Tombada desde 1976, a Casa Fernão Dias, em Pedro Leopoldo, na Grande BH, teria sido fundada pelo bandeirante -  (crédito: LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS)

Tombada desde 1976, a Casa Fernão Dias, em Pedro Leopoldo, na Grande BH, teria sido fundada pelo bandeirante

crédito: LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS

Um extenso muro de pedras protege a história, ampara as lembranças e fortalece um pedaço importante de Santo Antônio de Roça Grande, primeiro povoado da antiga Vila Real de Sabarabuçu, atual Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Na conversa com moradores do bairro, entre o paredão e o Rio das Velhas, emerge agora a figura dos bandeirantes que chegaram ao local no final do século 17 em busca de ouro e pedras preciosas. Entre os pioneiros paulistas, estava Borba Gato (1649-1718), genro de Fernão Dias Paes (1608-1681), o chamado “Caçador de esmeraldas”. É exatamente sobre Fernão Dias que as atenções se voltam no momento, pois se completam 350 anos da sua chegada à região das minas.


“Aprendi na escola que esse muro é do tempo dos bandeirantes. Então, faz parte da vida de Roça Grande”, diz a aposentada Vanda Maria do Amparo, residente nas proximidades da estrutura de pedra localizada na frente do Hospital Cristiano Machado. “Neste local, onde hoje se encontra o hospital, havia um leprosário. Três casas antigas foram demolidas”, conta Vanda, lamentando que o bairro tenha sofrido um apagão histórico, enquanto florescia a região central do município. “Deram mais importância ao ‘miolinho’ da cidade, aqui ficou esquecido.”

 

 

Ao lado de Vanda, o amigo Denis Carlos de Alcântara Alves, jardineiro, se orgulha de Sabará ter suas origens em Roça Grande, local de memória bandeirante e tradição pelas romarias ao santuário do padroeiro, Santo Antônio, celebrado em 13 de junho. E vem à tona a mítica Sabarabuçu ou “montanha resplandecente”, com os tesouros que atiçavam a Coroa portuguesa e desafiavam os paulistas. “Nossa história precisa ser mais estudada”, acredita Denis.


Assim, para aprofundar os conhecimentos e debater sobre o papel dos bandeirantes, os institutos histórico e geográfico de Minas Gerais (IHGMG), São Paulo (IHGSP) e do Paraná (IHGPR) se unem para solenidade conjunta na capital paulista, em 14 de dezembro. Haverá missa no Mosteiro de São Bento, palestras e visita guiada ao Museu Paulista. A ideia é fazer, no início do ano, novos encontros em Curitiba e BH sobre Fernão Dias, adianta o primeiro secretário do IHGMG, Iácones Batista Vargas.

 

HOMENS DO SEU TEMPO

 

Qual o sentido de se falar, na atualidade, sobre o bandeirante? Quem responde é a professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Adriana Romeiro. “Falar sobre Fernão Dias é revisitar os primórdios de Minas. Não podemos esquecer que foram os sertanistas paulistas os primeiros a pisar na região que viria a ser o estado de Minas Gerais. A história de Minas é inseparável do bandeirismo paulista. Minas nasce desse afã em busca de metais preciosos.”


Segundo a professora, a herança paulista ficou meio ofuscada na história, em favor de uma ênfase maior no legado português – “o que, por sinal, repercute a relação conflituosa entre paulistas e portugueses, cujo ápice foi a Guerra dos Emboabas (1707 a 1709)”. Mas essa tensão, acrescenta, atravessou todo o século 18 e resultou num certo apagamento do papel dos paulistas no povoamento da capitania.


Com o tempo, ganharam a cena as atrocidades cometidas pelos bandeirantes, o que gerou, em 2021, uma onda de manifestações, incluindo destruição, com fogo, de um monumento a Borba Gato, na Zona Sul de São Paulo (SP). Adriana Romeiro explica que a expedição de Fernão Dias buscava esmeraldas, mas também indígenas para serem escravizados. “Aprisionar indígenas fazia parte do cotidiano dessas bandeiras lideradas pelos paulistas, até mesmo como forma de financiá-las, tendo em vista os altos custos para a sua organização. O próprio Fernão Dias tinha uma longa experiência no ataque às populações indígenas, tendo se celebrizado pelas investidas contra as reduções jesuíticas no Sul, no atual estado do Paraná.”

 

 

Com as novas interpretações, estudos, releituras e fatos ocorrendo mundo afora, os bandeirantes deixaram de ser heróis da pátria e, para muitos, viraram vilões. Como se deu essa transformação da água para o vinho? “No início do século 20, os paulistas foram considerados um dos principais protagonistas da nossa história. Os historiadores paulistas se empenharam em construir uma versão da história na qual a antiga capitania de São Vicente – e depois São Paulo – seria o epicentro do movimento de desbravamento e povoamento do território nacional. Esses historiadores representaram os sertanistas como heróis da pátria, imbuídos de intenções elevadas, dedicados à obra de ampliação e consolidação das fronteiras nacionais. Houve um apagamento do lado sombrio dos bandeirantes. Mas a verdade é que eles eram, sim, caçadores de indígenas, defensores da escravização dessas populações, adeptos de métodos extremamente violentos, que os próprios contemporâneos criticavam e denunciavam.”


E mais deve ser levado em consideração: “Os bandeirantes eram homens do seu tempo, com os seus defeitos e qualidades. É importante que essa faceta pouco enobrecedora venha à luz, para que possamos refletir sobre a nossa história, e também do nosso estado, que foi forjado no genocídio contra as populações originárias.”

 

CAMINHOS TORTUOSOS

 

 

Centenas de maritacas fazem um balé harmonioso e acelerado sobre o Santuário Arquidiocesano Santo Antônio, em Roça Grande. Em seguida, sobrevoam o Rio das Velhas, agora bem caudaloso devido às chuvas, e batem em retirada com seu barulho inconfundível. Sem picar, os olhos atentos acompanham os contornos da região vista por Fernão Dias há 350 anos. “O nome Roça Grande vem do plantio de mandioca, feijão e milho feito pelos pioneiros bandeirantes. Quando Fernão Dias chegou, já havia o alimento. Até 40 anos atrás, estava de pé da casa de Borba Gato. O muro que vê cercava suas terras”, conta o historiador e pesquisador da história de Sabará, José Bouzas.


Longe dali, em Quinta do Sumidouro, em Pedro Leopoldo, fica a Casa Fernão Dias, atribuída ao bandeirante, equipamento cultural cedido pela prefeitura local ao Instituto Estadual de Florestas (IEF), que administra também o Parque Estadual do Sumidouro. De acordo com o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), Fernão Dias seria o fundador do local, cujo conjunto histórico da Quinta do Sumidouro é tombado desde 1976. Um dos destaques está na Capela Nossa Senhora do Rosário.


“Uma pena a Casa Fernão Dias estar fechada. É bom vê-la com movimento. Aqui perto, tinha um casarão que foi demolido. Espero que preservem esse pedaço da nossa história, pois é importante para nós e também para atrair visitantes”, conta um morador das proximidades do imóvel pintado de branco e verde.

 

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Em nota, o Instituto Estadual de Florestas (IEF) informa que o espaço da Casa Fernão Dias vai passar por obras de reformas/restauro. “No momento, a concessionária que administra o Parque Estadual do Sumidouro está elaborando os projetos, em diálogo com IEF e com o Iepha-MG. A previsão para reabertura é até agosto de 2025", informa a direção.


DESCOBERTAS E SURPRESAS

Na Região Sudeste, há muitas homenagens ao bandeirante: uma das principais rodovias do país, a BR-381, ligando Minas e São Paulo, leva seu nome. Em Pouso Alegre, no Sul de Minas, no encontro com a BR-459, há o monumento apelidado de “Fernandão” – o bem é tombado pelo município. Em BH, há um bairro da Região Nordeste com o nome do bandeirante e nomes de vias públicas se espalham pela RMBH. Já em Betim (RMBH), na frente da Casa de Cultura, há peças esculpidas pelo artista Luciomar Sebastião de Jesus (de Congonhas), em homenagem aos bandeirantes.


Nas “vias” que partem do passado rumo ao presente, há muito para se contar e descobrir. Até chegar à região das minas, as bandeiraa foram cheias de surpresas. Fernão Dias partiu da Vila de São Paulo em 21 de julho de 1674, tendo sido precedido por uma parte da comitiva. Ele morreu em 1681, à beira do Rio das Velhas. “Acredita-se que a bandeira tenha chegado até o Serro do Frio (atual Serro, no Vale do Jequitinhonha). Diogo de Vasconcelos (historiador, 1843-1927), especulou que ele teria chegado até Itacambira (Norte de Minas). Não se sabe precisar o percurso da expedição”, conta Adriana Romeiro, autora de livros sobre a história de Minas, dentre os quais “Dicionário Histórico das Minas Gerais: período colonial” (2012), em parceria com Angela Vianna Botelho.


A estimativa é de que a bandeira contava com quase 700 pessoas, sendo a maioria formada por indígenas e mamelucos. “Quando Fernão Dias deixa a Vila de São Paulo, aos 66 anos, está acompanhado por 40 homens brancos. No entanto, parte da expedição havia partido antes, levando homens brancos também.”

 


Pelo caminho, os sertanistas enfrentaram todo tipo de dificuldade: as intempéries (calor, frio, chuva, ventos), animais ferozes, bichos peçonhentos, a resistência das populações indígenas, febres e doenças, fome, sede. “Era um cenário assustador, que exigia o domínio das técnicas de sobrevivência nos matos, que os sertanistas aprenderam com os indígenas. Há relatos sobre morte por fome, por exemplo. Eles tinham uma técnica tão sofisticada que até a forma de caminhar (descalço) tinha sua particularidade. A expedição ainda enfrentou um motim, em razão da descrença de alguns quanto ao bom êxito da missão. Fernão Dias mandou inclusive enforcar seu filho natural, o mameluco José Dias Pais, por causa da conspiração. Foi uma jornada cheia de incidentes, e muitos morreram por causa das febres do sertão, as chamadas ‘carneiradas’. Fernão Dias morreu acreditando que havia achado as tão cobiçadas pedras verdes. Mas eram turmalinas, encontradas entre os rios Jequitinhonha e Araçuaí.”

 

UMA REGIÃO INÓSPITA

Imaginar a região das minas naqueles tempos (1670) é fascinante, ressalta a professora Adriana Romeiro. “Tratava-se de uma paisagem inóspita, dominada pela vegetação nativa, atravessada por rios caudalosos e cachoeiras elevadas. Uma paisagem muito hostil à presença humana, à exceção dos indígenas, que dominavam a região e sabiam como sobreviver nessas condições extremas. E havia os animais, as serpentes venenosas, os insetos.”

 


Até onde se sabe, não havia homem branco vivendo aqui. “Alguns estudiosos aventam a possibilidade, bem plausível, de que a região tivesse sido palmilhada por homens brancos ainda no século 16. Várias expedições foram organizadas, entre os séculos 16 e 17, para prospectar a existência de metais preciosos no interior do continente, e parece bem razoável que algumas delas tenham passado por aqui.” 

 

RETRATO DO BANDEIRANTE

Fernão Dias Paes era filho de Pedro Dias Leme e Maria Leite. Nasceu em 1608, nas proximidades da vila de São Paulo. O sobrenome Leme foi adicionado mais tarde pelo seu sobrinho, o genealogista Pedro Taques Pais Leme (1714-1777). Fernão participou de várias bandeiras, a exemplo da de Antonio Raposo Tavares, foi juiz ordinário na vila de São Paulo. Durante toda a vida, se dedicou a investidas contra povos indígenas, com o objetivo de escravizá-los em suas terras. De acordo com Diogo de Vasconcelos, ele “seria chefe de ilustre família, senhor de vastos latifúndios e milhares de escravos, aldeias de índios que administrava, e grossos cabedais, além de corpo de armas numeroso”. Em 1672, Fernão Dias recebeu o título de Governador das Esmeraldas, que lhe foi concedido junto com a missão de liderar uma expedição de localização dessas pedras. Em suas palavras, dirigidas à câmara da Vila de São Paulo, disse “que ia aventurar pelas informações dos antigos e que se reportava ao que tinha escrito ao governo deste estado sobre minas de prata e esmeraldas”.

 

VOCÊ SABIA?

• Fernão Dias Paes só ganhou o Leme no século 18. O sobrenome foi adicionado pelo seu sobrinho, o genealogista Pedro Taques Pais Leme (1714-1777).

• Na grafia do século 17, o nome aparece como Fernão Diaz Paes.

• O nome da cidade de Betim vem de Joseph Rodrigues Betim, cunhado do bandeirante Fernão Dias. Joseph foi o fundador da cidade.

• O traçado da rodovia Fernão Dias (BR-381) não coincide com o caminho dos bandeirantes.

FONTE: PROFESSORA ADRIANA ROMEIRO