O sorriso aberto da venezuelana Daively Yurimar Villalba, de 32 anos, mostra que, apesar de todos os pesares, há um rasgo de esperança sobre o futuro. Ao lado, cabisbaixo e quase mudo, seu irmão, Juan Rattia, de 25, artesão, procura atenuar as lembranças da terra natal com as peças feitas a partir de penas, palha, contas... “O caminho até Belo Horizonte foi longo e penoso, em percurso e dificuldades. Estava grávida e com duas filhas pequenas, de 5 e 2 anos. Mas não dava para viver na miséria, na Venezuela, com o salário mínimo de US$ 3, menos de R$ 20 por mês”, explica Daively, que vive em uma ocupação em Betim, na Região Metropolitana de BH, e faz parte de um contingente cujo crescimento explodiu em uma década.
A exemplo da família dela, são muitos os estrangeiros que deixam seu país rumo ao Brasil, fugindo de miséria, guerras, perseguições, fome e total falta de horizontes, entre tantos outros aspectos aterrorizantes. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, houve crescimento de 432,9% no número de imigrantes nos últimos 10 anos. Um total de 400,5 mil pessoas cruzou as fronteiras do território nacional em 2014, contra 2,1 milhões neste ano, entre imigrantes e solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado.
Daively chegou nesse meio tempo: emigrou há cinco anos e, agora, com a reeleição do presidente Nicolás Maduro – pleito com resultado contestado pela oposição e por dezenas de países –, sabe que o retorno ao estado natal de Delta Amacuro, no Nordeste da Venezuela, onde ficaram os parentes, se tornou impossível. “Se a situação fosse diferente, se Maduro tivesse deixado o governo, certamente eu voltaria”, conta a mãe de Noeily, de 11, Nodely, de 8, e da brasileira Norely, de 5. Juan veio dois anos depois, com a mulher e cinco filhos. Ele se considerava bem feliz na sua cidade, mas, com o quadro de miséria e falta de oportunidades, pensa que ainda é cedo para o retorno.
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Venezuelanos como eles encabeçam a lista dos que decidem viver no Brasil, seguidos de bolivianos, argentinos e colombianos. Na chegada ao território brasileiro, venezuelanos e pessoas de países membros ou associados ao Mercosul – as principais nacionalidades a migrar para cá – não precisam de visto de entrada. Outras nacionalidades acabam por ingressar por meio de acolhida humanitária, conforme o Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Maratona de desafios
Quem já atravessou, a pé, longas distâncias para chegar à fronteira entre países ou cruzou o Oceano Atlântico em busca de um porto seguro sabe que nada será um mar de rosas no novo destino – pelo menos nos primeiros tempos, incluindo a barreira do idioma. Há exemplos recentes a demonstrar essa angústia, por vezes um flagelo. No início de setembro, por exemplo, um africano de 39 anos, natural de Gana, morreu após passar mal enquanto se encontrava retido, à espera de refúgio, no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos.
Muitas vezes, migrantes como ele, em busca de driblar as dificuldades da burocracia, também se tornam presa fácil de grupos criminosos ligados ao tráfico humano e trabalho escravo. Na semana passada, uma quadrilha especializada nesses delitos foi alvo de operação da Polícia Federal, em BH e Ribeirão das Neves, na região metropolitana.
Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, a principal parcela dos imigrantes e refugiados se desloca de forma autônoma no território brasileiro: “Outra parte, que ingressa por Roraima, é interiorizada por meio da Operação Acolhida, tendo como principal destino municípios de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul”, esclarece nota das autoridades federais.
Receber sem acolher
Pesquisador do tema migração, o professor Duval Magalhães Fernandes, do programa de pós-graduação em geografia da PUC Minas, lembra que “receber não significa acolher”. Na prática, é preciso criar estruturas como a instalação do Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM), hoje inexistente no Aeroporto Internacional Tancredo Neves, em Confins, Grande BH.
Há situações reais que servem para justificar essa necessidade: como entender o que diz uma refugiada afegã que precisa de cuidados médicos? Ou um jovem haitiano falando seu dialeto? Ferramenta do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o PAAHM faz parte da Rede Nacional de Núcleos e Postos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, mas ainda não está em funcionamento em Minas. O governo não informou sobre a previsão de instalação da estrutura no estado.
Venezuelanos são uma “nação” à parte
De 2018 a agosto de 2024, Minas recebeu 7,5 mil venezuelanos, dos 138,2 mil que chegaram ao Brasil e foram interiorizados ou encaminhados pelo governo federal a diversas cidades. Os municípios mineiros que mais receberam essa população foram Belo Horizonte; Juiz de Fora (Zona da Mata); Araguari, Ituiutaba e Uberlândia (Triângulo Mineiro); Betim (Grande BH); e Varginha (Sul de Minas).
O professor Duval Magalhães Fernandes observa que mais de mil municípios no Brasil receberam estrangeiros. Em Minas, pesquisa do Departamento de Serviço Social da PUC Minas, encomendada pela Organização Internacional para as Migrações, mostrou que um terço dos 488 municípios mineiros apontou a presença de imigrantes. E um dado importante, segundo o especialista, “é que não existe xenofobia, como ocorre em outros países”.
Em relação à imigração, em Minas os venezuelanos também compõem o maior contingente e, nos municípios onde vivem, são considerados em 66,3% dos casos como o grupo mais importante. O segundo grupo mais numeroso é dos haitianos, seguidos de bolivianos e sírios. Integrantes de outras nacionalidades citadas foram argentinos e portugueses.
Longas travessias
Os venezuelanos Daively e seu irmão Juan, citados no início desta reportagem, conhecem bem o caminho das incertezas, dores e privações do processo de migração. “Hoje, minha filha está bem gordinha, tem 11 anos, mas, até chegar ao Brasil, desmaiou muitas vezes de fome e cansaço”, recorda-se a venezuelana, que, a exemplo de conterrâneos, chegou ao município de Paracaima, Norte de Roraima, na fronteira com o país vizinho.
Para complementar seus parcos rendimentos, as famílias na Venezuela, segundo Daively, recebiam cesta básica. “Na verdade, nem se pode chamar de cesta básica, pois se resumia a uma sacolinha com alguns alimentos. Antes, era entregue uma vez por mês, depois, passou a chegar de três em três meses, depois, uma vez a cada seis meses, e, finalmente, só na época de eleição.”
Cansada das péssimas condições de vida e ansiando por um futuro melhor para as filhas, Daively, já separada do marido, decidiu vender tudo o que tinha, até a casa, e comprar passagem para o Brasil. Fluente em português, soube aproveitar as chances oferecidas, embora se sujeitando a dias e noites sem conforto. “Aprendi o português por necessidade.”
A possibilidade de ver um dia a situação mudando no país natal faz os olhos de Daively brilharem. “Fui bem acolhida aqui, crio minhas filhas, tenho um companheiro, mas voltar seria muito bom”, admite. E, sem perder o bom humor, avisa que, dependendo do futuro, o companheiro é que vai mudar de país.
Uma porta aberta
Nesse momento, pausa para uma nova etapa na travessia dos venezuelanos: enquanto conversavam com o repórter, os irmãos foram informados sobre uma proposta de emprego para ambos. Saíram animados e atraídos pela oportunidade que se abria.
Quem deu a boa notícia aos irmãos – e também abriu a porta da sua residência para o encontro deles com a equipe do EM – foi a jornalista Yolis Lyon, ativista na área de direitos humanos e integrante, com mais 11 voluntários, da organização não governamental “La casa común del pan” (A casa comum do pão), criada em 2021.
Venezuelana, moradora de BH desde 2010 – época do antecessor de Maduro, Hugo Chávez (1954-2013), que presidiu seu país por 14 anos –, Yolis estende os braços para acolher compatriotas e também peruanos, bolivianos, colombianos, haitianos, cubanos e africanos do Congo e da Guiné-Bissau. Além de receber refugiados e imigrantes, a equipe da ONG ajuda na documentação e oferta cestas básicas, entre outros serviços.
Yolis tem um conceito pleno do que é acolher quem chega de outra nação. “É aceitar as pessoas do jeito que elas são. Ninguém chega tão vazio que não possa oferecer algo”, afirma a jornalista, destacando que perdura em seu país uma completa violação dos direitos humanos. “Recebemos gente que está fugindo de guerra, da fome, dos efeitos de grandes catástrofes. Acompanhamos a situação de muitos migrantes. Tudo é uma questão de humanidade, de entender a situação e ajudar.”
Apoio municipal
Já no Bairro Eldorado, em Contagem, na Grande BH, está aberta, desde maio, a Casa dos Direitos Humanos e Mediação Cultural, vinculada à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. O novo equipamento visa à integração de serviços e ações de promoção, proteção, defesa e oferta de informações sobre direitos humanos para fortalecer uma rede ativa no enfrentamento às violações de direitos. Entre os serviços oferecidos está o atendimento aos imigrantes, informa a subsecretária de Direitos Humanos e Cidadania, Lorena Luiz Chagas Lemos.
Lá os interessados encontram, gratuitamente, cursos de espanhol, francês, crioulo haitiano (dialeto falado no país caribenho), facilitação da comunicação com serviços de interpretação, tradução e assistência na integração social. “Nós nos preocupamos também com a empregabilidade, e, portanto, há encaminhamento a empresas instaladas no município, pois muitas têm programas específicos nessa área”, informa Lorena. A estimativa é de que Contagem já tenha recebido mais de 4 mil imigrantes.
“Mineiro” do Haiti
A maioria dos imigrantes que chegaram a Contagem veio do Haiti, país atingido por um terremoto em 12 de janeiro de 2010. Entre eles está o motorista de aplicativo Saint Hubert Rebecca, de 28, que morava com a família na capital, Porto Príncipe, um dos locais mais atingidos pela catástrofe, cujo saldo foi milhares de mortos. Familiarizado com o jeito mineiro, o jovem, fluente em português, que chegou aqui falando francês e o dialeto crioulo, afirma se sentir em casa.
Saint Hubert veio sozinho para o Brasil, aos 18, para ficar na casa de um irmão. Mais tarde, veio outro irmão. “Deixar a família foi muito difícil, mas, com o tempo, fiz amigos brasileiros e haitianos. Aprendi a falar português em seis meses, e comecei a trabalhar na Ceasa (Centrais de Abastecimento de Minas Gerais), puxando carrinho de frutas e legumes.”
Numa caminhada pelo Centro de BH, nas imediações do terminal rodoviário, o jovem haitiano vê as barracas de população em situação de rua, se entristece e pensa em seu país. “A questão da saúde no Haiti é muito ruim. Quando cheguei aqui, senti tudo bem diferente, mas sei que o mais importante é ter um objetivo na vida. Quero fazer um curso de segurança e ajudar as pessoas que precisam. Quando posso, distribuo, com amigos, alimentos aos pobres nas ruas.”
A concretização de objetivos passa, necessariamente, pelo trabalho digno, diz o haitiano. De uma família de cinco filhos, Saint Hubert espera, um dia, visitar o seu país e rever os parentes. Agora, sonha com melhoria de vida por meio da capacitação profissional. Como milhares de imigrantes que deixaram seus países em busca de mais dignidade no Brasil.
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Uma “copa do mundo”em busca de patrocínio
Ativista na área de direitos humanos e integrante de ONG que acolhe imigrantes em BH, a jornalista Yolis Lyon vive grande expectativa para a realização, possivelmente em novembro, de um campeonato de futebol, a segunda edição da Copa dos Refugiados e Imigrantes. “O objetivo é fortalecer laços culturais, promover inclusão social e proporcionar uma experiência de entretenimento e confraternização”, conta Yolis, explicando que está em busca de patrocinadores para o torneio.
ALÉM DA FRONTEIRA
2014
400,5 mil
migrantes chegaram ao Brasil, sendo 379,2 mil registros de imigrantes e 21,3 mil de solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado
2024
(até junho)
2,1 milhões
de migrantes chegaram ao Brasil, dos quais 1,6 milhão de registros de imigrantes e 437,5 mil de solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado
432,9%
foi o crescimento da migração para o país em 10 anos
Venezuelanos lideram a lista dos que emigram para o Brasil, seguidos de bolivianos, argentinos e colombianos