Sobrevivente das calçadas na Avenida Olegário Maciel, no Bairro de Lourdes, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, José Marcos Souza, de 62 anos, o “Carioca”, está com a passagem comprada para retornar ao Rio de Janeiro e reencontrar sua família. Isso graças a condôminos do Edifício JK, que, sensibilizados com a batalha do homem em situação de rua para sobreviver em meio a atos de violência nas ruas da região, fizeram uma vaquinha para comprar uma passagem para Niterói, onde José seguirá em busca da família, que vive no Bairro Jardim Catarina.

 



 

“Ele é um rapaz que não bebe, não usa droga, vende as coisinhas dele, eu já até comprei livros com ele. E quando chega a noite, vai dormir ali sozinho, e sempre é assaltado”, conta Carla Silva Gomes, médica veterinária, moradora do tradicional edifício. Carla diz que a janela do seu apartamento fica de frente ao local onde José costuma “morar” e presenciou quando um indivíduo tentou tomar as coisas do “Carioca”. Ouvindo os gritos na rua, ela e a filha tiveram que intervir. “Gritamos para não mexer com ele, e minha filha resolveu descer”, relata. 

 

 

Ela conta ainda que José revelou emocionado, em uma conversa, que gostaria de voltar para o Rio de Janeiro, onde sua família vivia. A filha de Carla então se mobilizou e organizou uma vaquinha com o apoio dos moradores, para comprar a passagem. “A passagem já está comprada para este sábado (19/10). Segundo ele, é o dia que a família vai estar toda reunida, vamos dar um dinheiro pra ele comer algo e pegar um táxi quando chegar lá”, conta a veterinária.

 

A reportagem procurou José Marcos no endereço informado. “A noite aqui já não é como era antes”, declarou ele. Morando na rua, sua “casa” é a calçada, e seus pertences cabem todos em uma mala vermelha, que ele carrega dentro de um carrinho de supermercado. Enquanto contava sua história, era sempre interrompido pelos cumprimentos de pessoas que passavam pela Avenida Olegário Maciel esquina com a Rua Timbiras. “Dou bom dia pra todo mundo, desejo um bom trabalho, converso, aqui eu fiz vários amigos” contou.

 

 

Sentado em uma cadeira de plástico, ele vigia sua mercadoria. Água, salgado e pipoca expostos em cima de uma caixa de isopor. Apesar de poucos pertences, a bagagem literária de José logo começa a se demonstrar densa em suas palavras. Com um sotaque carioca e um jeito divertido de falar, ele revela que era chamado de “poeta" pelas ruas do Rio de Janeiro. E para se distrair, costumava escrever poesias deitado nas calçadas e ocupar seu tempo com livros. “O apelido de poeta pegou, e até hoje se aparecer qualquer coisa na minha mente eu já cato um livro pra ler.” 

 

Souza estudou até a oitava série e foi criado pela irmã e um cunhado, com quem, segundo ele, aprendeu tudo. “Eu morava com minha irmã em Niterói. Aprendi a capinar, cortar árvore e um monte de coisa.” Chegou em Belo Horizonte, ainda criança, acompanhado de um irmão mais velho. Sua intenção era reencontrar o pai ou seus primos, que viviam na capital mineira, mas sem se lembrar de suas fisionomias e com poucas informações, abandonou a expectativa do encontro e seguiu sua jornada sozinho. “Rodei várias cidades para tentar encontrar, mas não achei, não lembrava”, contou.

 

 

Os princípios construídos ao lado da irmã o seguiram em sua rotina nas ruas, que descreveu ser muito disciplinada. Ele acorda às 4h da madrugada, varre toda a calçada, organiza seus produtos e passa o dia em seu canto. Revelou que nunca gostou de “extravagância”. “É fazer minhas vendas e ir pra cama, sou uma pessoa simples, eu não tenho nada”, revela.



'E agora, José?'


José Marcos é apaixonado por literatura e Carlos Drummond de Andrade

Alexandre Guzasnhe/EM/D.A Press

 

A literatura, fiel companheira, foi o que o manteve por muito tempo. Ele vendia os livros que recebia de doações de amigos. “Nunca gostei de ficar na beira de bar pedindo nada a ninguém. Sempre gostei de lutar sozinho, sempre tive minha humildade”, conta “Carioca”. Com a idade, a venda dos livros teve que ficar de lado, eles foram entregues a um amigo e ele passou a vender outros produtos. Mas, ainda assim, mostra com orgulho, dentro do seu carinho, dois exemplares que ainda o mantinham entretido: “O café dos anjos”, do autor Max Lucado, e “Combate Espiritual”, do padre Reginaldo Manzotti.

 

Mas assim como a célebre frase do poema de Carlos Drummond de Andrade, seu autor preferido, José Marcos carrega um dilema: “E agora, José?”. Deixando a capital, o poeta das ruas sonha com um reencontro. “Quando eu chegar no Rio, só quero dar um beijo e um abraço na minha família ", diz, emocionado.

 

 

José afirma que sempre que é questionado o porquê de não parar em casa, e se deparar com a incompreensão das pessoas e da família a respeito de suas escolhas, justifica dizendo: “Pô, eu sou andarilho, gosto de aventura, de parar em cada cidade e deixar minha história marcada. Gravar meu nome por aí”, destaca.

 

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As expectativas para encontrar a família são altas, mas ele revelou que ainda está com o coração dividido. “Já tô com o coração dividido, adoro essa cidade, aqui fiz muitos amigos.”

 

“Com a ida dele, vou sentir saudade principalmente de acordar abrir minha janela e ver ele varrendo o outro lado da rua, na luta", afirma Carla Gomes, que revel ter preparado um texto para ler no momento da despedida, acompanhada de outros moradores, que também vão querer dar seu adeus a José. “Um poema para um poeta, espero que seja emocionante e que ele levante a auto estima antes de voltar”, diz a vizinha.  


*Estagiária sob supervisão da editora Vera Schmitz

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