Uma nova “epidemia” se espalha pelo Brasil, põe em risco o equilíbrio financeiro e mental da população, especialmente das parcelas mais vulneráveis, e já provoca tragédias em família, alertam especialistas. Tema de reunião na última semana entre a ministra da Saúde, Nísia Trindade, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o vício em jogos on-line, conhecidos como bets (apostas, em inglês), virou questão de saúde pública. Para se ter uma ideia, uma pesquisa da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) estima que os consumidores gastam cerca de R$ 6 bilhões por mês nesses jogos. E, segundo o Banco Central, as bets receberam R$ 3 bilhões de beneficiários do Bolsa Família em agosto. As consequências podem ser nefastas. Na última semana, uma mulher tirou a própria vida em Belo Horizonte, em ato extremo que a família relaciona ao endividamento gerado pelo jogo on-line compulsivo.

 

Na reunião com o presidente, na quinta-feira (3/10), a ministra Nísia Trindade afirmou que vai reforçar junto à atenção primária à saúde um olhar especial a esse problema. A ministra explicou que está propondo uma classificação internacional de doenças no que se refere ao “jogo patológico” que diferencie o ambiente em que as apostas são feitas. “É importante no mundo de hoje uma diferenciação aos jogos que são feitos on-line, que requerem medidas específicas”, disse. Ela acrescentou que é possível trabalhar a pauta a exemplo das campanhas de combate ao tabagismo, considerando que o vício em jogos é um grave problema de saúde pública no Brasil e no mundo.

 



 

 

A afirmação é reforçada pelo neurocientista e professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Bruno Rezende de Souza, para quem a propagação de plataformas de apostas on-line tem forte impacto na saúde mental. Bruno explica que o sistema de recompensa do cérebro, naturalmente programado para buscar prazer, é facilmente explorado por essas plataformas, levando ao vício.

 

“O processo de vício tira proveito do sistema de prazer. Mas para ir a casas de apostas, como as lotéricas, a gente gasta energia para chegar até lá”, diz, ao considerar que o encurtamento desse caminho na aposta on-line potencializa o risco. Os efeitos do jogo têm início antes mesmo de a aposta ser feita, argumenta. “Na maioria das vezes, a gente não ganha, mas a expectativa provoca um primeiro pico de dopamina. Há a motivação, que gera prazer por estar jogando”. Quando o jogo passa da lotérica ao celular, que não exige praticamente nenhum esforço, o processo de recompensa é acionado em segundos. “Então, as bets tiram proveito de um sistema fisiológico natural, pois são um facilitador para conseguir prazer”, diz o professor.

 

Ele detalha que o sistema cerebral evoluiu para recompensar o ser humano por comportamentos essenciais à sobrevivência, como comer e se reproduzir, mas pode ser "sequestrado" por atividades que proporcionam prazer intenso, mesmo que sejam prejudiciais a longo prazo. Esse sistema, explica, é modulado pela dopamina, um neurotransmissor associado ao prazer e à motivação. Quando nos envolvemos em atividades prazerosas, o cérebro libera dopamina, o que nos faz querer repetir a experiência. As apostas exploram essa vulnerabilidade, oferecendo a promessa de recompensas rápidas e frequentes.

 

 

De acordo com o neurocientista, o vício em apostas on-line pode levar os indivíduos a negligenciar outras áreas de suas vidas, como trabalho, relacionamentos e saúde, em busca da gratificação instantânea proporcionada pelas apostas. Outro ponto importante citado por Bruno é que o cérebro tende a minimizar as perdas e a superestimar as vitórias. Isto é, mesmo que uma pessoa perca dinheiro com apostas na maioria das vezes, ela se lembrará com mais intensidade das poucas vezes em que ganhou, o que a incentiva a continuar apostando. “O sistema das bets é inteligente, mas cruel. Como os traficantes, dão (a droga) de graça no início e depois cobram”.


DEPENDÊNCIA TRÁGICA


Essa cobrança pode virar tragédia, como a que, segundo a família, teria levado a proprietária de um bar no Bairro Saudade a tirar a própria vida, em 29 de setembro, depois de entrar em uma espiral de dívidas consequente da compulsão em jogos on-line. Em entrevista ao Estado de Minas, uma sobrinha da mulher, de 57 anos, diz que a família, que não tinha conhecimento da situação antes da tragédia, estima que a mulher devia cerca de R$ 20 mil a agiotas.

 

“Financeiramente, nunca faltou nada à nossa família. Quando algo apertava, um ajudava o outro. Ela era depressiva, teve problemas devido a outros fatos. Talvez, (a introdução ao mundo das bets) tenha sido pela busca por satisfação e se tornou uma grande bola de neve. De julho pra cá, ela começou a jogar e desde então as coisas foram se complicando. Ela começou a pegar dinheiro emprestado com familiares e amigos com a desculpa de que era para o bar”, conta a sobrinha.

 

A família estima que 12 agiotas estivessem cobrando dívidas da mulher e que ela tenha se sentido pressionada e envergonhada. A sobrinha conta que, ao ter acesso ao tablet da tia, encontrou 16 aplicativos de apostas on-line instalados, além de 90 abas de jogos no navegador. “Ela era uma pessoa muito doce, muito gentil. Tinha um bar na casa da minha avó e era muito receptiva, carinhosa e querida no bairro e pela família. Deixou uma carta dizendo que se sentia amada”, conta.

 

 

Além dos famosos jogos do Tigrinho, a mulher tinha outros aplicativos do gênero instalados no celular. Em um dos apps, a tia tinha R$ 13 mil, mas para fazer o saque, precisava de mais R$ 16.500, o que faz a família questionar quanto dinheiro ela gastou anteriormente. Ainda segundo a sobrinha, a própria existência de um sistema de jogos que pode levar as pessoas ao vício e a perder dinheiro que, muitas vezes, não têm, revolta a família. “Ela já era uma pessoa muito fragilizada. Se tivesse uma condição melhor, não teria entrado nessa, caído nesse vício. Fica pra gente o medo, porque as pessoas ainda estão cobrando a família. Além da perda, estamos enfrentando medo por não saber com quem ela se envolveu ”, diz.


VULNERABILIDADE SOCIAL


De acordo com o neurocientista Bruno Rezende, a vulnerabilidade social do brasileiro – incluindo o aspecto da falta de acesso a opções de lazer e entretenimento – é fator agravante para o vício em apostas on-line. Para ele, é essencial abordar todos os aspectos sociais, econômicos e psicológicos para proteger a sociedade. “Por que o brasileiro é mais vulnerável aos bets? Vulnerabilidade social. A diversidade de prazeres dificulta o vício, segundo os estudos feitos com ratos. Quando há uma competição de diversões, o vício diminui. Tudo é privatizado no Brasil, tudo custa dinheiro, ir ao cinema é caro, a pipoca é cara, há poucos teatros, quase não existem parques”, analisa.

 

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“Somos um país para elite. Para a população vulnerável ter uma forma de prazer ou vai ser no álcool, ou vai ser no abuso das drogas recreativas e agora, a pior de todas essas drogas, as Bets. O brasileiro mais vulnerável passa muito tempo em transporte público. O celular está na mão e propicia o prazer rápido. A população do Brasil é vulnerável, por isso há o pico gigante para qualquer tipo de prazer fácil”, conclui o especialista.

 

*Estagiária sob supervisão da subeditora Rachel Botelho


Na berlinda

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse, no domingo, após votar em São Bernardo do Campo, que poderá "acabar" com o setor de bets caso a regulação não ocorra como esperado. "Se não houver resultado com regulamentação, não tenho dúvidas de que acabaremos com isso", garantiu. O presidente ainda comentou que a regulação de casas de apostas online deve ficar pronta "semana que vem". O assunto ganhou espaço no debate sobre os jogos on-line após o Banco Central divulgar dados que indicavam que as bets haviam recebido R$ 3 bilhões de beneficiários do Bolsa Família em agosto. O Ministério da Fazenda divulgou, em 30 de setembro, uma lista com as empresas de apostas on-line que pediram à pasta autorização para operar no país. Desde essa data, apenas as bets que constam da lista estão autorizadas a continuar funcionando. No total, são 193 marcas de 89 empresas autorizadas a operar nacionalmente. Além disso, há algumas casas autorizadas por estados no limite dos seus territórios.

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