Os crimes de injúria racial quase triplicaram nos primeiros oito meses deste ano em Minas Gerais. Conforme a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), foram registrados 1.126 casos de janeiro a agosto de 2024, contra 388 ocorrências no mesmo período de 2023 — um aumento de 190%. O dado, além de alarmante, indica que, em apenas oito meses, o estado já superou, em muito, os números registrados durante todo o ano passado, quando 723 crimes de injúria racial foram computados.
Os números da Sejusp ainda sinalizam uma escalada preocupante nos registros de injúria racial nos últimos dois anos. Em relação a 2022, as ocorrências tiveram um salto de mais de 120%, saindo de 496 casos para os 1.126, em agosto de 2024, na comparação dos primeiros oito meses de cada período.
Em contraste, os casos de racismo apresentaram uma queda acentuada. De janeiro a agosto, foram 126 ocorrências registradas, uma queda de mais de 52% em relação ao mesmo período de 2023, quando 265 casos foram notificados.
Embora ambos os crimes — racismo e injúria racial tenham a mesma raiz de preconceito racial, eles se diferenciam na forma como o preconceito é manifestado. O racismo é dirigido a um grupo ou raça de forma generalizada, enquanto a injúria racial é um ataque direto a uma pessoa específica, com base em sua cor ou etnia.
Especialistas ouvidos pelo Estado de Minas ponderam que essa redução reflete uma mudança no comportamento social, em que atitudes abertamente racistas passaram a ser menos toleradas publicamente. Um exemplo é o vídeo que viralizou neste fim de semana, em que Alessandro Pereira de Oliveira, de 36 anos, foragido da Justiça após não retornar ao presídio de Governador Valadares, no Vale do Rio Doce, durante uma saída temporária, faz declarações racistas.
Na gravação, o suspeito, que trabalhava como funcionário de umbar do Bairro Universitário, na Região da Pampulha, em Belo Horizonte, diz que “preto tem que entrar no chicote” e “tomar água do vaso”, além de lamentar a abolição da escravatura.
“Trabalhar em bar não é fácil. Maldita Princesa Isabel que assinou a Lei Áurea para acabar com a escravidão. Preto tem que entrar no chicote e no tronco mesmo. Não tem conversa, não. Não sei se preto tem razão para reclamar de copo, tem que tomar água do vaso. Eu tinha que ter vivido na época dos barões, cortar essa raça no chicote. Amarrar no tronco e chicote estalando no ombro, amarrado dentro da caixa de ferro e deixar o dia inteiro no sol. Vou ter que aturar macaco me enchendo o saco”, disse no vídeo. A gravação rapidamente ganhou repercussão nas redes sociais e gerou indignação.
Agora, o Ministério Público de Minas Gerais(MPMG) entrou no caso e emitiu um alerta, via coordenadoria de Combate ao Racismo e Todas as Outras Formas de Discriminação (CCRAD), para a prisão de Alessandro, que seguia foragido até o fechamento desta edição. A ficha criminal do suspeito é extensa, inclui 86 registros, entre eles violência psicológica, descumprimento da Lei Maria da Penha e divulgação de material pornográfico. Ele também já foi preso por perseguição e violência doméstica.
Na avaliação do advogado criminalista Pablo Crosara, a queda acentuada nos registros de racismo é um reflexo de mudanças no comportamento social e no tratamento jurídico do crime. Ele aponta que, embora o racismo tenha sido normalizado até os anos 90, hoje é visto com repúdio e tratado com rigor pelas leis. “Acredito que esse racismo aberto é mal visto. O discurso abertamente racista agora é considerado discurso de ódio, e o tratamento jurídico é duro. Nem quem é racista tem coragem de se declarar racista. A pessoa fala: ‘Eu, racista? Jamais’. Mas vai dirigir no trânsito e faz uma ofensa com cunho racial, por exemplo”, analisa.
Punição mais severa para a discriminação racial
No ano passado, a injúria racial passou a ser um crime imprescritível e inafiançável, como já era o caso do racismo, um marco importante no combate à discriminação racial no Brasil. Isso significa que agora a ação penal pode ser movida a qualquer tempo e que o autor não pode ser liberado mediante pagamento de fiança. Com a nova legislação, a injúria racial tem uma pena de reclusão de dois a cinco anos, o que a equipara em gravidade ao crime de racismo. Antes, a pena podia variar de um a três anos.
A lei também incluiu agravantes, como no caso da prática do crime em locais de grande circulação, como estádios e shoppings, ou no ambiente de trabalho. Isso amplia a punição para os infratores e busca dar mais ferramentas às vítimas para denunciarem os abusos sofridos. A alteração da legislação também é vista como uma tentativa de frear a sensação de impunidade, que, historicamente, pairava sobre os autores desses crimes.
A equiparação das penas e o reconhecimento da gravidade de ambos os delitos marcaram uma importante vitória para o movimento negro, mas a aplicação prática das leis ainda enfrenta desafios. Um deles, conforme argumenta a advogada Bruna Viterbo, membro da comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados Seção Minas Gerais (OAB-MG), é garantir que as vítimas possam de fato seguir adiante com as denúncias. “Às vezes, por desconhecimento, a pessoa não pede que o boletim de ocorrência vire uma investigação, só deixa registrado, mas não procura as vias judiciais, para tomar as devidas providências”, aponta.
O também advogado Pablo Crosara acrescenta que a desigualdade social influencia a disposição das vítimas de denunciar, principalmente quando o agressor é de classe econômica mais alta, como no caso de uma mulher, que ele acompanhou, chamada de “macaca”, cujo agressor nunca foi intimado. A vítima, relata o advogado, hesitou em seguir adiante, temendo possíveis consequências, uma realidade que ilustra como o medo de retaliação ainda freia muitas denúncias. “Ela tem medo, porque o cara é rico, e que ela possa ser prejudicada de alguma forma”, conta.
Essa inibição diante do sistema judicial contrasta com situações emblemáticas que ganham destaque na mídia. Um exemplo foi o caso envolvendo a filha dos atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, em que a agressora, DayMcCarthy, foi condenada a nove anos de prisão. Viterbo ressalta que esse foi um caso que avançou devido ao poder aquisitivo dos pais, que conseguiram mobilizar recursos legais para assegurar uma punição exemplar. “Eles tiveram condições de buscar todo e qualquer tipo de recurso para que aquela pessoa que cometeu a injúria e os crimes raciais fosse punida. Demorou anos, mas a punição veio. E o que acontece no nosso dia a dia? As pessoas, geralmente, não têm uma assessoria jurídica à frente ou não tem condição de pagar um advogado, e o processo fica parado”, ressalta.
A disparidade entre os casos denunciados e aqueles que de fato resultam em punição sinalizam uma subnotificação e falsa percepção de que esses crimes não são frequentes, analisa Viterbo. Para ela, o aumento no número de ocorrências de injúria racial pode ser explicado, em parte, pela maior conscientização das vítimas, que passaram a relatar as agressões com mais frequência após as mudanças na legislação.
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Viterbo vê o endurecimento das penas como um fator que pode motivar mais denúncias, já que, muitas vítimas, que antes poderiam ter optado por não denunciar, por falta de confiança na efetividade da punição, hoje sentem-se mais encorajadas a buscar justiça, avalia. “Antes, a injúria racial era vista como um crime de menor potencial ofensivo, uma forma que não geraria prisão. As pessoas se sentiam confortáveis em praticar as injúrias raciais, porque elas entendiam que o máximo que iria acontecer era pagar uma cesta básica”, afirma.