Decreto-Lei 965 do presidente Getúlio Vargas
1942
Em 21 de abril, é inaugurado o Panteão, para o qual são transferidos os despojos dos inconfidentes mortos no exílio na África e repatriados em dezembro de 1936
1944
Museu da Inconfidência abre as portas sob a direção do cônego Raymundo Trindade. Data lembra o bicentenário de nascimento do poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga
2006
Museu é reaberto com novos projetos museológico, feito pelo diretor Rui Mourão, e museográfico, a cargo do francês Pierre Catel
2009
Museu da Inconfidência, até então vinculado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), passa a ser ligado ao recém-criado Instituto Brasileiro de Museus (Ibram)