Natural de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, o bailarino e coreógrafo Evandro Passos, de 64 anos, vai representar a dança afro-brasileira na Paris 8 Vincennes-Saint-Denis, a maior universidade do continente europeu. Um dos precursores dessa arte em Minas Gerais, ele pretende estudar a influência dela na cultura francesa.

 

A história de Evandro começa com o filme “Xica da Silva”, de Cacá Diegues. Lançada em 1976, a obra retratava a escravidão em Arraial do Tijuco (que posteriormente viraria o município de Diamantina). Antes mesmo de ser finalizado, em 1975, o longa mudou a trajetória do bailarino. Com apenas 16 anos, observando o elenco andar por sua cidade natal, ele descobriu o que queria ser na vida. “Ver aqueles atores e atrizes, negros, andando de cabeça em pé por Diamantina, me impactou muito. Falei para meus pais que já sabia do meu desejo. Ali, decidi que queria ser artista”, relembra o professor.

 

 

Ele acabou traçando seu destino na capital mineira. Em 1976, Evandro se mudou com a família para Belo Horizonte. E foi de tanto ficar em frente ao Palácio das Artes que virou dançarino. Curioso em ver as pessoas entrarem no teatro, queria fazer o mesmo, mas não tinha dinheiro para os espetáculos. “Minha cabeça fervilhava, queria saber como era um palco, como era lá dentro.”

 

Porém, a dança, que acontecia no interior do espaço, "se cansou" da teimosia dele de ficar só do lado de fora e "o convocou". O convite veio por meio de um mensageiro, o bailarino Geraldo Vidigal, do grupo folclórico Aruanda, que entregou um papel na mão de Passos. “Ele disse que sempreme via ali e me deu um convite para a audição de um grupo que precisava de homens negros”, relembra.

 




Evandro, entretanto, rasgou aquele papel. “Vim do interior, acreditar naquilo era meio difícil para mim”, explica. Porém, a dança não se deu por vencida e o intimou novamente. Dessa vez, uma mensageira, a irmã, enquanto lia o jornal Estado de Minas, soube de um teste para um grupo de dança e comentou com Evandro. Ele só não sabia que, por coincidência ou obra do destino, chegando ao teste, encontraria Geraldo Vidigal, o mesmo homem que tinha lhe entregado o bilhete anteriormente.

 

Apesar de cativado pela arte, o diamantinense teve de superar desafios. Mesmo recebendo elogios e bons feedbacks dos professores, certa vez, enquanto dançava ballet clássico, ele ouviu algo desanimador. “Eu e outros dançarinos negros ouvíamos frases como: ‘Vocês nunca vão ser bailarinos clássicos, olhem seus pés, o corpo de vocês’. Só estávamos lá para carregar bailarinas brancas”, lamenta.

 

Herdeiro de um legado

 

O filme “Xica da Silva” trouxe também uma personagem fundamental para a história de Evandro. Isso porque Marlene Silva, a dama da dança afro, foi convidada para preparar o elenco do filme e acabou trocando o Rio de Janeiro por Belo Horizonte.

 

Durante a abertura de um carnaval da capital mineira, enquanto ela se apresentava em um palco, os olhos de Evandro ficaram vidrados nos movimentos da bailarina de dança afro. “Me arrepiava, chorava, pensava que era aquilo (dança afro) que eu queria fazer para o resto da minha vida.” Ao cruzar o caminho um do outro, Evandro se apaixonou pela dança afro-brasileira, e Marlene Silva se tornou uma de suas grandes inspirações.

 

Como admirador da bailarina, ele se tornou o discípulo do legado de Marlene, que sempre lutou pela valorização da dança e da cultura dos povos africanos. “Ela queria dança afro nos palcos igual outros ritmos e sempre dizia: ‘Se o Bolshoi pode estar em palcos, eu também posso’”, conta o professor.

 

 

Ele lembra também que Marlene teve um papel fundamental para o carnaval de BH. Dia que foi a coragem dela de levar a arte afro para as ruas que contribuiu para a folia da cidade ter o rosto e o som que tem hoje. E que as mesmas pessoas que os chamavam de “macumbeiros", naquela época, atualmente balançam o corpo ao som dos batuques do carnaval belo-horizontino. “A percussão que era muito julgada hoje é adorada pela classe média branca. Várias pessoas que fizeram aula comigo participaram de blocos famosos de carnaval”, destaca.

 

A dança nas universidades

Ainda jovem, Evandro relata que, apesar de seus pais apoiarem seu amor pela arte, sempre fizeram questão de que o filho estudasse. E cumprindo o combinado, ele se formou em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1990. E elevou sua paixão a estudo acadêmico. “Quando contei para meus professores que o tema do meu trabalho de conclusão de curso era dança afro, ficaram de cabelo em pé: ‘Não temos ninguém para te orientar, pode fazer sozinho’, relembra Evandro. Posteriormente, se formou mestre em artes cênicas pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), onde chegou a escrever um estudo de caso sobre sua própria trajetória.

 

No início deste ano, passou em primeiro lugar em um edital de “doutorado-sanduíche”, processo de qualificação em uma instituição de ensino superior no estrangeiro. E escolheu ir para a França, estudar a cultura afro em Paris. “É uma representatividade muito grande levar a dança para esse lugar; a Marlene jamais imaginaria isso”, diz, com uma certa dose de emoção.

 

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Assim como um dia Evandro se encantou com Marlene Silva no palco, e a bailarina mudou sua vida por meio da dança afro, o dançarino e professor também já cativou outros artistas. “Ser aluno do mestre Evandro Passos é um privilégio imenso. Dança afro vai além da técnica; é sobre o corpo negro ocupando a cidade e convidando a todos a dançar” declara Jarbas Mateus, hoje professor de dança e produtor cultural. “Conheci Evandro quando eu ainda estava em situação de rua, e ele, sem fazer distinção de pessoa, classe social, ou de onde eu vim, sempre me recebeu bem. Quando se fala de Evandro Passos, a gente fala de transformação de vidas”, afirma o ex-aluno Wallace Guedes, atual rei momo do carnaval de Belo Horizonte. 

 

* Estagiária sob supervisão do subeditor Thiago Prata

 

Discípulo de uma dama

 

Marlene Silva, de quem o bailarino e coreógrafo Evandro Passos se tornou discípulo, nasceu em Belo Horizonte, e ganhou o título de "dama da dança afro-brasileira" por enfrentar o racismo através da arte de origem negra e identidade africana. Ela começou muito jovem a se interessar pelas artes. Aos 10 anos, se mudou para o Rio de Janeiro e começou a fazer aulas de balé, trombone e acordeão. Aos 21 anos, Marlene assistiu pela primeira vez a uma apresentação de dança afro-brasileira, com o balé folclórico de Mercedes Baptista, e decidiu fazer aquilo para o resto da vida. Em 1980, retornou a Minas Gerais para trabalhar ritmos e coreografias africanas presentes no filme ‘Xica da Silva”, e acabou abrindo sua própria academia de dança na capital do estado, no mesmo ano. A bailarina faleceu em abril de 2020, aos 83 anos, vítima de COVID-19. Em mais de 65 anos de carreira, sendo 30 anos dedicados ao cenário cultural de Minas, ela inspirou inúmeros dançarinos e deixou um grande legado para a dança afro-brasileira.


 
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