Por meio do programa batizado com o nome da irmã, que morreu de forma trágica em 2005, Cláudia Starling já realizou procedimentos corretivos e estéticos em cerca de 350 vítimas de violência -  (crédito: eandro Couri/EM/D.A Press)

Por meio do programa batizado com o nome da irmã, que morreu de forma trágica em 2005, Cláudia Starling já realizou procedimentos corretivos e estéticos em cerca de 350 vítimas de violência

crédito: eandro Couri/EM/D.A Press

Um ciclo de violência, que em geral começa onde se julgava haver amor, deixa profundas feridas físicas e emocionais entre as sobreviventes. Os casos se repetem por todo lado. A cada 24 horas, 403 mulheres são vítimas de violência doméstica em Minas Gerais.

 

Somente entre janeiro e agosto deste ano, foram registradas 98.415 ocorrências do tipo no estado, segundo dados do último balanço da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). Noventa e uma vítimas terminaram assassinadas e outras 175 viram a morte de perto, mas, felizmente, conseguiram escapar com vida da tentativa de feminicídio. Para muitas, restou apenas a dor. Ajudá-las a superá-la virou missão para a criadora de um projeto social que caminha para o fechamento de parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH).


Desde 2021, a cirurgiã-dentista Cláudia Starling oferece procedimentos estéticos gratuitos no Projeto Princesa Rivânia, a fim de resgatar a autoestima de vítimas de violência doméstica. Ela já atendeu mais de 480 mulheres, sendo que cerca de 350 passaram por procedimentos corretivos e estéticos, como harmonização facial e cirurgias de reparação de nariz ou mandíbulas quebradas. O projeto oferece apoio psicológico, psiquiátrico e jurídico.

 


Para se inscrever, a vítima precisa apresentar boletim de ocorrência e um registro de medida restritiva contra o agressor. Hoje, mais de mil mulheres aguardam na fila de espera. A expectativa é que uma parceria com a PBH ajude essa fila a andar mais rápido. Segundo a PBH, o Projeto Princesa Rivânia – Sempre Viva terá duração de 12 meses e contará com serviços oferecidos em diversas regiões da cidade. O acordo de parceria passa por ajustes finais, que definirão também a data de início dos trabalhos. “O objetivo é oferecer apoio integral a mulheres em situação de vulnerabilidade, fortalecendo a autonomia delas e contribuindo na prevenção da violência”, informou a prefeitura ao Estado de Minas.


A cirurgiã-dentista criou o projeto em homenagem à irmã, Rivânia, que morreu em 2005, aos 33 anos, de forma trágica. Segundo Cláudia, o programa foi formatado depois de um sonho que teve com irmã, em que esta lhe pedia que ajudasse mulheres a se livrarem da violência de gênero. Cláudia então abraçou a ideia como sua missão de vida.

 


Segundo Cláudia, Rivânia “uma mulher linda, alegre e feliz, com formação em odontologia e direito”, tinha. um relacionamento muito conturbado com o marido e aparecia com marcas roxas pelo corpo dizendo que havia se machucado ao cair na cozinha. Ainda segundo ela, a irmã tinha decidido deixar o companheiro no dia em que morreu, de maneira trágica. “O que me falaram foi que ela pulou do décimo andar. Mas a casa estava toda quebrada, o sabonete cheio de sangue (...)”, afirma. A morte foi investigada como suicídio. Mais tarde indiciado, o marido foi inocentado pela Justiça, mas Cláudia ainda não acredita que a irmã tenha tirado a própria vida. Quase 20 anos depois, ela luta para aliviar o sofrimento de outras mulheres.

 

NOVO CAPÍTULO

Para vítimas de violência atendidas no projeto, apoio e procedimentos cirúrgicos significam a abertura de um novo capítulo na vida. “Hoje, quando me olho no espelho, vejo outra pessoa. Sou mais feliz, minha autoestima melhorou demais depois que fiz a harmonização facial. Isso muda a gente”, conta uma mulher de 33 anos, que foi vítima de tentativa de feminicídio. Atendida no projeto criado por Cláudia, ela não quis se identificar, por medo de retaliação, mesmo depois de três anos sem contato com o agressor.


A história relatada por ela coincide com a de muitas outras vítimas da violência de gênero. Durante o namoro, o homem se mostrava muito atencioso. Mas tudo mudou quando os dois se casaram. “Ele me batia desde que engravidei e só foi piorando. A gente acha que a pessoa vai mudar, mas não muda não”, conta a vítima, que viveu 12 anos com o agressor, entre idas e vindas.

 


Durante um término, ela começou a conversar com outro homem, mas o ex-companheiro viu as mensagens e tudo saiu de vez do controle: “Ele surtou”. Os dois estavam no carro. Ele acelerou dizendo “nós dois vamos morrer agora”, enquanto batia nela no banco do carona, conta a mulher. Depois, estacionou em uma rua e começou a estrangulá-la. Para a mulher, ela só sobreviveu porque uma senhora que passava pelo local viu a cena e começou a gritar: 'O cara tá matando a menina'. Vários vizinhos apareceram, e chamaram a polícia, relata. “Se não fosse aquela mulher ali na rua, eu não estaria aqui não”, afirma.


Mesmo depois de cortar o contato com o agressor, as marcas emocionais persistiram. Em depressão, ela buscou tratamento psicológico e psiquiátrico. A grande virada veio quando conheceu o Projeto Princesa Rivânia há um ano. “O acolhimento da Cláudia é ótimo, ela é uma pessoa maravilhosa. Com as conversas, a minha cabeça mudou muito, isso me ajudou e me colocou para cima”, conta a mulher, que passou também por uma harmonização facial.


A atendente agora se esforça para ajudar uma amiga que vive um relacionamento abusivo, tentando convencê-la a denunciar o namorado e se inscrever no projeto: “Participar desse projeto me impulsionou a ajudar outras pessoas”.


FERIDAS ABERTAS

Também apoiada pelo projeto, uma estudante de farmácia, de 30, vítima de uma longa relação abusiva, se sente, finalmente, “abraçada”. A jovem conheceu o ex-namorado aos 18 anos e o via como “um príncipe”, sempre disposto ao carinho, atenção e gestos românticos. “No início tudo era perfeito”, resume, antes de narrar o pesadelo que viveu desde o dia em que, já morando com o homem, o flagrou “de intimidade” com outra mulher na loja onde ele trabalhava. Questionado, ele a chamou de louca e, a partir daquele momento, tudo começou a mudar, relata.


Segundo a estudante, o companheiro passou a controlar todas as suas saídas, pedindo que ela mostrasse o ambiente onde estava com chamada de vídeo. Recorrentemente a xingava, até que começaram as agressões físicas. Na primeira, a jovem estava deitada na cama quando o homem puxou seu cabelo e a jogou no chão.

 

“Ele saía me arrastando. Depois prometia que nunca mais ia fazer de novo e dizia não saber por que estava fazendo aquilo. E virou sequencial. Depois que eu peguei a primeira mentira dele, ele tirou a máscara e nunca mais a colocou de novo”, relata.


Também havia violências psicológicas, diz a vítima. Segundo ela, o companheiro a fazia acreditar que o que estava acontecendo era culpa dela e a duvidar de si mesma, numa prática conhecida como gaslighting. Procurada, a família não acreditou nela, narra. “Na frente de outras pessoas ele era perfeito, muito carismático, mas dentro de casa era só agressividade. Eu fui desacreditada e me senti culpada”, disse.


A jovem só conseguiu acabar o namoro quando encontrou o agressor na cama com outra mulher. “Ele disse que não me conhecia, que nunca tinha me visto e que eu era uma louca. Foi aí que decidi dar um basta”. Mesmo com o término do namoro, o agressor ainda a perseguiu por muitos anos e ela só conseguiu evitá-lo quando se mudou, há três anos, e não divulgou o endereço ou telefone nem para a família.


RECONQUISTA DA CONFIANÇA


Assim como a atendente, a estudante conheceu o Projeto Princesa Rivânia pelas redes sociais. E, ao compartilhar sua vivência com outras mulheres, percebeu que não estava sozinha, o que lhe deu forças para seguir em frente. “Até então, achava que era só eu, que eu era doida. Ver mulheres conseguindo superar e seguir em frente me deu esperança de voltar a ser pelo menos um pouco do que eu era antes. Eu me senti abraçada”. Hoje ela comemora o casamento de seis anos com o atual marido, que a valoriza e apoia em tudo e com quem tem uma filha de 4. “É ela que me dá vontade de viver”.


MAIS RIGOR

Em 9 de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou lei que torna o feminicídio um crime autônomo e agrava a pena para a maior prevista no Código Penal, de até 40 anos. A pena mínima subiu de 12 para 20 anos. Antes, o crime era classificado como homicídio qualificado. O texto ainda altera a Lei dos Crimes Hediondos, para reconhecer o feminicídio nessa categoria, e a Lei Maria da Penha, para ampliar a pena do descumprimento da medida protetiva de urgência. Adicionalmente, institui a prioridade na tramitação dos crimes inscritos nesta nova legislação e estabelece, para tais, a gratuidade de Justiça.


“Isso é bom, porque agora a gente consegue dar um nome, uma cara mais específica a um crime que é cometido contra outras mulheres, quer sejam cis, trans ou travestis. Isso denota um amadurecimento social e cultural, dando uma atenção mais específica a esse tipo de crime”, afirma a psicóloga especialista em gênero e violência, Claudia Natividade.


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Entretanto, para Natividade, o sistema penal não consegue resolver, de forma isolada, o problema da violência contra as mulheres. O ideal é uma ação conjunta que envolva ações preventivas e de conscientização, para além da punição. Uma proposta importante, que está presente na Lei Maria da Penha, é a reeducação do homem, a fim de quebrar o ciclo de violência na raiz.


Na mesma linha, essa forma de combate à violência contra a mulher está prevista pelo Projeto Princesa Rivânia, no formato de grupos reflexivos com os homens que cometem esse tipo de crime. “É muito importante que esses trabalhos com os homens sejam instituídos como política pública de intervenção para o enfrentamento da violência contra as mulheres”, opina Natividade.