Os meninos e as meninas que você, caro leitor, conhecerá a partir de agora não são de poucas palavras. E, pela tenra idade, vão surpreender com tanta sensibilidade e amor à literatura. Na casa dos 8 aos 12 anos, evoluíram das primeiras letras para a tradução dos sentimentos em verso, prosa, ilustrações e histórias – tudo com uma visão bem particular de mundo.
Neste Dia das Crianças, Luísa, de 8, apresenta seus dois livros, enquanto Maria Clara, de 11, escreve o primeiro romance. Já a turma de alunos de uma escola municipal de Belo Horizonte capricha em desenhos e textos para uma publicação coletiva, em produção. Em todos, a imaginação sobressai em meio às inúmeras atividades diárias, como estudos, brincadeiras com os amigos e convívio familiar, fazendo do planeta um livro aberto, com muitas páginas em branco, para registro de descobertas, percepções e experiências.
No primeiro “capítulo” desta reportagem, é com um sorriso de boas-vindas aos seus livros, personagens e fértil universo criativo que Luísa Amorim Capua de Faria apresenta “As felicidades da vida”, de 2022, e “A fada e o mar”, recém-lançado. O primeiro nasceu sob a coordenação de uma professora quando estudava no Centro Educacional Novo Progresso (Cenp), e o segundo, igualmente coordenado por uma professora e patrocinado pelos pais, no Instituto Educacional Manoel Pinheiro (Iemp), onde estuda atualmente.
Moradora do Bairro Minaslândia, na Região Norte de Belo Horizonte, a menina de 8 anos já tem ideias para o próximo livro. Mas, por enquanto, faz segredo. E tem razão, pois ainda está curtindo as alegrias de ter escrito os dois anteriores, os quais também ilustrou. No primeiro, credita as felicidades da vida à família, composta pelos pais, a irmã Fernanda, de 14, e a avó Efigênia Rodrigues. No mais recente, narra a trajetória de uma fada que vai ao encontro de uma amiga, no mar.
CONVIVÊNCIA ENRIQUECE TEXTOS DA ESCRITORA
Fã de Maurício de Souza, famoso pelas histórias infantis em quadrinhos, principalmente a “Turma da Mônica”, a menina-escritora Luísa demonstra a cada palavra, a cada gesto, que escrever é realmente seu melhor lugar, ponto de partida e chegada. “Aprendo muito quando leio, e ‘viajo’ quando escrevo”, define.
Ao conjugar o verbo viajar na primeira pessoa, a garota faz planos. “Quero conhecer o mundo todo. E ser médica, para cuidar dos feridos, dos queimados.” Ao falar sobre a futura profissão, ela conta que, aos 5 anos, sofreu queimaduras nos pés e mãos, com água fervente do chuveiro de um hotel, durante viagem de férias a Natal (RN). Ficou 25 dias hospitalizada.
A menina não se incomoda de falar sobre o assunto, que deixou pequenas marcas na pele. Talvez, quem sabe um dia, narre toda essa história em um livro de memórias. “Minha neta é uma guerreirinha, boa em tudo o que faz, supera todas as dificuldades. E ainda escreve livros. Ela e a irmã, a família toda, são meus tesouros”, observa, com orgulho, a vovó Efigênia.
EM 11 CAPÍTULOS, AMOR À PRIMEIRA VISTA
Nas páginas do caderno de Maria Clara de Castro Faria, de 11 anos, a caneta desliza suavemente para registrar poesias, pensamentos e observações sobre o cotidiano, mas também para escrever um romance. Isso mesmo: um romance, intitulado “Amor à primeira vista”, com 11 capítulos. “Já escrevi seis”, revela a estudante do 6º ano da Escola Municipal Maria das Neves, no Bairro São Lucas, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte.
Boa nas letras e em matemática, participante de um coral e sempre presente às aulas de balé, Maria Clara se empolga ao falar de literatura e da admiração pela escritora, dramaturga e “xará” Maria Clara Machado (1921-2001), famosa pelas peças infantis, e também por Ruth Rocha, de 93 anos, autora de muitos livros para a criançada. “Adoro escrever”, declara a menina, que mora com os pais e as irmãs Isabela, de 9, e Heloisa Carolina, de 5, no Bairro Santa Efigênia, na mesma região da escola.
NAS LETRAS, PAIXÃO E MUITA AÇÃO
Ao falar sobre seu livro, que trata do romance entre jovens de 17 anos, Maria Clara avisa que a narrativa terá muita ação. E de onde veio a inspiração para a história? Pensando um segundo, a estudante responde que pode ser da harmonia familiar, como também das observações. Nascida em Campo Belo, no Centro-Oeste de Minas e residente durante grande parte da infância em Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, a menina traz na bagagem memórias dessas cidades, tanto que, no ano passado, levou parte delas para o caderno.
E onde acha tempo para escrever? “Do romance, escrevo um capítulo por dia. Geralmente, logo ao chegar da escola. Se não fizer assim, parece que as ideias fogem”, revela.
Para matar a curiosidade do repórter e do leitor, Maria Clara deixa aqui um trecho da sua “Primeira autobiografia”:
“Tudo começou em 2013, o ano em que nasci. Eu nasci em uma cidade no Sul chamada Campo Belo. Morei em Diamantina por nove anos da minha vida.
Em 2023, me mudei para Belo Horizonte. No início, eu não gostava muito daqui, pois era uma realidade bem diferente da que eu estava acostumada. O tempo foi passando e comecei a me acostumar com essa mudança.
Vi que tenho boas amizades que me ajudam em qualquer coisa que eu precisar.”
IDEIAS E DESENHOS PARA MELHORAR ESTE PLANETA
Incêndios devorando as matas. Fumaça escurecendo o céu. Lixo jogado nas ruas e nos bueiros. As inúmeras agressões ao meio ambiente preocupam as crianças, igualmente atentas ao preconceito em todas as escalas e outras questões da sociedade atual. Isso fica evidente na Escola Municipal Oswaldo Cruz, no Bairro Jardim América, na Região Oeste de BH, onde alunos das quatro turmas da 6º série, na faixa dos 11 e 12 anos, estudam esses temas, e, com muita criatividade, os traduzem em desenhos e pequenos textos. “Eles me surpreendem a todo momento”, diz, com satisfação e uma ponta de orgulho, a professora de português Marcela Fontes Nascimento, que dá aulas de reforço e atua no Clube de Leitura.
Logo ao entrar na sala do Clube de Leitura, o visitante encontra a frase “Era uma vez...”, que parece abrir um horizonte sem limites para a imaginação. Atualmente, a garotada mergulha de cabeça no projeto denominado “Teko Porã”, que, na língua indígena guarani significa “viver bem”. “Os trabalhos vão fazer parte de um livro editado pela Prefeitura de Belo Horizonte e com expectativa de lançamento no fim de novembro”, observa a professora. A atividade faz parte dos projetos Leitura em Conexões e de Intervenção Pedagógica (PIP)
Na sala, meninos e meninas estão interessados na produção do livro e já falam com intimidade sobre literatura e o ato de criar. A estudante Júlia Silva, de 12, vai fundo na questão, certa de que escrever significa “o ato de se expressar perante o mundo, transformando em palavras os sonhos que cada um tem”. Falou bonito, a exemplo de Francielle Lavínia de Souza Costa, de 11, para quem “a escrita é a revelação dos sentimentos”.
Ao lado, Arthur Emanuel Carvalho, de 11, acredita que escrever é “uma forma de libertação”, enquanto Thayana Cristina Souza de Oliveira, de 12, vê a literatura como “a oportunidade de abrir o coração para a sensibilidade”. Ray da Silva Araújo, de 11, concorda e acrescenta: “Escrever é deixar o coração falar sozinho”.
As palavras vão inundando de sons e cores o Clube de Leitura, no momento em que Thaís Oliveira Rodrigues, de 11, proclama que não há “nada melhor do que criar histórias”. Eduarda Jamilly, de 11, entende o ato de escrever livros “como uma forma de desabafar”, e Arthur Felipe Zegrini Coelho, da mesma idade, considera que, “quanto mais treino, melhor ficará o texto”.
Com 400 alunos e dois turnos do ensino fundamental, a Escola Oswaldo Cruz completa 53 anos em 2024. A maior parte dos estudantes mora em áreas de alta vulnerabilidade social, como os aglomerados Morro das Pedras e Ventosa. Nos trabalhos que vão compor os livros, meninos e meninas fizeram também cartões-postais sobre Belo Horizonte, desenhando a Igrejinha da Pampulha (Santuário Arquidiocesano São Francisco de Assis), o Pirulito (obelisco) da Praça Sete, no Centro, a Serra do Curral e outros pontos turísticos da capital.
Em um cartão-postal, com o desenho do Pirulito, Italla Ingrid Tenório dos Santos, de 12 anos, escreveu para a amiga Thaís:
“Envio esse cartão da minha cidade, para você conhecer a Praça Sete.
Como você pode ver, tem poucas árvores na Praça Sete. Vamos lutar para plantar árvores nesta cidade?”
Em outro desenho, o menino Vinicius Oliveira de Souza Inácio, de 11, alertou:
“Cuide dos mares. Não jogue plástico na praia. Não mate as baleias. Não mate os caranguejos. Não prenda os animais.”
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E no mapa do Brasil, em três cores, Richard Gabriel Pereira dos Santos, de 11, pediu respeito aos “idosos, imigrantes, surdos, gordos, PCDs (pessoas com deficiência), LGBTQIA+ e aos baianos, paulistas e cariocas”, em uma forma algo inocente, mas sincera, de fazer um apelo por tolerância à diversidade, empatia e contra qualquer espécie de discriminação. Lição de criança, que sobretudo no dia delas, precisa ser aprendida pelo mundo adulto.